Quinta-feira, 17 de março de 2022 - 07h00
(*), Bagé, 17.03.2022
O Coronel de Engenharia Higino Veiga Macedo, meu Caro
Amigo e Mentor (com letras maiúsculas mesmo), enviou-me mais um texto de sua
autoria que faço questão de compartilhar com os eleitores.
O
Capixaba
Texto do Coronel Eng Higino Veiga Macedo
Uma tarde, eu fui até ao Posto de Controle, em Vilhena
(janeiro de 1975) onde já se encontrava um senhor com uns sessenta anos. Ele
quando soube, pelo soldado, que eu era o comandante da Residência, veio direto
conversar comigo. Havia a ordem de não deixar ninguém passar com família
porque, naquela semana, o trecho estava medonho. Estava engolindo milhares de
veículos. Ele disse para eu o deixar entrar. A altivez do cidadão me chamou a
atenção. Ele me fez o pedido não como alguém pede uma esmola. Ele me fez o pedido
como alguém que encara um desafio, que se voluntaria para algo nobre. Apesar da
sua pequena estatura, franzino, com físico mais desgastado pela atividade que
pelo tempo vivido, voz pequena e arrastada, mas forte, período curto, fala de
um ser resoluto, determinado a cumprir o que pensava.
Aliás, um tipo de personalidade que sempre me fascinou
e que, na medida da minha incompetência ia copiando. A desse, copiei tudo.
Resolvi ir até onde ele estava estacionado. Disse que vinha do Espírito Santo,
de uma cidade que não mais lembro. A fila ia para mais de três quilômetros. Só
entrava “tanqueiro” (motorista de caminhão
tanque de combustível) e ônibus. Quando vi a família do senhor quase tive um
colapso. Ele disse à mulher:
‒ O Tenente não
quer nos deixar entrar.
Ela baixou a cabeça e começou a chorar. Ele também
tinha lágrimas pedindo pra cair. Estavam num caminhão pequeno, antigo,
Chevrolet, do tamanho de um da Mercedes Benz, na moda na época, o MB 608. Era
um “pau de arara” bem enlonado e onde
trazia toda a família, mais um burro pequeno, alguns porcos, um gradeado de
galinha, milho para os animais e toda a tranqueira de casa: panela, balde e
muito mais coisa. Só não vi cachorro. Ele e a mulher se acomodavam na cabine;
na carroceria, duas filhas uma de, mais ou menos, oito a dez anos e outra
mocinha, de quinze a dezesseis, e um rapaz de uns dezoito anos.
Quando vi aquilo perguntei a ele para onde ia. Ele
disse que não sabia, mas ia tentar arrumar um pedaço de terra pra ele. Fui
duro, mas nobre:
– Meu senhor, seria
uma irresponsabilidade minha deixar o senhor entrar assim, sem destino; pelo
amor de Deus, fique por aqui, descarregue esse caminhão e fique por Vilhena;
espere o período de seca; eu me proponho a levá-lo até ao INCRA, para tentar
alguma coisa para o senhor; se depender de mim, o senhor não passa daqui.
Ele me fitou, cara a cara, e disse compassadamente,
olhando nos olhos:
– Tenente, o
senhor é um homem novo e tem muita vida ainda pela frente; o senhor pode
esperar; eu sou um homem já velho e essa é a minha última tentativa de ter
alguma coisa; o senhor não pode fazer isso comigo. Tudo que tenho na vida está
aí, ó, nesse caminhão; vendi tudo o que podia vender e toda minha riqueza está
aí; eu preciso entrar.
Meu Deus, o que fazer. A malária estava agredindo
muito. Havia estória de morte em atoleiro embora eu não tenha conseguido
identificar onde e quem. Era sempre a mesma coisa: “o pessoal está comentando que morreu em...”.
Disse a ele que tudo que acontecesse era toda
responsabilidade dele. Assim, pelas três da tarde, ele entrou. O Soldado do
posto disse que era uma temeridade, pois as notícias dos caminhoneiros, que
chegavam do trecho, diziam que a coisa estava feia. Bom, no outro dia, fui ao
trecho, até ao acampamento de Marco Rondon. Não deu outra, encontrei-o atolado
com o caminhãozinho quase trombando e ele em apuros para descarregar o burro,
as galinhas e tudo mais. Dei-lhe uma espinafrada dizendo que ele estava sendo
teimoso e inconsequente. Não me respondeu nada. Parei um caminhoneiro e arrastamos
o caminhãozinho. O pior é que ele não conhecia nada. Não tinha a menor ideia de
onde andava.
O pobre capixaba achava que Porto Velho estivesse a
cem quilômetros dali. Arrastei-o até ao acampamento de Marco Rondon. Chegou notícia
que havia aberto um enorme buraco perto de Pimenta Bueno. Expliquei ao capixaba
os locais onde tinha nosso acampamento. Ele iria entrar só quando o meu pessoal
desse o pronto. Assim, pararia dois ou três dias num local, mas seguiria sem
atolar e sem o risco de quebrar o caminhãozinho. Bom, a última notícia que me
deram é que ele foi arrastado até Pimenta por uma caçamba que lá fora conseguir
algumas peças para o Batalhão.
Passados os anos, na minha segunda vez que servia no 5°
BEC, (78/79) fui destacado em Ji-paraná. O meu trecho agora começava em Pimenta
Bueno. À frente de Pimenta Bueno era de responsabilidade do 9° BEC. Fui até
Pimenta Bueno. Em Cacoal, paramos no mesmo posto de gasolina, do mesmo dono,
para tomar café e espichar as pernas. Quando menos espero me chega um senhor
com um chapéu de palha bem surrado e um cigarro de palha na boca. Aí, ele abriu
um sorriso enorme e disse:
– Tenente, o
senhor ainda por aqui? Nunca mais tinha lhe visto.
Eu não o reconheci. Disse eu que estava voltando e que
já não era mais tenente, embora isso pouco importasse a não ser o prazer de
rever-lhe. Disse, sem que ainda o tivesse reconhecido. Ele notou minha
dificuldade, e perguntou se eu não o estava reconhecendo. Respondi que a pessoa
me era familiar, mas não me lembrava de onde e o nome. Aí ele foi até irônico:
– O senhor se
lembra do homem que o senhor não queria deixar entrar porque não tinha para
onde ir? Pois bem sou eu. Tenente, eu venci e de qualquer forma tenho muito a
lhe agradecer. Toda a minha família ainda lembra muito do senhor.
Perguntei onde ele estava e o que estava fazendo.
Disse que tinha recebido uma gleba de terra na linha não sei das quantas e que
já tinha lavoura, casa boa, trator e mais alguma coisa. Tinha plantado café,
atividade que ele tinha no Espírito Santo. Pela hora não daria tempo de eu ir
até lá onde ele morava. Trocamos um forte abraço, abraço fraternal, de irmão de
labuta e nos despedimos, imagino que para sempre. Um arrependimento: tive duas
oportunidades de perguntar-lhe o nome e não o fiz. Hoje o velho sou eu.
Solicito Publicação
(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de
Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;
· Campeão do II
Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
· Ex-Professor
do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);
· Ex-Pesquisador
do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
· Ex-Presidente
do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
· Ex-Membro do
4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
· Presidente da
Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
· Membro da
Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
· Membro do
Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
· Membro da
Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
· Membro da
Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
· Comendador da
Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
· Colaborador
Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
· Colaborador
Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
· E-mail: hiramrsilva@gmail.com.
·
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – XXIV
Bagé, 20.01.2025 Continuando engarupado na memória: Tribuna da Imprensa n° 4.260, Rio, RJ Sábado e Domingo, 25 e 26.01.1964 Generais Contra Decreto
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – XXIII
Bagé, 17.01.2025 Continuando engarupado na memória: Tribuna da Imprensa n° 4.259, Rio, RJSexta-feira, 24.01.1964 Petrobras em Crise: Negociata Uma
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – XXII
15.01.2025 Continuando engarupado na memória: Tribuna da Imprensa n° 4.257, Rio, RJQuarta-feira, 22.01.1964 Subversão da Ordem é Etapa da Revoluç
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – XXI
Bagé, 13.01.2025 Continuando engarupado na memória: Tribuna da Imprensa n° 4.255, Rio, RJSegunda-feira, 20.01.1964 Bilac dá as Provas do Golpe O D