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Gente de Opinião

Hiram Reis e Silva

Boa Vista, 24 a 30.08.2018 – Parte I - Os Uaimiris


Boa Vista, 24 a 30.08.2018 – Parte I - Os Uaimiris - Gente de Opinião

A abertura de novas áreas de extrativismo, em Rios habitados por indígenas, estabeleceu diversas fontes de choque inter-racial, com o correr dos tempos. Às incursões dos civilizados, respondiam os índios com as chamadas excursões, terminologia coetânea ([1]), para indicar os seus ataques. [...] Também foi palco de atritos o Baixo Rio Negro, onde irromperam os Uaimiris, a partir de 1855, grupo indomável, que defendeu suas terras, por mais de um século. (LOUREIRO)

 

Os Uaimiris


 

Por intermédio do Coronel Teixeira, conheci, em Manaus, seu amigo e Ir\ Dr. Antônio Loureiro, médico, escritor e historiador. A residência do escritor era próxima ao centro e aguardamos a hora marcada em uma pequena livraria próxima ao Teatro Amazonas onde tivemos a grata oportunidade de encontrar, casualmente, o poeta Amadeu Thiago de Mello, evento que materializei em um capítulo chamado “Encontro com Thiago de Mello” no Tomo II do livro “Descendo o Negro”. Foi um dia muito especial encontrar dois ícones da literatura amazonense num mesmo dia, era algo que jamais poderíamos imaginar que poderia acontecer. Ficamos horas ouvindo o Mestre Maçom falar, apaixonadamente, da história de sua terra e da sua gente. À medida que discorria sobre os eventos históricos, o Mestre trazia alguns de seus livros para reforçar seus argumentos. Mestre Loureiro me presenteou com diversas de suas obras e lanço mão de uma delas, “O Amazonas na Época Imperial”, para reproduzir a história dos contatos dos “Uaimiris” com os “civilizados”. Neste livro, publicado pela primeira vez em 1989, o escritor discorre sobre fatos históricos ocorridos na Província do Amazonas, desde a sua instalação, em 1852, até a Proclamação da República, em 1889. Época em que o Amazonas viveu as agitações do recrutamento de índios para a Guerra do Paraguai, da Migração Nordestina, no primeiro ciclo de exploração da borracha, da Revolta dos Cabanos e do embate com nações europeias e vizinhas pela posse territorial da Amazônia. Há ainda referências à destemida determinação dos índios de defenderem seus territórios da ocupação e colonização europeia. “Deparamo-nos com uma história esquecida, cujos acontecimentos influíram poderosamente no futuro da região, pelas profundas modificações econômicas e sociais ocorridas em pouco mais de trinta e sete anos”, anuncia o autor. Antônio Loureiro é membro do Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas (IGHA), da Academia Amazonense de Letras (AAL), da Academia Maçônica de Letras (AML), da Academia de Medicina do Amazonas e membro correspondente da Academia Nacional de Medicina.

 

O Amazonas na Época Imperial

 

A região do Baixo Rio Negro, entre Barcelos e Manaus, já estava pacificada desde o século XVIII, ali existindo as localidades de Tauapessassu, oriunda da Tauacuera dos Tarumãs, Airão, Moura e Carvoeiro. Nela já não mais habitavam, fugidos ou absorvidos, os Tarumãs, os Manaus, os Cauaboricenas, os Anauenes e os Parauenes, habitantes das ilhas Anavilhanas e Paravilhanas. Mais tarde, algumas hordas de Muras, oriundas do Solimões, estabeleceram-se ao longo da margem direita e, por volta de 1855, iniciaram-se os ataques dos Uaimiris, pela margem esquerda, acima do Cuieiras e até a Foz do Branco. Nessa época, eles habitavam principalmente o Jauaperi, o Amanau e o Curiau, excursionando as praias do Rio Negro, entre outubro e março, para a coleta de tartarugas e a extração de ovos, quando atritavam com os civilizados ocupados no mesmo mister. Durante mais de 120 anos, desde o alvorecer da Província até o seu massacre, já em plena atualidade, mantiveram a posse de um imenso território, tornando perigosas as viagens pelas Anavilhanas e pela margem esquerda do Negro, trajeto mais curto e abrigado, forçando os barcos, que demandavam ao Rio Branco e a Barcelos, a atravessarem o Rio, na altura de Paricatuba, enfrentando a perigosa baía da Boiaçu.

O primeiro conflito entre os civilizados e os Uaimiris, registrado pelos Presidentes da Província do Amazonas, ocorreu em novembro de 1855, quando foram mortas duas pessoas, no Rio Jauaperi. Em decorrência desse cometimento, o Presidente João Pedro Dias Vieira mandou o Major Manoel Ribeiro de Vasconcelos fazer uma entrada às malocas daqueles índios, processo arcaico e já em desuso, restabelecendo as agressões oficiais contra os gentios. O Major recebeu, para essa Expedição, as instruções seguintes:

 

Instruções de João Pedro Dias Vieira ao Major Ribeiro de Vasconcelos, a 15.03.1856, incumbido de fazer uma entrada na maloca dos Uaimiris.

 

Cumprindo evitar as depredações que quase anualmente praticam os gentios Uaimiris, amalocados nas cabeceiras do Rio Uatucurá, tributário do Jauaperi, os quais até hoje se têm mostrado inacessíveis a todo trato e comunicação com gente civilizada, tenho resolvido encarregar a V. Mercê de explorar as matas, onde os ditos gentios se acham e conduzi-los para fora delas. Nesta comissão deverá Vossa Mercê observar as instruções seguintes:

 

1°   Reunirá cinquenta praças da Guarda Nacional sob seu comando e os trabalhadores que forem mister para a tripulação das canoas em que houver de fazer a viagem, e provendo-se de víveres e outros objetos indispensáveis, subirá pelo Rio Jauaperi e irá à maloca dos ditos gentios Uaimiris. Procurará por todos os meios brandos e suasórios, a seu alcance, reduzi-los a acompanharem-no para a Freguesia de Moura ou Carvoeiro, onde os aldeará provisoriamente, dando logo parte a esta presidência, para resolver definitivamente acerca dos destinos deles e outras providências concernentes ao seu aldeamento. Só em caso de absoluta e extrema necessidade usará V.M. da força contra as agressões dos mencionados gentios, ou de quaisquer outros que porventura o acometam, atirando-lhes primeiro com pólvora seca, porque muito se aterrorizam com o estampido do tiro, e então é de supor que baste isso para reduzi-los à sujeição e obediência.

 

  No regresso, escolherá Vossa Mercê um local próximo da confluência do Rio, denominado Campina, e mandará construir as acomodações precisas para permanecerem destacados 1 Cabo e 10 Praças, sob seu comando, a fim de proteger, no futuro, a navegação contra as excursões dos referidos gentios e de outros quaisquer, que porventura estejam amalocados, dos quais não se tenha notícia.

 

3°   Fará Vossa Mercê explorar o dito Rio Campina, mandando subir por ele até dois ou três dias de viagem, em ordem a verificar-se a existência de campos de criar nas suas margens, ou em lugares não muito arredados delas. Os 300$000 que lhe mandei entregar na Administração da Fazenda serão por V.M. aplicados à compra de farinhas e de canoas, que necessárias forem para conduzir a Bandeira ao seu destino.

 

Desta exploração apresentar-me-á Vossa Mercê um relatório minucioso, para que tomará diariamente notas dos lugares onde passar, da distância destes da Foz do Jauaperi, da produção, da natureza de suas margens e de todos os acontecimentos que emergirem, dignos de serem mencionados.

 

Deus guarde Vossa Mercê Palácio do Governo da Província do Amazonas ‒ 15.03.1856 ‒ João Pedro Dias Vieira.

 

A Expedição partiu para o Jauaperi no mesmo dia em que recebeu as instruções, a bordo do vapor Monarca, do Comandante Antônio Joaquim de Oliveira Pinto, indo, no mesmo navio, o Coronel João Henrique de Mattos, com destino a Cucuí, para superintender as obras que ali estavam sendo realizadas, e chegou a Moura, a 18.03.1856, onde se compraram farinha e canoas. Após estes aprestos, seguiu para o Jauaperi, a 29.04.1856, às 02h00, subindo esse Rio até 09.05.1856, onde deixaram alguns soldados de guarda às canoas. Após dois dias nas matas, o guia da entrada localizou a trilha dos índios, sendo descobertos por um deles, que deu aviso aos demais. Durante a perseguição, a tropa foi cercada por mais de cem Uaimiris, lançando um chuveiro de flechas. Foi feito fogo com pólvora seca e a maloca ocupada, onde ficaram assediados até 13.05.1856. No primeiro encontro, houve um guarda nacional ferido no peito, sem maiores cuidados. Levantado o cerco, a treze, a tropa retirou-se e foi explorar o Rio Campinas, onde chegou a quinze ([2]), percorrendo por dois dias. Já no regresso, levantou-se um Quartel à margem direita do Jauaperi, um pouco acima da Foz do Macucuau, com esteios de acari e palhas de ubim, explorando-se esse último Rio, por três dias, sendo piscoso, com terras pretas, um extenso cacaual e muitas madeiras, como a itaúba e a andiroba.

 

O regresso a Manaus deu-se a 11.06.1856, ficando no Jauaperi um Destacamento de um cabo e dez soldados, cada um com trinta cartuchos e seis alqueires de farinha, o suficiente para uma permanência de trinta dias, além de uma igarité ([3]) e uma montaria.

 

Segundo Major Ribeiro de Vasconcelos, os Uaimiris eram bem feitos de corpo, de estatura maior que a ordinária, como de mamelucos, cabelos pretos, um pouco crespos, e corajosos. As suas malocas eram formadas por duas casas circulares de 50 palmos de diâmetro, com duas portas nos lados opostos, nelas foram encontrados arcos, flechas, machados de pedra, maqueiras ([4]) de meriti, cendais ([5]) de coquilho e pães de massa de mandioca. Não houve nenhum resultado com essa Entrada; ao contrário, ela serviu para que os Uaimiris ficassem ainda mais arredios, sendo condenada pelos governos seguintes.

 

A 22.11.1862, os Uaimiris voltaram a atacar, no Jauaperi, onde foram mortos dois homens, que estavam colhendo ovos de tracajá. Os ataques foram repetidos, no ano seguinte, no Distrito de Tauapessassu e, em dezembro, mais duas pessoas foram mortas.

 

Em fevereiro de 1865, com o nome de “yauámerys”, atacaram os habitantes do Curiau, flechando uma pessoa que foi estendida em um jirau, posta a secar, sendo os seus ossos retirados, para flautas e pontas de flechas. Alguns meses depois, flecharam dois rapazes, um dos quais faleceu, e tentaram assaltar a localidade de Airão. Por este motivo, foi para ali destacado o navio Pirajá, com um oficial e 15 praças, para atender a um pedido da população daquela localidade, e Frei Samuel Luciani, Vigário de Moura, recebeu dinheiro, brindes e pessoal, para missioná-los, sem sucesso.

 

Os Uaimiris continuaram a sua escalada de excursões. A 11.02.1866, renovaram os ataques aos moradores do Curiau, com uma morte e vários feridos; em março de 1868, reapareceram no Jauaperi, chacinando 13 pessoas que iam na busca de tartarugas, sendo remetido um pequeno Destacamento para proteger Moura e Tauapessassu, temerosas de ataques diretos; em 1872, deixaram em sobressalto as localidades de Airão, Tauapessassu e Moura, atacando canoas e saqueando essa última Povoação, obrigando aos seus habitantes a refugiarem-se numa ilha. Em face desse último evento, a Guarda Nacional foi convocada e recrutou-se gente no Madeira, Vila Bela, Serpa e no Solimões. A diligência, embarcada em duas lanchas da Flotilha, saiu de Manaus a 16.01.1873, comandada pelo Brigadeiro João do Rego Barros Falcão, ali deixando alguns destacamentos e uma lancha patrulhando ao longo do Rio.

 

Apesar dessas providências, os assaltos foram renovados a 30.12.1873, perto de Moura, a uma canoa, com a morte de três mulheres e ferimentos em uma criança, encontrada viva, com nove flechadas, sendo para lá destacada a 09.01.1874, a lancha número 8 da Flotilha de Guerra, com 10 praças do 3° Batalhão de Artilharia a Pé e 8 imperiais marinheiros, sob as ordens do Tenente da Armada Joaquim Thomaz da Silva Coelho. Aproveitando a viagem, foi feito o reconhecimento dos Rios da região, tendo a tropa regressado a Manaus a 08.02.1874. Silva Coelho visitara Moura, Airão, Carvoeiro, o local da chacina e a Boca do Rio Branco. Subiram ao Jauaperi, por duas vezes, encontrando apenas sinais da presença dos Uaimiris e já no regresso, a 04.02.1874, entrara no Curiau, atravessando o Lago por ele formado, após 3 horas de navegação a 17 milhas por hora. Fora o Amanau, até a primeira cachoeira, alcançada a 06.02.1874, sendo este Rio profundo e de altas margens, frequentado por mais de 1.000 Uaimiris.

 

Em outubro de 1874, os Uaimiris voltaram a atacar a localidade de Moura, sendo para lá mandados 20 praças do 3° Batalhão de Artilharia a Pé, em uma lancha e, em março de 1875, de novo preparavam-se para atacar aquela Povoação, já tendo morto uma pessoa, no Lago Grande, logo afugentados pela presença de um oficial e seis praças mandados de Manaus. As excursões continuaram em novembro de 1877, na praia do Jacaré, a 17.11.1879, na praia do Curé-curé, com uma morte; e, em janeiro de 1880, com três pessoas feridas, e a remessa de nova Expedição, em uma lancha da Flotilha. Moura voltou a ser atacada em 06.01.1881, sendo de novo remetidos com uma lancha da Flotilha e um Destacamento para protegê-la. Os ataques foram repetidos em janeiro de 1882, e uma força de 20 praças, a bordo do navio 9 de novembro foi patrulhar o Baixo Rio Negro, comandada pelo Capitão Pedro Guilherme Alves da Silva, que de lá retornou sem autorização, resultando em inquérito.

 

Em 1883, os Uaimiris mantiveram-se quietos e José Paranaguá tencionava pacificá-los, remetendo Barbosa Rodrigues à região, com essa finalidade, o que de fato ocorreu, pois o cientista encontrava-se no Jauaperi, nesse objetivo, em 1885. O último registro da Época Imperial relativo às suas excursões foi o de 1887, quando atacaram, mais uma vez, a Vila de Moura, onde foram mortos três deles. O Presidente destacou 6 praças e 2 missionários, a 01.01.1888, mas nada foi conseguido, em face da fuga dos índios, para locais inacessíveis. (LOUREIRO)

 

Massacre ‒ Silvano Sabatini

 

O Padre italiano Silvano Sabatini escreveu o livro intitulado “Massacre”, nele o religioso sustenta que o massacre da Expedição liderada pelo Padre católico João Calleri, em novembro de 1968, foi arquitetado por um grupo de missionários americanos. Sabatini era amigo do religioso morto em 1968. Sabatini contradiz, categoricamente, os inquéritos oficiais da época baseando suas conclusões em relatos orais de indígenas que teriam participado da chacina. O relato de Sabatini é ratificado pelo Coronel Fregapani que aponta como artífices e autores dos assassinatos agentes Norte-americanos travestidos de missionários religiosos.

 

Guerrilha na selva

 

Em 1884, finalmente, o botânico e etnógrafo João Barboza Rodrigues tenta a primeira aproximação pacífica dos Uaimiri-Atroari através de três expedições. Para isso, usa método indireto de abordagem, fazendo o primeiro contato com os Uassahys, do Rio Jatapu, cuja hostilidade ainda não havia sido deflagrada pelo contato com o branco para, por meio deles, chegar aos Jauaperys, certo de que os Uassahys não eram mais que um ramo dos Jauaperys. [...] As expedições de Barboza Rodrigues abriram um período de vinte anos de relativa calma. A partir da década de 1880, entretanto, tem início o ciclo da borracha na economia amazonense, levando seringueiros e comerciantes a subir os Rios, penetrando em território indígena, em busca do látex. Em 1905, um desses comerciantes, Fuão Vidal, mata um índio no posto comercial que estabelecera nas margens do Jauaperi. Em represália, os índios matam um de seus empregados. [...] Nos anos seguintes, índios e brancos se envolveram em uma surda guerrilha de tocaias e massacres, apesar da instalação de um posto pioneiro do SPI ‒ Serviço de Proteção ao índio, em 1911, no Rio Jauaperi. O maior incidente deste período foi a emboscada em que morreu um grupo de trabalhadores da “Penha&Bessa”, empresa que operava na cata e exportação de castanhas, em 1926. [...] Com a eclosão da II Guerra Mundial e a interdição dos seringais do Sudeste asiático, a Amazônia vive um novo surto da indústria extrativa da borracha na primeira metade dos anos 40. Com o retorno dos seringueiros às terras indígenas, o SPI estabeleceu, no primeiro semestre de 1941, novo Posto de Atração dos Uaimiri-Atroari [PAWA], desta vez no Rio Camanau. Nunca se conseguiu apurar os motivos ou quem atacou o posto em novembro de 1942: não houve sobreviventes para contar a história. Os corpos foram encontrados pelo Chefe da inspetoria do SPI em Manaus, Sebastião Moacyr Xerez, em uma visita de rotina: os irmãos Humberto e Luiz Briglia, João Vieira de Souza e sua família, a mulher, Maria Augusta, e dois filhos, Antônio Eva e uma menina de seis anos. Outra menina foi levada pelos atacantes e dela não se teve mais notícias. O Posto foi reinstalado em fevereiro de 1943, com o nome de Posto Irmãos Briglia, e mudado das cabeceiras para a Foz do Camanau, e novamente destruído em 1946. Desta vez foram onze mortos. (SABATINI)

 

Ouvi, hoje [27.05.1949], de um passageiro o relato do combate travado recentemente entre caçadores de jacarés e os índios Uaimiris na região do Rio Camanau. Segundo esse senhor, foram abatidos mais de 30 índios e capturado um menino, hoje entregue ao Serviço de Proteção aos índios [SPI], em Manaus. Todas as flechas eram de ponta de ferro, algumas delas tendo como ponta a extremidade de um facão. Pelo modo da narrativa, parece-me que nem os caçadores, nem o próprio SPI sabem quantos foram mortos, havendo naturalmente muito exagero em tudo. Os Uaimiris ultimamente têm tido vários conflitos com os caboclos, estando ainda na lembrança de todos o massacre de Camanau, onde foram abatidos a flechadas vários servidores do posto indígena local. (CARVALHO)

 

O ataque ao Posto Irmãos Briglia foi o último massacre de vulto nas terras Uaimiri-Atroari por mais de vinte anos. Nas décadas de 50 e 60, indígenas e brancos chegaram a uma paz que, se não evitava totalmente as chacinas de parte a parte, permitia que seringueiros, caçadores, pescadores e regatões transitassem com alguma segurança por território índio. Essas incursões muitas vezes terminavam em tragédias, mortes anônimas de índios e caboclos cujos corpos e histórias ficavam esquecidos no meio da selva, na beira dos Rios. Como a chacina contada pelo português Frederico Machado aos homens do Parasar que procuravam a Expedição Calleri, em novembro de 1968. (SABATINI)

 

Massacre da Expedição Calleri

 

A Expedição era chefiada pelo Padre João Calleri, um sacerdote italiano de 34 anos, que se tornara conhecido por pacificar os índios Yanomâmi na região do Catrimani, na fronteira do Brasil com a Venezuela. Quando os trabalhos de construção da estrada BR-174, que ligaria Manaus, no Brasil, a Caracas, na Venezuela, atingiriam o território Uaimiri-Atroari, na altura do alto Rio Urubu, a cerca de duzentos quilômetros da linha do Equador, os operários começam a debandar em pânico. Ali é a área de caça dos Uaimiri-Atroari, lendária nação de guerreiros famosa pela bravura na defesa de seu território. Com o medo ameaçando interromper a construção da estrada, o Departamento Nacional de Estradas de Rodagem, que não confiava na delegacia regional da Fundação Nacional do índio em Manaus, pediu ajuda a Padre Calleri para o trabalho de aproximação com os índios. O grupo, oito homens, incluindo Padre Calleri, e duas mulheres, partiu de Manaus, em meados de outubro de 1968, para reunir-se em um acampamento do DER-AM, o Departamento de Estradas de Rodagem do Amazonas, localizado no Rio Abonarí, a 220 quilômetros da capital do Amazonas. Em 22 de outubro [1968], eles deixaram o acampamento do DER-AM, subindo em direção às nascentes do Rio Santo Antônio do Abonarí, um afluente do Uatumã, viajando em dois barcos e levando alimentos para um mês, cinco revólveres, uma pistola, duas espingardas, um rádio transmissor-receptor e meia tonelada de alimentos, ferramentas e tecido para distribuir aos índios. Nos dois primeiros dias, seguiram pelo afluente do Uatumã. [...] No dia 25, “Cara-de-Onça” contaria que o grupo que seguira na frente estava acampado a mil metros dos Atroaris e planejava chegar à maloca na manhã seguinte para o primeiro contato. [...] Na noite do dia 26, porém, o Padre já não parecia preocupado. [...] Tudo parecia estar sob controle e o ambiente era quase de festa. Como pano de fundo, a irmã podia ouvir distintamente as brincadeiras dos índios e as risadas do Chefe Maroaga. Padre Calleri contou [pelo rádio] que tudo corria bem e que o Tuxaua até lhe passara saliva nos lábios, numa clara demonstração de amizade. As coisas pareciam tão tranquilas que, no dia seguinte, Padre Calleri, pressionado pelo prazo que lhe dera o Coronel Mauro Carijó para concluir sua missão, 31 de dezembro, decidiu dividir ainda mais a equipe. Enquanto Marina, Aragão e “Cara de Onça” ficavam na maloca Atroari, ele próprio voltaria ao acampamento-base com cinquenta índios para buscar os companheiros e a mercadoria que levara para presentear os silvícolas. “Cara-de-Onça” também já parecia estar perfeitamente à vontade entre os Uaimiri-Atroari. [...] Na volta do acampamento da TRANSCON, com a gasolina, Piauí, Manoel Mariano e os índios que o acompanhavam tiveram problemas com o motor. Os índios que os esperavam no acampamento-base ficavam cada vez mais apreensivos com a demora, até eles chegarem. Depois, segundo Álvaro Paulo, Calleri tentou fotografá-los, apesar do medo que sentiam da máquina fotográfica. Além disso, os indígenas estavam assustados com o cachorro de Álvaro Paulo, que corria atrás deles, obrigando-os a subir nas árvores. O ambiente só se desanuviou depois que um índio caiu na água e Álvaro Paulo amarrou o cão. Foi nesse dia, também, segundo Álvaro Paulo, que o Padre ameaçou um índio com a espingarda. Contrariando a ordem de Calleri, o mateiro estava dando presentes aos indígenas às escondidas. Maria Mercedes viu um índio guardando um prato e uma colher e contou ao Padre. Calleri teria obrigado o índio a devolver o prato, apontando-lhe a espingarda.

 

‒  Padre marupá [mau]. Índio roubando, Padre pega espingarda e pum... pum... índio morre.

 

Ameaçou o Padre, conforme a versão de Álvaro. Paulo Mineiro teria repreendido o Padre por ter ameaçado índio com a espingarda e a palavra “marupá”. Os dois tiveram, então, uma conversa dura:

 

‒  Você está com medo? ‒ teria perguntado Calleri.

 

‒  Estou sim. Eu tenho coragem para atravessar a mata sozinho, mas do jeito que você está tratando esses índios, vai provocar um desfecho perigoso para nosso pessoal.

 

Teria respondido Álvaro Paulo. O mateiro ainda correu atrás do líder dos Uaimiri-Atroari, mas ele se recusou a voltar por medo do cachorro:

 

‒  Cachorro marupá ‒ teria dito Maroaga.

 

Álvaro Paulo procurou convencer os outros expedicionários a abandonarem o Padre e voltarem com ele, o que causou mais um desentendimento com Calleri. Para completar o dia, Álvaro Paulo discutiu também com Manoel Mariano, por ciúmes de Maria Mercedes. Álvaro Paulo teve uma discussão muito forte com Manuel nesse dia, o dia em que o índio caiu n’água ‒ Francisco Cordeiro lembra das histórias que corriam nas conversas dos radio-operadores. Na madrugada do dia 31, antes de o Sol raiar e os expedicionários voltarem à maloca de Maroaga, deixando Álvaro Paulo sozinho, Calleri entregou-lhe uma autorização para requisitar um avião do DAER-AM em São Gabriel e retornar para Manaus. Na hora da despedida, Paulo Mineiro ainda tentou convencer os companheiros a abandonar Calleri, mas eles não aceitaram. Seu compadre, Francisco Eduardo, estava desarmando a rede para partir quando Álvaro Paulo fez a última tentativa.

 

‒  Se é pelo dinheiro que vão lhe pagar, compadre, eu lhe dou quando chegar em Manaus.

 

Ele propôs, mas Francisco Eduardo recusou. Álvaro Paulo teria feito a última recomendação a Manoel Mariano:

 

‒  Você agora é o responsável pelo grupo, em caso de ataque dos índios fuja pela trilha, não pelo Rio. [...]

 

Neste último comunicado enviado à sede do DER-AM, como fizera na mensagem do dia 24, depois de sua primeira discussão com o mateiro, Calleri defendia seus métodos das críticas feitas por Álvaro Paulo e demonstrava sua preocupação com a visita próxima à maloca. Os incidentes da véspera o haviam deixado apreensivo e ele dera um jeito de desarmar os índios, trocando seus arcos e flechas por mercadorias. Agora, as coisas pareciam ter se acalmado. Chovia torrencialmente, os índios já estavam se recolhendo à maloca para dormir e ele também ia se deitar, explicou a irmã Hugolina antes de desligar a fonia. Irmã Hugolina queria saber sobre os perigos que enfrentaria nos dias seguintes, mas sobre isso ele não queria falar. [...] Calleri não sabia, mas o que estava sendo planejado era a sua morte. A sua e a de todos os expedicionários que estavam com ele. O massacre estava planejado há muito tempo e o momento estava chegando. (SABATINI)

 

Teoria da Conspiração

 

Eles chegaram à América do Sul nos anos 30 e, de início, fixaram-se na República Cooperativa da Guiana ([6]) e no Suriname ([7]) como membros da Cruzada Evangélica Mundial, dividindo-se, depois, em dois grupos, a MICEB ‒ Missão Cristã Evangélica do Brasil, que se deslocou para a região dos Caiapós, no Pará, e a MEVA ‒ Missão Evangélica da Amazônia, que permaneceu na área de fronteiras, montando sua base de operações no local que passou a ser denominado de Kanaxem, na Guiana. Suas primeiras conversões foram conquistadas no início dos anos 40 em um grupo da “nação” Wai-Wai que havia se transferido da região do Mapuera, no Pará, para Kanaxem. Oficialmente, a MEVA é mantida por doações da Unevangelized Fields Mission, entidade com sede na Pennsylvania, EUA. Na verdade, porém, sua principal fonte de recursos era a exploração de duas minas de ouro, uma na Serra do Meruri, nome indígena da Serra do Jacu, na Guiana, e outra no território dos índios Tiriós, no Suriname. Em meados dos anos 50, eles iniciaram sua expansão em território brasileiro, na região que mais tarde ficaria conhecida como “Província Mineral do Mapuera”. Partindo da base de Kanaxem, que significa “Deus te ama”, na língua dos Wai-Wai, nas nascentes do Rio Essequibo, na Guiana, eles começaram a espalhar missões com precisão militar. Primeiro nos Rios Tacutu e Mau, que estabelecem a linha de fronteira entre os dois países; depois no Cotingo Mucajaí, Auaris, Ericó e, finalmente, no Uraricoera e no Parima, impedindo acesso fluvial às fronteiras com a Guiana e a Venezuela, uma região rica em diamantes, ouro, diatomita, manganês e urânio. Para estabelecimento dessas missões, a MEVA fazia expedições exploratórias nas quais o zelo Missionário se confundia com o interesse mineral. [...] O comportamento dos missionários da MEVA deram origem a rumores, no início da década de 60, de que sua verdadeira atividade seria a mineração, não a catequese. Esses boatos nunca foram suficientemente esclarecidos mas, em 1961, o então Coronel Sérgio Camarão, do comando Aéreo da Amazônia, decidiu abrir uma série de pistas de pouso em torno dessas missões e convidar o Padre Dante Possamai, da Prelazia de Roraima, a acompanhá-lo em uma visita à Bacia do Rio Uraricoera para estudar a possível instalação ali de uma missão católica. [...] Já sobre a MEVA, pesava uma longa lista de acusações, que ia do tráfico de índios brasileiros para trabalhar em sua central em Kanaxem à infiltração ilegal de técnicos para pesquisas em suas bases no Brasil, passando pelo contrabando de minérios e manutenção de milícias armadas clandestinas. Malcher citava como exemplo o caso dos pesquisadores Ernesto Migliazza e Edson Diniz, do Museu Emílio Goeldi que, autorizados e financiados pelo governo brasileiro, foram impedidos por guardas armados de entrar numa Missão da MEVA. [...] Nessas circunstâncias, é fácil entender a opção da FUNAI e de Albuquerque Lima pelos Missionários da Consolata para pacificação dos Uaimiri-Atroari, no início de 1968. A MEVA ainda insistia, em setembro de 1968, pedindo autorização para abertura de uma terceira frente e atração no caso de “situação imprevista” com a Expedição chefiada pelo Padre João Calleri, o que irritou ainda mais o Diretor de Patrimônio Indígena da FUNAI. [...] Em 1968, uma nova queixa, feita à Comissão Parlamentar de Inquérito que investigando a venda de terras na Amazônia ligava os pastores americanos John Davis, um Major da United States Air Force, e Henry Fuller, da Missão Novas Tribos do Brasil, ao contrabando de minérios, grilagem e venda de terras a estrangeiros. As acusações não foram uma surpresa. Há anos o extinto SPI recebia reclamações sobre o trabalho das missões protestantes na Amazônia, especialmente a MEVA e sua divisão de apoio aéreo, a Asas do Socorro, chefiadas pelos irmãos Robert e Niels Hawkins. Segundo José Maria da Gama Malcher, Presidente do extinto SPI no período de 1951 a 1954 e primeiro Diretor do Patrimônio Indígena da FUNAI, contra a Asas do Socorro pesava a suspeita de usar seus aviões para contrabando de minérios. (SABATINI)

 

A Execução

 

Os assassinos chegaram às 05h00, quando ainda estava escuro. [...] Calleri ainda dormia, deitado em sua rede e o tiro o atingiu na barriga. No entanto, o Padre era forte como um touro e, mesmo baleado, saltou de sua rede, cambaleando e segurando a barriga onde o tiro o acertara, com o corpo dobrado para a frente devido à dor. Thomaz então armou seu arco e disparou. A flecha atingiu o Padre pelas costas, na altura do omoplata esquerdo e Calleri dobrou-se ainda mais, caindo com o corpo atravessado sobre a rede enquanto os outros índios disparavam mais flechas contra ele. Nesse momento, um dos expedicionários, despertado pelo barulho do tiro, fez um disparo com arma de fogo. Thomaz ainda tem a cicatriz no ponto onde a bala pegou sua mão esquerda, arrebentando seu arco. Com o impacto do projétil, ele caiu no chão desmaiando. Quando retomou a consciência, alguns minutos depois, a chacina estava quase consumada. Os homens da Expedição estavam todos mortos, restando apenas duas mulheres com vida e os “soldados” estavam discutindo com os Uaimiri-Atroari o destino delas, enquanto quatro guerreiros Wai-Wai, reunidos à distância, somente observavam a cena. [...] As duas tinham de morrer. A primeira a ser morta foi Mercedes e em seguida a Marina. O que aconteceu, horrorizou até os guerreiros Uaimiri-Atroari, acostumados com os horrores das guerras intertribais. [...] Também os Wai-Wai, como os Uaimiri-Atroari, entretanto, se recusaram a tocar nos corpos. Kron ([8]) ainda cutucou o cadáver do Padre com uma lança, para mostrar que ele estava morto e já não oferecia perigo. Mas era exatamente por estarem mortos que os indígenas se negavam a pegá-los. Como os índios se mostravam irredutíveis, Kron ensinou-lhes como fazer, mandando cortar algumas bura kiri ([9]) para que os soldados amarrassem os corpos e os índios pudessem puxar sem tocá-los. Os quatro Wai-Wai arrastaram, então, os corpos dos expedicionários para a beira do Abonarí, onde os militares do Parasar os encontrariam, já descarnados, um mês depois. Retirados os corpos, Claude Lcawitt passou a distribuir os pertences da Expedição entre os assassinos. Os Wai-Wai pegaram alguns facões e ferramentas e o próprio Kron recolheu, como sua parte na pilhagem, os pertences pessoais de Calleri, inclusive o pequeno diário que o Padre levava sempre preso ao braço esquerdo com um elástico para anotar a pronúncia e o significado de novas palavras que aprendia nas línguas das nações indígenas com quem mantinha contato. O roubo não era, porém, o motivo do crime, pelo menos para aventureiros Norte-americanos. (SABATINI)

 

O Mistério da Morte do Padre

 

Meu grande amigo Coronel Gélio Augusto Barbosa Fregapani, de quem sou profundo admirador, enviou, a meu pedido, um dos capítulos de seu livro “No Lado de Dentro da Selva II”, no qual faz um breve mas contundente relato sobre a morte do Padre Calleri. O relato do Coronel Fregapani é mais elucidativo do que a versão de Sabatini.

 

No final da década de 60, o Brasil, tentando integrar seu território, iniciava a abertura de uma estrada que haveria de ligar à cidade de Manaus o longínquo e então isolado território de Roraima, quando esbarrou na reação de uma tribo conhecida por sua ferocidade: os “Uaimiris-Atroaris”. Na abertura da estrada, sucediam-se as ameaças a ponto de muitos operários debandarem e ser difícil recrutar trabalhadores, mas a estrada tinha que prosseguir. Concordou-se em fazer uma pausa na abertura, enquanto uma equipe tentaria pacificar os índios ou transferi-los para outro local. Para chefiar a missão pacificadora, convidou-se o Padre Calleri. No dia 23.10.1968, o grupo, com o Padre mais sete homens e duas mulheres, atingia o território dos “Uaimiris-Atroaris”, instalando um acampamento na margem do Rio oposta a uma maloca queimada e um ancoradouro com algumas canoas. Os contatos, desde o início, foram amistosos. As mensagens diárias prenunciavam uma feliz conclusão da missão pacificadora: “eles mesmo descarregaram a canoa”, “às 15 horas nos trouxeram, em sinal de amizade, quatro panelões de bebida para tomarmos juntos. Quase noventa índios nos fizeram a grande festa”; “tem índios que fizeram amizade conosco, até nos seguem por toda parte” dizia o radioperador em tom otimista. No final do mês, uma última mensagem, esta em tom sombrio:

 

‒  Os índios tornaram-se algo prepotentes. Com extrema facilidade passam da calma à violência. Ontem à noite, estudamos um meio de comprar as armas do grupo que nos acompanha, para podermos viajar mais sossegados. Hoje de madrugada, um dos nossos melhores homens abandonou a Expedição. Tudo indica que, se faltarem orações, as flechas não tardarão a voar.

 

Provavelmente não faltaram as orações das freiras e das crianças do Colégio Adalberto Vale, de onde saíra o Padre Calleri, mas as flechas voariam assim mesmo. Não houve mais mensagens. Eu ainda hoje me lembro do Padre João Calleri, hospedado no Adalberto Vale, Colégio de Manaus, onde minhas filhas estudavam. Era de fato uma figura impressionante. Alto, muito forte, bem apessoado, alegre e extrovertido, sincero e cativante, era capaz de inspirar confiança à primeira vista. Tudo nele lembrava o esportista que era. Poderia ter sido um condutor de homens se não tivesse escolhido ser condutor de almas. Por suas atitudes generosas e meigas, as crianças o adoravam, bem como muita gente grande. Ele reunira o grupo para pacificar os índios que estavam no caminho da estrada que ligaria Manaus a Boa Vista. Esses índios, os “Uaimiris-Atroaris”, bastante arredios, tinham um passado de contato com os civilizados quando não faltaram massacres de lado a lado. Entretanto o Padre tinha confiança de que os poderia harmonizar ou conduzi-los para outro sítio, evitando novos choques. Ele já tinha pacificado uma tribo Ianomâmi em Roraima. Sabia o que fazia. Levava inclusive duas mulheres para demonstrar que não era uma Expedição guerreira, e se deslocava pelos Rios que, na Amazônia, não são considerados propriedade de alguém, portanto território neutro. Após a última mensagem, só a agonia do silêncio. À medida em que os dias passavam, a esperança de ter havido uma pane no rádio se transformava na terrível certeza de que os expedicionários estariam com sérios problemas, se ainda estivessem vivos. As buscas aéreas, mal sucedidas, só aumentavam a angústia. Um mês depois, num telefonema, o mateiro da Expedição pergunta se alguém mais havia chegado. Interrogado, disse que pressentira o ataque e se afastara da Expedição, mas que, arrependido, voltara no dia seguinte e vira os corpos de alguns dos companheiros terrivelmente mutilados. Que conseguira escapar, fugindo durante 15 dias por terra e por água, perseguido por índios ferozes, em grande parte desarmado, pois seu barco virara e perdera a espingarda. Que tinha advertido o Padre do perigo, mas que ele, obstinado, não o ouvira. Que não sabia se algum outro teria sobrevivido. Agora não havia dúvida. A Expedição estava oficialmente perdida. Foi chamado o pessoal do PARASAR [Grupo da Força Aérea especializado em resgate] para a busca do que restasse. Como quase todos eles tinham aprendido comigo a saltar de paraquedas e a andar na selva, me convidaram para acompanhá-los. O assunto era um “prato feito” para a imprensa mundial, sempre ávida de sensacionalismo: uma Expedição desaparecida na selva, trucidada por índios ferozes. O assunto ainda iria se revelar mais grave, mas sem a mesma repercussão. Começamos as buscas de helicóptero, pedindo ao mateiro que nos mostrasse o local, na selva, onde teria havido os sinistros eventos, quando um médico do Hospital Tropical comentou comigo que o tal mateiro poderia ser um impostor, que era fazendeiro e ele [o médico] já tinha curado malárias na fazenda do falso mateiro. Neste mesmo tempo, uma senhora que se dedicava a obras sociais nos informou que fora encontrada, numa cabana, a espingarda que o “mateiro” dizia ter perdido, com 50 cartuchos secos e mais material da Expedição e presentes que o Padre levava para os índios. Agora era certo que o mateiro havia mentido. A imprensa já desconfiara disto. As buscas continuaram. Todos estávamos convencidos de que ele, Álvaro Paulo da Silva, vulgo Paulo Mineiro, seria o assassino e estaria usando a estória de índios para encobrir seu crime. Paulo Mineiro era uma figura contraditória; muito alto, forte, bem apessoado, bom de tiro e rápido no facão, exímio conhecedor da floresta, suas histórias estão até hoje envoltas em mistério. É certo que tinha trabalhado no início da abertura da estrada, indo à frente da turma de demarcação. Dizia-se que teria sido Sargento do Exército; que teria desertado após um assassinato. Sempre fora um andarilho que fazia longas, solitárias e misteriosas viagens pela mata. Segundo se afirmaria depois, já havia feito contatos com os Atroaris. Não há dúvida que era um homem perigoso, mas isto não era raro nessas paragens onde só aventureiros perigosos se animam a penetrar. A suspeita durou até serem encontrados os restos da Expedição, os homens, todos, com marcas dos golpes de bordunas ([10]) que lhes haviam rebentado as têmporas. As mulheres, perfuradas por varas pontudas e cortadas ao meio, a facão. Isso praticamente o inocentou. Se tivesse sido ele, teria matado a tiros. Só índios poderiam matar daquela forma. As ossadas estavam na terra alagada da beira do Rio, com sinais de terem estado submersas pelas águas da cheia. A carne já havia sido comida pelos urubus. Três dos esqueletos estavam com os braços e pernas amarrados. Jamais se poderá saber tudo o que realmente aconteceu, pois Paulo Mineiro e a maioria dos índios que participaram do massacre já não pertencem a este mundo, mas as investigações imediatas e os depoimentos posteriores de diversos índios derramaram alguma luz sobre o que teria ocorrido. Na primeira versão, endossada pela FUNAI, o massacre teria sido provocado pela imprudência do Padre, e os índios estariam somente defendendo suas casas. O material da Expedição que o mateiro roubara e escondera seria somente uma tentativa quase inocente de ganhar algum dinheiro extra. Ele bem que tentara salvar a Expedição, pedindo que se retirasse da área, como comprovaram as mensagens radiofônicas do Padre.

 

A versão dos Atroaris só veio a público a partir de 1975. “Matamos o Padre junto com os brancos. FUNAI mandou matar. Foi Paulo quem disse que FUNAI mandou matar”. Segundo os Atroaris, quando Paulo Mineiro se retirou da Expedição, se reuniu novamente às escondidas com os líderes da tribo e um grupo da missão evangélica dos índios Uai-Uai, que estariam ocultos, vigiando a Expedição. O grupo estaria chefiado por um americano chamado “Cron”. Ele e Paulo teriam dito aos índios: “Vocês têm que matar. Ordem da FUNAI. O Padre vai trazer azar para vocês e prejudicar todos os crentes da missão evangélica e meu Chefe nos Estados Unidos vai se vingar. Vai jogar fumaça que matará todos vocês”. Depois a orientação de como fazer: “Vocês fingem que estão contentes com a chegada deles e depois matam” ‒ O trecho completo está no livro “Massacre”, de Silvano Sabatini, membro da comissão de inquérito sobre o incidente. Qualquer que seja a conclusão do leitor, ainda restarão muitos pontos de dúvida. Entretanto parece provável que Paulo Mineiro tenha tentado convencer o Padre a desistir e voltar com a Expedição, talvez para poupar-lhe a vida, talvez para impedi-lo de pacificar os índios que trancavam o acesso às fantásticas jazidas do Pitinga. Seja como for, até a antevéspera do ataque, os índios pareciam tranquilos e Calleri não desistiria facilmente. Como foi a execução, contou um dos participantes do massacre, o índio Tomás Uaimiri:

 

‒  Quem atirou primeiro foi um branco [Cron?]. Calleri ainda dormia na rede e o tiro atingiu na barriga. Ele saltou da rede e eu atirei minha flecha nas costas dele. Ele caiu enquanto os outros jogavam mais flechas nele. Um dos expedicionários acordou e atirou em mim. O tiro pegou na minha mão. Os homens foram mortos logo, mas não queríamos matar as mulheres porque as queríamos para nós. O Paulo e os outros nos forçaram a matar.

 

Ainda segundo Tomás Uaimiri, as duas mulheres foram mortas com tal crueldade que revoltou aos próprios índios. Certamente, ainda mais do que os índios, os incentivadores do massacre não poderiam deixar testemunhas. Naquela época, nós, brasileiros, não sabíamos da existência das jazidas do Pitinga, mas tudo indica que já eram do conhecimento de organizações Norte-Americanas. A partir dos anos 60, os pastores Norte-americanos já estavam sob suspeita de usarem a catequese como disfarce para prospecção mineral, manterem milícias armadas, de exploração ilegal de ouro e pedras preciosas e impedirem a presença de brasileiros. Por mais de trinta anos os missionários do pastor Robert Hawkins haviam percorrido a região, cruzando as fronteiras do Brasil, e do Suriname, atraindo índios para sua missão na Guiana. O governo terminou por expulsá-los, sob a acusação de não serem pastores e sim agentes da CIA. É provável que entre pastores houvesse realmente membros do serviço secreto Norte-americano, ou ao menos agentes a serviço das mineradoras daquele país. Um indício é que, próximo ao local do massacre, hoje se exploram as minas do Pitinga, e por lá Claude Leawitt, ou “Cron”, como o chamavam seus índios Uai-Uai, estava colhendo amostras. Cron nunca deixara dúvida de que seu interesse não era Missionário, pois ele nem religião tinha, apesar de sua base ser na missão evangélica. Tudo indica que ele tenha sido o mentor do massacre e Paulo um coadjuvante. Os índios comentaram que ele recebia ordens de um misterioso Mr. John. Olhando com a perspectiva de hoje, sou levado a crer que os interesses comerciais dos gringos se misturavam com o interesse estratégico da grande nação do Norte. Mais do que dominar, eles tentavam impedir que o Brasil interferisse em seus mercados, no caso o de estanho, controlado por um cartel internacional que mantinha artificialmente os preços num patamar muito elevado. Mas foi em vão. A estrada prosseguiu, levada avante pela Engenharia do Exército, e isto propiciou a exploração das jazidas do Pitinga, o que causou a quebra do cartel internacional. Prejudicado, o cartel passou a incentivar e financiar os movimentos indianistas e ambientalistas numa tentativa de frear a exploração do Pitinga e impedir que outros “desenvolvimentos” pudessem interferir nos mercados que eles dominam. Quando não dava mais para impedir a exploração, uma última tentativa: o dono da mina, Octávio Lacombe, morreu “acidentalmente”, uma estória não bem esclarecida. A mina foi vendida, mas ninguém mais conseguirá paralisar a exploração do estanho no Brasil. (FREGAPANI)

 

Novos Massacres

 

18.01.1973 índios atacam um posto de Atração da FUNAI, matando quatro funcionários.

 

01.10.1974 o Posto Alalau II não responde ao chamado.

 

O avião da Igreja Adventista de Manaus aquatizou. Pedimos ao Pastor que, caso morrêssemos, contasse nossos últimos desejos a nossas famílias e saímos correndo em ziguezague. Na entrada do Posto, uma cabeça estava equilibrada no batente da porta. Era do companheiro Faustino Faria [...] No ataque morreram seis servidores da FUNAI, todos índios aculturados. Três mortos no Posto, por Comprido, Bornaldo e seus guerreiros; três, no Rio Alalau, massacrados pelo Chefe Elza quando se dirigiram para o Posto em uma canoa.

 

18.11.1974 dia que ficou conhecido como o “Massacre dos Maranhenses”. Quatro trabalhadores maranhenses, da turma de desmatamento, foram emboscados e mortos.

 

29.12.1974 Às 06h00, Ivan foi se banhar no Rio e, em meio à névoa que cobria a água, ouviu uma fuzilaria. E então, apesar do nevoeiro, viu Gilberto Pinto na porta do posto agitando os braços, enquanto os Uaimiri-Atroari o cercavam. Ivan não esperou mais. Saiu correndo pelo mato em busca de socorro no acampamento do 6° Batalhão de Engenharia de Construção [6° BEC], onde chegou esbaforido às 08h00. (SABATINI)

 

No massacre do Posto Abonarí II, morreram o sertanista Gilberto e dois outros companheiros, um foi considerado desaparecido e um outro escapou.

 

 “Guerreiros” Uaimiri-Atroari

 

Os ataques dos Uaimiri-Atroari, nas últimas sete décadas, se caracterizaram, sistematicamente, por emboscadas cruéis e covardes aproveitando-se, em diversas oportunidades, da boa-fé e amizade que lhes devotavam funcionários do SPI ou FUNAI. As atrocidades cometidas contra funcionários desarmados e suas famílias por grupos numericamente superiores não fazem, absolutamente, jus à sua pretérita e tão propalada fama de “guerreiros”.

 

Execráveis Acusações

 

Infelizmente indigenistas como José Porfírio Carvalho e prelados como o do Padre italiano Silvano Sabatini apontam o Exército e a Força Aérea Brasileiras como responsáveis pelo genocídio dos UA. Baseados em relatos orais infundados afirmam nos seus livros que estas Forças teriam atirado em indígenas desarmados e usado armas biológicas para diminuir a agressividade dos UA. Se verificarmos o padrão dos massacres, vamos notar que eles só atacavam quando sua superioridade numérica era considerável e quando suas vítimas não tinham qualquer possibilidade de reagir. Para garantir a segurança dos trabalhadores da BR-174 foi determinado que os grupos não trabalhassem dispersos e que se tivesse uma força de dissuasão pronta para agir, caso necessário.

 

Massacres reportados pela Mídia

 

Revista Veja, 08.01.1975

 

A revista VEJA na sua edição de número 331 assim reportou o ataque da manhã de domingo do dia 29.12.1974:

 

ÍNDIOS ‒ Outro Massacre

 

Flechas cruzadas com penas de arara vermelha são um seguro indício de que os índios Uaimiri-Atroaris planejam um ataque. Para a delegacia da Fundação Nacional do índio [FUNAI], em Manaus, estes sinais de guerra encontrados no Posto Abonarí-II, às margens da rodovia BR-174, ao Norte do Amazonas, no último dia 26, eram apenas uma pequena mentira de dois de seus mateiros que queriam passar o ano novo em casa. Na manhã de domingo, dia 29, os Atroaris, responsáveis pela chacina da Expedição do Padre Calleri, em 1968, atacaram e mais uma vez cumpriram com exemplar regularidade uma das características de suas devastadoras incursões: deixaram um sobrevivente. Às 06h00, o índio aculturado Ivã Lima Ferreira abandonou uma das casas do Posto, onde esteve escondido por mais de uma hora, e foi pedir socorro aos soldados do 6° Batalhão de Engenharia de Construção do Exército, no quilômetro 220 da BR-174, que liga Manaus a Caracaraí, em Roraima. No Posto o sertanista Gilberto Pinto de Figueiredo e mais três ajudantes estavam mortos a flechadas e a golpes de borduna e facão.

 

Não tão Pacíficos ‒ Em 33 anos de contato com os Atroaris, a FUNAI parece ter aprendido muito pouco sobre seus métodos de vida, pois, apesar de ter perdido 62 homens, considerava-os “praticamente pacificados”. Desde 1950, catorze missões de contato foram liquidadas pelos guerreiros e, nos últimos três meses, três ataques mataram catorze pessoas. O ataque do dia 29 mostrou não apenas que os Atroaris não estão pacificados mas também que a FUNAI prefere considerar todos os índios sob sua guarda e responsabilidade tão pacíficos, infantis e curiosos quanto os que confraternizaram com a Expedição de Pedro Álvares Cabral, em 1500. O engano custou-lhe a morte do sertanista mais capacitado para a pacificação deste grupo indígena. Figueiredo conhecia os Atroaris desde os primeiros contatos, considerava-os inteligentes e astutos em suas táticas de guerra, e era chamado pelos guerreiros de “Pai Gilberto”. Esta intimidade fez com que a Funai, em lugar de evacuar o Posto ameaçado, o enviasse ao Abonarí-II numa operação de rotina.

 

Mateiros Fictícios ‒ “Vou porque não sou covarde”, teria dito o sertanista a mulher e aos nove filhos, na despedida, segundo o Jornal “A Notícia”, de Manaus. A mesma fonte colocaria mais tarde a FUNAI em comprometedora contradição. Figueiredo teria dado a notícia da ameaça indígena ao Jornal, pedindo para não ser citado. Então, inventou-se a história dos mateiros, e nada se fez. O relato parece algo fantástico, mas não chegou a ser desmentido. As informações sobre o que ocorreu no Posto ainda são poucas, pois o sobrevivente Ferreira entrou em estado de choque. Sabe-se, contudo, que no sábado Figueiredo encontrou 27 Atroaris liderados pelo Chefe “Capitão Comprido”, significativamente sem suas mulheres e crianças. Após uma amistosa conversa, os índios ficaram para dormir, tendo a delegacia de Manaus recebido informações de que estava tudo bem. Na manhã seguinte, atacaram. É possível que o experiente sertanista tenha se enganado sobre os indígenas, mas do depoimento detalhado de Ferreira deverão surgir informações mais convincentes. Pois, apesar de guerreiros valentes, os Atroaris sofriam muitos problemas com a invasão de suas terras. Num relatório ao comando do 6° BEC, em 1973, o mateiro André Nunes escreveu:

 

A avidez dos índios pelos alimentos dos operários é enorme. Eles comem sal com tanta volúpia que podem ser comparados a um rebanho bovino. (REVISTA VEJA, N° 331)

 

Jornal o Globo, 04.04.1977

 

O jornal O Globo publicou uma reportagem intitulada “De Manaus a Boa Vista, pelo território dos índios”. Ao chegar ao Rio Alalau, fronteira entre os Estados do Amazonas e Roraima o repórter faz um retrospecto dos acontecimentos passados:

 

Na Margem do Rio, Local de dois Massacres

 

No trecho indígena a estrada tem o melhor piso de todo o percurso, talvez intencionalmente, para evitar acidentes que poderiam provocar encontros entre brancos e índios. É também um dos trechos mais bonitos, com a floresta cerrada e Igarapés de águas limpas visíveis da pista. Às 13h00 o ônibus chega ao Rio Alalau. É um Rio típico da região amazônica: superfície calma, disfarçando a corrente que desce por uma cachoeira avistada ao longe; margens cobertas de vegetação, com árvores esguias e altas que disputam um pouco de Sol, no alto de suas copas. Aqui, em 17.01.1973, os Uaimiri-Atroaris massacraram a golpes de borduna e terçado três funcionários da FUNAI, Rafael Padilha, Ernesto Nascimento de Aguiar e Altamir Aguiar. Em 02.10.1974, eles voltaram a atacar, matando mais seis funcionários da Fundação. Um sobrevivente relatou a seus superiores o que acontecera no Posto. Sua história contribuiu para aumentar o desconcerto dos sertanistas em relação aos Uaimiri-Atroaris. Ela também confirma o caráter de “verdadeiros guerrilheiros” que o sertanista Apoena Meirelles atribui aos índios da Amazônia ‒ Uaimiri-Atroaris. Na manhã do dia 1° de outubro o sobrevivente Adão Vasconcellos recebeu, com mais seis companheiros que estavam no Posto do Alalau, a visita de 13 Uaimiri-Atroaris, chefiados pelo Capitão Comprido. Eles pediram presentes e os receberam. À noite Adão notou que os cartuchos de sua espingarda de caça tinham sido retirados. Um companheiro disse a ele que Comprido estivera em seu alojamento durante a tarde. Na manhã seguinte um dos índios aproximou-se dele e começou a alisar-lhe os cabelos. Era o sinal para o ataque. O próprio Adão levou um golpe de facão que lhe quebrou um braço, enquanto via seus colegas serem atacados. O cozinheiro teve a cabeça decepada por um grupo de índios jovens. Adão conta que correu e mergulhou no Rio Alalau, enquanto os índios disparavam flechas da margem. O Capitão Comprido ainda o alcançou com uma canoa, mas quando ia matá-lo, Adão, lembrando da amizade do Cacique com o Chefe do Posto, Gilberto Pinto de Figueiredo, gritou para o índio: “Papai Gilberto”. A palavra, segundo Adão, teve um efeito mágico sobre Comprido, que o deixou no Rio e dirigiu a canoa até a margem, onde desferiu o golpe de misericórdia em um dos colegas de Adão, que também ferido, tentava fugir. Três meses depois, estranhamente, Comprido chefiou, com o Cacique Maroaga, o massacre em que o próprio Gilberto Figueiredo – “o Papai Gilberto” que os Uaimiri-Atroaris pareciam adorar – foi trucidado com mais três companheiros no Posto Abonarí II. Para cruzar o Alalau, local destes dois massacres, os passageiros, que são conduzidos com tantos cuidados até este ponto da viagem, abandonam o ônibus e embarcam na balsa controlada por um grupo de sete homens a serviço do 6° BEC.

No caso do ônibus da SOLTUR do dia 30 de março passado, os passageiros chegaram a cruzar o Rio com outros carros, enquanto o ônibus esperava uma nova viagem da balsa.

 

No Posto dos Balseiros, Fuzis Mauser

 

Foi a este local que, na noite do dia 24 de março passado, chegaram cerca de 120 Uaimiri-Atroaris. O funcionário que comanda a operação da balsa tem a resposta esperada para a pergunta sobre a visita dos índios:

 

−  Eles só queriam brindes.

 

Mas o responsável pela cozinha, que os companheiros chamam de João do Rancho, tem uma história melhor para os curiosos:

 

−  Eles estavam a fim de matar a gente − garante ele −; vieram ai com uma história de criança morta na cachoeira para levar a gente para longe da base e do Posto da FUNAI [que fica a 300 metros da balsa]. Os primeiros que chegaram eram poucos e estavam desarmados. Mas a gente descobriu que estava cheio de índios e que as flechas e os arcos estavam todos ali na beira do Rio.

 

João do Rancho exibe com orgulho seu companheiro inseparável, encostado ao fogão: um fuzil Mauser, militar. Com a culatra aberta, apoiada a uma das traves do galpão que serve de cozinha, está uma espingarda de caça. O Posto dos balseiros fica sobre estacas, com o assoalho bem acima do chão. Entra-se no Posto por um alçapão que se alcança por uma estaca móvel, para ser retirada à noite. No telhado do Posto uma placa: “Bem-vindo a Roraima”. Enquanto os balseiros tratam de atravessar o ônibus, João do Rancho aproveita a plateia interessada para mostrar sua valentia:

 

−  Comigo não tem conversa com índio. Ainda mais que a FUNAI não nos deixa fazer negócio com os passarinhos que eles tentam trocar aqui. Eles nos chamam de marupá e de peruanos quando falam com os funcionários da FUNAI. E por isso que a gente tem que manter essa bichinha aqui [aponta para o fuzil Mauser].

 

João do Rancho talvez não conheça a história do último diálogo que o Padre João Calleri teve com os Uaimiri-Atroaris antes de ser trucidado com nove componentes de sua Expedição ao Posto indígena do Rio Camanau, em 30.11.1968. Segundo o único sobrevivente do massacre, o Padre Calleri viu índios tirando colheres do acampamento. De surpresa, o Padre Calleri agarrou um índio e lhe disse:

 

−  Aqui Padre Marupá. Espingarda pô! [imitando o ruído de um tiro]. Índio morre.

 

Os índios abandonaram o acampamento e voltaram no dia seguinte para dizimar a Expedição, com exceção de Álvaro Paulo da Silva, que pressentiu o perigo dos métodos do Padre e abandonou o acamamento. [...] (JORNAL O GLOBO, 04.04.1977)

 

Estado Ilhado

 

O fechamento da BR-174 prejudica, sensivelmente, o Estado de Roraima. O Estado fica ilhado à noite, via terrestre, porque a reserva, cortada pela BR-174, única rodovia que liga Roraima ao resto do Brasil, fecha às 18h00 e só reabre às 06h00. O Estado de Roraima está lutando na Justiça para desbloquear a BR e liberar o tráfego 24 horas por dia.

 

Se tudo o que há é Mentira

(Fernando Pessoa)

 

Se tudo o que há é mentira

É mentira tudo o que há.

De nada nada se tira,

A nada nada se dá.

 

Se tanto faz que eu suponha

Uma coisa ou não com fé,

Suponho-a se ela é risonha,

Se não é, suponho que é.

 

Que o grande jeito da vida

É pôr a vida com jeito.

Fana a rosa não colhida

Como a rosa posta ao peito.

 

Mais vale é o mais valer,

Que o resto ortigas o cobrem

E só se cumpra o dever

Para que as palavras sobrem.

 

Fariseus da Comissão da Mentira

 

Ainda que eu testifico de mim mesmo, o meu testemunho é verdadeiro, porque sei de onde vim, e para onde vou; mas vós não sabeis de onde venho, nem para onde vou. (Bíblia Sagrada, João 8:14)

 

Nós somos sábios, e a lei do Senhor está conosco? Mas eis que a falsa pena dos escribas a converteu em mentira. (Bíblia Sagrada, Jeremias 8:8)

 

É o que ele faz em todas as suas cartas, nas quais fala nesses assuntos. Nelas há algumas passagens difíceis de entender, cujo sentido os espíritos ignorantes ou pouco fortalecidos deturpam, para a sua própria ruína, como o fazem também com as demais Escrituras.
(Bíblia Sagrada, II Pedro 3:16).

 

Porque vos digo que, se a vossa justiça não exceder em muito a dos escribas e fariseus, de modo algum entrareis no reino dos céus.
(Bíblia Sagrada, Mateus 5:20)

 

Mais uma vez os hipócritas da “Comissão da ‘In’Verdade”, que queriam impor na “Terra Brasilis” o “democrático” regime comunista, tentam denegrir a imagem do Exército Brasileiro acusando-o agora de extermínio de índios Waimiri Atroari. Baseados em testemunho de personagens sem nenhuma credibilidade e fazendo afirmações sem apresentar qualquer tipo de provas fundamentadas.

Participei, em 1982/3 da manutenção da BR-174, e seria no mínimo estranho, para não dizer surreal, que aqueles que hoje nos acusam nos tratassem, na época, com tanto carinho e respeito e irrefutável confiança. Vejamos a notícia estampada em um controvertido “pasquim” nacional.

 

Folha de S. Paulo ‒ São Paulo, SP

Quarta-feira, 23.08.2017

Procuradoria quer Indenização e Desculpas
a Índios por Violações na Ditadura

[Rubens Valente de Brasília]

 

O Ministério Público Federal ajuizou uma ação civil pública na Justiça Federal do Amazonas contra a União e a Funai [Fundação Nacional do Índio] pela qual requer uma indenização de R$ 50 milhões e pedido oficial de desculpas aos índios waimiri-atroari por danos sofridos pela etnia durante a ditadura militar [1964-1985]. [...] Em anexo ao relatório final divulgado em 2014, a CNV [Comissão Nacional da Verdade] calculou que 2.650 índios ([11]) waimiri-atroari tenham morrido em consequência das obras de abertura da rodovia BR-174, que liga Manaus [AM] a Boa Vista [RR]. A obra foi realizada pelo Exército de 1968 a 1977. [...] Em novembro de 1974, o responsável pelas obras, o general Gentil Nogueira Paes, então comandante do 2° GEC [Grupamento de Engenharia e Construção], subordinado ao 6° BEC [6° Batalhão de Engenharia e Construção], distribuiu um memorando autorizando as tropas a “realizar pequenas demonstrações de força, para mostrar os efeitos de uma rajada de metralhadora, de granadas defensivas e da destruição pelo uso da dinamite”.

 

DEPOIMENTOS

 

Os procuradores da República colheram depoimentos de operários e indígenas que confirmaram essas demonstrações de força. O operário Raimundo Pereira Silva disse ao Comitê da Verdade do Amazonas que os índios “eram levados em uma caçamba para o acampamento do BEC, faziam eles descerem e davam 600 tiros. Os índios ficavam tremendo”. Em depoimento aos procuradores da República, Manoel Paulino, índio da etnia karapanã contratada pela Funai para atuar na obra, disse ter visto indígenas mortos. “Eu vi corpos dos índios trazidos em uma caçamba e serem jogados no buraco da terraplanagem. Vi cinco caçambas com índios”. [...] (FOLHA DE SÃO PAULO, 23.08.2017)

 

Tive nas minhas mão o tal documento que menciona o emprego de forças de dissuasão ([12]). Após o “Massacre dos Maranhenses”, no dia 18.11.1974, era necessário tomar providências que garantissem a integridade física dos trabalhadores. Foi então que o General Gentil determinou que houvesse uma tropa garantindo a segurança das equipes destacadas. Em nenhuma oportunidade foi necessário disparar tiros para o alto ou empregar qualquer outro meio de disuassão. O histórico de ataques dos WA nos mostra que eles só atacavam quando o “inimigo” estava em menor número e/ou desarmado, o que não acontecia agora com as equipes de terraplenagem. Os indígenas, que se acercavam de nossas equipes de construção eram contemplados com produtos de nosso rancho que comiam com sofreguidão descomedida, portanto, as únicas baixas que tivemos após o histórico “Massacre dos Maranhenses” foram nossos escassos gêneros alimentícios. É interessante que, naqueles tempos, os visitava, com minha família, esposa e filhas, uma de 3 meses e outra de um ano e meio, sem qualquer temor. Pena que hoje eles tenham assimilado da “civilização” suas piores qualidades tentando à todo custo auferir lucro mesmo que tenham de vender suas almas ao próprio diabo. É justa a interrupção, a partir das 18h00, de uma Estrada Federal? É correto deixar o Estado de Roraima, refém da energia produzida pela convulsionada Venezuela quando poderíamos construir um linhão atravessando a reserva WA levando energia de Tucuruí e ao Sistema Integrado Nacional (SIN)?

 

Fontes:

 

CARVALHO, José Cândido de Melo. Notas de Viagem ao Rio Negro ‒ Brasil ‒ São Paulo ‒ Edições GRD, 1983.

 

FOLHA DE S. PAULO, 23.08.2017. Procuradoria quer Indenização e Desculpas a Índios por Violações na Ditadura ‒ Brasil ‒ São Paulo, SP ‒ Folha de S. Paulo, 23.08.2017.

 

FREGAPANI, Gélio. No Lado de Dentro da Selva II ‒ Brasil ‒ Brasília ‒ Thesaurus Editora, 2009.

 

JORNAL O GLOBO, 04.04.1977. De Manaus a Boa Vista, pelo Território dos Índios ‒ Brasil ‒ Rio de Janeiro, RJ ‒ Jornal o Globo, 04.04.1977.

 

REVISTA VEJA, N° 331. ÍNDIOS ‒ Outro Massacre ‒ Brasil ‒ São Paulo, SP ‒ Revista Veja, n° 331, 29.12.1974.

 

SABATINI, Silvano. Massacre ‒ Brasil ‒ São Paulo ‒ CIMI ‒ Edições Loyola, 1998.

 

 

Solicito publicação:

 

(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;

Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)

Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);

Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);

Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);

Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)

Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);

Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);

Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);

Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)

Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);

Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)

Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).

Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).

E-mail: hiramrsilva@gmail.com;

Blog: desafiandooriomar.blogspot.com.br



[1]    Coetânea: da época.

[2]    15 de maio de 1856.

[3]    Igarité: espécie de chata.

[4]    Maqueiras: redes.

[5]    Cendais: tecidos.

[6]    República Cooperativa da Guiana: antiga Guiana Inglesa.

[7]    Suriname: antiga Guiana Holandesa.

[8]    Kron: como os Wai-Wai têm dificuldade em emitir alguns sons eles adaptaram os nomes dos brancos chamando Claude Lcawitt de “Kron”.

[9]    Bura kiri: forquilhas de madeira, em língua Wai-Wai.

[10]  Bordunas: tacapes.

[11]  O mais interessante é que nunca foi, em tempo algum, realizado qualquer tipo de recenceamento oficial da mencionada população indígena. Visitei, quando comandava a 1ª Cia de E Cnst, as seis aldeias dos WA, quando lá estava, e a população de cada uma delas era inferior a 100 indivíduos.

[12]   Esclarece-nos o Dicionário Michaelis:

     Dissuadir: fazer [alguém ou a si mesmo] mudar de ideia, abandonar uma decisão; despersuadir[-se]: “A senhora podia […] dissuadi-lo de tais ideias, dizendo-lhe simplesmente a verdade e dando-lhe conselhos […]”. Dissuadiu-se de viajar quando soube da grande festa.

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  • Visita à Aldeia UA da Terraplenagem
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  • Minas do Piting ... veiro, Giorgio e Baines
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