Quinta-feira, 7 de abril de 2022 - 06h00
Bagé, 09.04.2022
O
Coronel de Engenharia Zauri Tiaraju Ferreira de Castro parceiro de trabalho no
6° BECmb, São Gabriel, RS, (quando eu era ainda um jovem Tenente), e
ex-prefeito de Caçapava do Sul no período de 2009/2012, enviou-me outro texto
de sua autoria que faço questão de compartilhar com os eleitores.
O SERTANISTA
Em
meados de 1974, como já disse antes, rasgava-se em pleno coração da selva
amazônica uma ligação coronária de terra e piçarra, entrecortada por várias
pontes de safena feitas com madeira de lei abundante nas cercanias daquele
risco avermelhado civilizadamente denominado BR-174.
Vivia-se
o mês de agosto ou setembro, pode ser que até outubro, não lembro bem o certo,
mas já havia virado o meio do ano e luta-se como era de costume, contra a falta
de tecnologia e o improviso, carência de mão-de-obra especializada, intempéries
e desregramentos do clima da região, cerca de uns 150Km ao Sul da linha
imaginária do Equador. Nós, os Tenentes, jovens oficiais do 6° Batalhão de
Engenharia de Construção do Exército, Mão Amiga e Braço Forte, de que tanto a
Amazônia inexplorada e não ocupada precisava naqueles tempos de pioneirismo,
reagíamos, contra as ordens gélidas emanadas da sede, em Boa Vista, que nos
impunham procedimentos técnicos quase que irrealizáveis.
Isso
dificultava a execução e predispunha nossas vontades negativamente. Por mais
que se fizesse nunca estava bom. Mas, lutávamos. Aos trancos e solavancos a
estrada caminhava, experimentando atalhos compensadores e premiando em si
mesma a criatividade dos funcionários civis e militares batalhadores,
bandeirantes do século XX. Cumpria-se com um pouco de atraso o Plano de
Trabalho – PT do Batalhão para aquele ano, fruto de convênio assinado pelo
Departamento de Engenharia de Construção do Exército com o Governo Federal
representado pelo então DNER. No conjunto heterogêneo da obra como um todo,
exteriorizava-se um belo complexo de integração que permitia ocupar as
fronteiras mais Setentrionais do País, levando ao povo quase desconhecido do
território de Roraima, por terra, um pouco mais de desenvolvimento econômico e
brasilidade. No detalhe do dia-a-dia do serviço na selva desconhecida, o
cômico, o trágico e o pitoresco se misturavam e se confundiam. Essas pequenas
estórias formam um grande mosaico de lembranças, perpetuadas como saudável
recordação para quantos tantos fizeram parte, na condição de protagonista ou de
coadjuvantes, dos seus meandros espetaculares.
É
dentro deste contesto que conheci alguns sertanistas da Fundação Nacional do
Índio (FUNAI ), abnegados ermitões daqueles matos repletos de onças, índios,
malárias e dificuldades sem fim. Entenda-se por sertanista, neste caso, toda
pessoa que conhece, explora ou percorre os grotões. Aventura-se penetrá-lo em
busca de caças, riqueza fácil ou para cumprir obrigação funcional de amansar
índio arredio, selvagem. O nosso personagem deste causo verídico, difere um
pouco em seus aspectos básicos em relação ao conceito acima transcrito, mais
tradicional.
Trata-se
de um habitante da margem esquerda do Rio Abonarí, afluente do Uatumã, que é
cortado pela BR-174, no estado do Amazonas, cerca de 240 Km ao Norte de Manaus.
Nesse confim de mundo, em pleno coração da floresta equatorial inóspita e pouco
conhecida, em 1974, instalado em grosseira construção de madeira habitada por
cinco pessoas índias, aculturadas, não oriundas do lugar, chefiava o Posto de
atração Abonari, da FUNAI. Sua missão era manter contato civilizatório com os
índios da tribo Waimiri-Atroari. Essa relação já durava 12 anos num puxa e
frouxa de intensidade intercalada por incidentes e acidentes dos mais diversos.
Fora
essa tribo de conhecida agressividade e de um desenvolvimento cultural da idade
da pedra que, em 1968, na mesma região, massacrara a expedição indigenista
chefiada por um padre italiano de nome Caleri em circunstâncias não bem
esclarecidas da qual resultou apenas um sobrevivente, Paulo Mineiro, que
escapou navegando numa balsa rústica por cerca de 13 dias até Manaus. Com a
construção da “Estrada da Integração”,
Manaus-Boa Vista, os contatos foram novamente intensificados com trocas de
presentes, visitas recíprocas, caçadas e pescarias conjuntas, inevitáveis, já
que o traçado da rodovia cortava o território dos índios, inclusive a menos de mil
metros de algumas malocas.
Nosso
Sertanista, um sulista gaúcho de Cachoeira do Sul, de nome de guerra Machado,
alistou-se voluntariamente para a função em Brasília e após curto estágio no
Parque Nacional do Xingu, Com os Xavante, foi destacado para o posto a que nos
referimos meio sem pai e nem mãe, naquele cafundó.
Adaptou-se
rapidamente, convivendo com seus cinco comparsas, funcionários da FUNAI, todos indígenas
aculturados de outras tribos e acabou se integrando ao contexto da aventura
amazônica. Caçava, pescava, comia farinha grossa de macaxeira que abundava na
região, escrevia muitas cartas, ouvia rádio, inclusive o oficial com o qual se
comunicava com sua chefia em Manaus. Seu meio de locomoção era o barco a motor
ou caroneando ao longo das nossas frentes de serviço daquele trecho e cujo
acampamento principal, ao qual eu pertencia na condição de chefe
administrativo, ficava há 6 Km pela selva do posto onde vivia o Machado.
Possuíamos
um efetivo de mais de 400 homens, sendo sete oficiais, uns 70 militares e cerca
de 300 contratados civis de toda parte do Brasil, com a maciça predominância
dos maranhenses. Nossas equipes se espalhavam por mais de 50 Km. A mais
avançada era a de desmatamento, cujo desempenho de cinco tratores D8 rendia em
torno de um quilômetro por dia, trabalhado em tempo de seca. No inverno, quando
o tempo era chuvoso, os trabalhos eram paralisados totalmente.
No
final de dezembro de 1975, 27 índios armados aportaram suas canoas em visita ao
posto do Abonari. Pernoitaram, alguns caçaram jacaré e paca à noite junto com o
pessoal da FUNAI. Uns 8 deles visitaram o nosso acampamento sede durante um
final de tarde, quando só existia uma reduzida guarnição de serviço constituída
por uns 10 homens a qual eu comandava, tendo chegado de surpresa,
desacompanhados de civilizados. O grosso do efetivo encontrava-se na dispensa
de final de ano, civis e militares.
No outro dia, pela manhã, percorremos a pedido da FUNAI, um
trecho de uns 30 Km da estrada já pronta na carroceria de um caminhão, eu dois
soldados e os índios. Como não falavam e nem entendiam nossa língua, não obtive
sucesso na missão que me foi confiada pelo major Bonilha, Engenheiro de Boa
Vista, para convencê-los de que somente a estrada era nossa, a mata continuava
deles, sem limitações para movimentação, sobrevivência, caça, pesca etc.
No
terceiro dia, cedinho, quando preparavam as canoas para partir, desfecharam o
ataque já planejado contra os homens da FUNAI que os recepcionaram no posto.
Quatro dele foram mortos a flechadas e a golpes de terçado, fugindo em
debandada para o interior da floresta, talvez em defesa do seu território
invadido pelos brancos que tentavam abrir uma estrada para lhes perturbar a
paz e poluir o seu habitat com as consequências do progresso incompreendido e
invasivo.
Sobrou
um para contar a história, escapando com vida pela ousadia de um mergulho
apavorado e mais 60 metros de nado nas águas do rio selvagem.
Auxiliei
no resgate dos corpos e senti a grande emoção de entrar na floresta a pé,
armado para a guerra com uma metralhadora INA embalada, sem saber do inimigo
que não enxergava. Morreu nesse episódio o Sertanista Gilberto Pinto da
regional de Manaus que viera em socorro ao posto, momentaneamente sem chefe.
Foi atravessado por duas flechas de ponta de aço pelas costas. Coube a mim a
missão de cortar suas hastes de bambu, já que as lâminas de aço bem afiadas só
foram extraídas na realização da necropsia.
Carregamos
os corpos em uma balsa de circunstância que fabricamos no local, utilizando
dois ubás esquecidos pelos índios que levaram as canoas da FUNAI, unidos por
duas portas que arrancamos da casa depredada. Nosso sertanista Machado que se
encontrava em férias no Rio Grande, retornou ao posto convocado por um
telefonema da sua direção que lhe interrompia as férias depois da tragédia.
Honrado e envaidecido agradeceu a Deus por lhe haver permitido viver mais algum
tempo. Entendia que já fizera a sua parte em prol da integração e do
desenvolvimento da Amazônia. Pediu as contas e foi-se embora, abandonando o
plano de ser um novo Villas Boas.
Naqueles
14 meses em que servi por lá, houve diversos massacres, vitimando 12
funcionários da FUNAI e alguns índios em menor número. Até hoje, passados mais
de 30 anos, ainda sonho com operações daquele tipo, tal foi o sentimento de
insegurança em que vivemos esse arremedo de guerra de guerrilha na selva.
Enquanto
isso, o tempo passa e eu cada vez mais me dou conta que o velho amigo Machado
que depois virou funcionário da CEEE, naquele final de 1975, entrou na fila da
vida ou, saiu da fila da morte. O serviço da estrada parou por cerca de seis
meses, porquanto se discutiam nos gabinetes a solução para a segurança da
continuidade das obras. Os Atroari hoje vivem aculturados na beira da estrada,
esperando na fila da evolução que o seu mundo se transforme para o bem e
aqueles que lá pereceram a certeza de que já foram esquecidos e de que, como é
comum nesse nosso país gigante, ninguém sabe que muitos morreram e sofreram
pelo desbravamento desse naco de Brasil rico, imenso e poderoso.
Quando
rememoro essas passagens, sinto uma imensa alegria interior e o orgulho de ter
podido participar de uma grande luta anônima pelo início do desenvolvimento da
Amazônia e de seu povo sofrido e pacífico. Foi por esse motivo, para poder
vivenciar essas aventuras que escolhi a Arma de Engenharia através da qual
conheci e vivi na Amazônia Brasileira por cerca de 4 anos, abrindo picadas para
o desenvolvimento e a integração nacional de fato. Ainda carrego no fígado as
marcas de uma malária “falcíparum”,
curada na distância de São Gabriel, recebendo cloroquina e primaquina pelo
correio. Lá de vez em quando, ela me relembra que ainda sou hospedeiro e que
por isso estou proibido de doar meu sangue.
Solicito Publicação
(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de
Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;
· Campeão do II
Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
· Ex-Professor
do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);
· Ex-Pesquisador
do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
· Ex-Presidente
do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
· Ex-Membro do
4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
· Presidente da
Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
· Membro da
Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
· Membro do
Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
· Membro da
Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
· Membro da
Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
· Comendador da
Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
· Colaborador
Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
· Colaborador
Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
·
E-mail: hiramrsilva@gmail.com.
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Bagé, 06.12.2024 Continuando engarupado na memória: Jornal do Brasil n° 186, Rio de Janeiro, RJSábado, 10.08.1963 Lacerda diz na CPI que Pressõessã
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – III
Bagé, 02.12.2024 Continuando engarupado na memória: Jornal do Brasil n° 177, Rio de Janeiro, RJQuarta-feira, 31.07.1963 JB na Mira O jornalista H