Segunda-feira, 1 de junho de 2020 - 09h08
Bagé, 01.06.2020
Cerâmica, Cultura na Ponta dos
Dedos
A primeira notícia a
respeito de artefatos de Cerâmica na Bacia do Rio Amazonas foi transmitida pelo
Frei Gaspar de Carvajal, em maio de 1542, no seu “Relatório do Novo Descobrimento do Famoso Rio Grande Descoberto pelo Capitão
Francisco de Orellana”, quando o clérigo espanhol comparou o grau de
perfeição das figuras e desenhos encontrados nas louças do Rio da Trindade ([1])
à dos romanos. A Bacia do Rio-Mar foi, em tempos pretéritos, um caminho natural
utilizado por diversos agrupamentos humanos que deixaram, nas suas margens,
sinais definitivos de sua passagem, de sua história, crenças, costumes e grau
de desenvolvimento através da Cerâmica. Os estudos destes sítios arqueológicos
vêm permitindo que sejam reconstituídas algumas dessas rotas migratórias bem
como as relações que estes povos mantinham entre si.
Tenho procurado,
sistematicamente, encontrar vestígios de antigas culturas materializados na Arte
da Cerâmica nos museus e coleções particulares e considero, dentro todas, a
mais criativa, mais elaborada e mais intrigante a dos Tapajó. As peças mais
sofisticadas desta cultura eram empregadas em complexos cerimoniais religiosos
e funerários.
Cada peça moldada a mão
era única, decorada com maestria e cuja riqueza de detalhes antropomorfos e
zoomorfos me levaram a apelidá-la de “Cerâmica
Barroca Tupiniquim”.
A
Arte da Cerâmica
Na
Cerâmica, essencialmente combinamos: terra, água, ar e fogo, mas não somos
alquimistas. Somos empiristas. Ombreamos uma picareta e saímos por aí, à
procura de barro. Um buraco aqui, outro ali e vamos enchendo a carroça deste,
daquele e do outro tipo. Arregaçamos as mangas e vamos preparando a massa até
chegar a uma certa maneabilidade. Aí começa a fecundação: formas vão se
criando. Orgasmos se prolongam entre uma e outra relação e o espaço vai se
adornando de princípios intuitivos, forma-se uma coletividade que pacientemente
aguarda o fogo do forno. O forno é a grande mãe, ora aborta, ora dá filhos
sadios e bonitos. O fogo é a eternidade, é o êxtase da comemoração, é lá que se
rompe a casca do ovo, que se transpira o sangue e reflete o poder das forças da
natureza em expansão latente. A chama incute a vida às formas na cor do Sol
mais quente, no movimento que vibra e irradia emoção intensa. Terminada a
queima, resfriado o forno, abrem-se as portas das câmaras e visualiza-se o
estonteante milagre da transformação dos materiais, que morre para viver outra
vez. [...] A Cerâmica já não é mais Cerâmica ou arte: é cabeça, corpo e coração
que se envolvem numa ânsia elástica. (BITAR)
A arte do barro imerge
o ceramista no âmago da mãe terra, uma torrente telúrica migra das terras e das
águas para suas hábeis mãos, as energias planetárias inspiram-no, seduzem-no, e
ele abandona o casulo da criatura, ganha asas e se transforma no criador, por
breves momentos ele tem a oportunidade de se sentir um pequeno deus.
O ceramista inicia seu
labor, impregnado dessas forças mágicas, concentra-se e parte para a confecção
de sua obra com segurança graças ao conhecimento dos materiais e das técnicas a
serem empregadas, herdadas dos seus ancestrais. O seu envolvimento, porém,
inicia-se muito antes do trabalho nas oficinas com a escolha da jazida, da
argila adequada e da seleção dos elementos de liga.
A coleta da argila é
realizada nas barrancas, margens ou leito de Rios ou Igarapés no período da
vazante.
Qualquer
que seja o seu nome – Mãe-Terra, Avó da Argila, Senhora da Argila e dos Potes
de Barro, etc. –, a padroeira da Cerâmica é uma benfeitora, já que os homens
lhe devem, dependendo da versão, a preciosa matéria-prima, as técnicas
cerâmicas ou a arte de decorar os potes. Mas, ao mesmo tempo, os mitos
considerados mostram que ela tem um temperamento ciumento e rabugento. Em um
mito Jivaro [povos aborígenes peruanos e equatorianos], ela é a causa do ciúme
conjugal. Em outro mito, também dos Jivaro, cobra caro o seu auxílio. Mostra-se
carinhosa e ciumenta em relação às suas alunas, prendendo-as sob a terra para
mantê-las ao seu lado, ou então impõe numerosas restrições quanto ao período do
ano, o momento do mês ou do dia em que lhes é permitido extrair argila.
(LÉVI–STRAUSS)
São retiradas três
camadas do solo: a primeira orgânica, rica em detritos de origem vegetal e a
segunda camada, um pouco mais limpa, são descartadas; a escavação continua até
se chegar à terceira camada onde se encontra o “barro bom”. Normalmente os artífices só exploram as jazidas uma
única vez para não perturbar as entidades do barro. Esta fase demanda grande
esforço físico e, por isso mesmo, é, normalmente, atribuída aos homens. A
verificação da qualidade do material é feita na própria mina através do tato,
moldando pequenos roletes de argila, ou pelo paladar.
Depois de transportado
para as “oficinas”, o produto é
minuciosamente examinado para que se retirem fragmentos de origem orgânica ou
mineral e, depois disso é, habitualmente, deixado em repouso por alguns dias em
cestos ou folhas de palmeira, em locais frescos para evitar seu ressecamento.
Liga
Para que a Cerâmica
possa ser levada ao fogo, sem o risco de sofrer deformações e rupturas, são
misturados a ela substâncias:
– orgânicas:
fibras vegetais, raízes, conchas, ossos, estrume;
– inorgânicas:
areia, terra, mica, pedras calcárias, grãos de quartzo, feldspato;
– biominerais:
cascas de árvores ricas em sílica [caripé], cauxi;
– cacos de Cerâmica triturados.
Caripé (Licania
Octandra)
As cinzas de sua casca,
misturadas à argila, aumentam a resistência da peça confeccionada. A árvore é
cortada e sua casca retirada e levada ao fogo. As cinzas são piladas e coadas,
resultando num pó fino de coloração cinza escuro.
Cauxi
(Porifera, Demospongiae)
As esponjas de água
doce pertencem à classe Demospongiae, têm como característica básica a produção
de um esqueleto de espículas de Óxido de Sílica que possuem um aspecto de
agulhas transparentes ou opacas, com extremidades ligeiramente curvas. Essas
espículas, devido à sua constituição mineral, após a morte e putrefação das
esponjas, são liberadas da matriz de colágeno, que as mantém unidas em feixes
estruturais e, assim permanecem nos sedimentos, disponíveis até que os
banzeiros as propaguem no meio líquido. Dr. Alfredo da Matta faz a seguinte
consideração a respeito do espongiário:
Ora, por que o sagaz e
astuto caboclo, ou o nordestino observador já identificado com o meio
amazonense, não entra em Rio que tenha cauxi, nele não se banha e não bebe a
água daí retirada?
Porque o silvícola,
através gerações, ensinou a cada qual que “i
cai tara”, isto é, ele se queima n’água ou a água lhe queima! E com
propriedade tão irritante para a epiderme, mais pronunciada ainda ela se torna
quando a água é ingerida, porque a inflamação da mucosa gastrointestinal poderá
por vezes apresentar sintomas alarmantes. Por tal motivo o silvícola dizia: – “cai igaure”, isto é, queima, bebedor d’água.
(DA MATTA)
A Cerâmica dos Tapajó,
no longínquo pretérito, usava como elemento antiplástico mais importante o
cauxi, que era empregado como único elemento de liga ou associado a pequenas
porções de pedras calcárias, areia e, raramente, a cacos de Cerâmica
triturados. Em virtude dos problemas causados pelo contato do corpo humano com
as finas espículas, a utilização do cauxi foi, com o passar dos anos,
abandonada.
Moldagem
Primeiramente é moldado
o fundo do vaso, obtido pela compressão da massa sobre uma superfície plana e
lisa (tábua, esteira ou casco de quelônio), até formar uma base achatada,
homogênea e circular. Concluída esta etapa, partia-se para a preparação dos
roletes de argila que, de acordo com o tamanho, eram comprimidos entre as mãos,
sobre a coxa, ou uma tábua e sobrepostos de forma circular um sobre o outro a
partir de uma base, em forma de anéis ou espirais para a elevação da parede do
recipiente.
A cada rolete
acrescentado, as peças recebiam um acabamento interna e externamente para
eliminar os vestígios deixados pela técnica do acordelado ([2]),
tornando as paredes mais lisas e finas.
Depois de devidamente
modelada, a peça era levada para secar em local fresco e arejado à sombra;
dependendo da espessura das paredes, este processo podia levar vários dias. A
secagem à sombra era uma fase importante, pois uma exposição direta ao Sol ou
ao forno ocasionaria danos à peça.
Depois de parcialmente
seca, tem início a raspagem, quando se procura eliminar as asperezas com o auxílio
de sementes, conchas, pedaços de cabaça, seixos rolados, cocos (palmeira inajá
– Maximiliana Maripa Aublet Drude), ou outros materiais disponíveis. Depois de
raspada, ela é lixada com a folha áspera de algum arbusto (Dileniacea sp.).
Procede-se, então, à decoração da peça: são feitas incisões geralmente com
motivos geométricos e, somente agora, são aplicados os apêndices tais como
alças, asas, figuras zoomorfas e antropomorfas. É necessária, então, uma
segunda secagem para enrijecer a Cerâmica dos apliques, antes de se partir para
a queima.
Queima
Uma
diferença insignificante na escolha das argilas, das coberturas, dos pigmentos
ou das temperaturas de cozimento podem reduzir a nada a obra de uma semana ou
até mesmo de um mês. Desse modo, a preocupação com a segurança induz o
ceramista a reproduzir fielmente os materiais e os modos de fabricação que ele
sabe por experiência que são os mais apropriados para evitar um desastre. Tudo
leva o artesão a seguir um caminho direto e definido. Afastar-se dele para um
lado ou para o outro pode trazer consequências trágicas no plano econômico...
Daí um espírito profundamente conservador, uma desconfiança em relação a todas
as inovações que repercute na visão global do mundo e da vida. (LÉVI–STRAUSS)
A queima geralmente
antecede à decoração pintada. Para queima, arma-se uma fogueira, cujo tamanho
varia em função da peça a ser queimada, em geral usa-se lenha e casca de
árvores em arranjo cônico envolvendo o artefato; isto garante uma queima mais
uniforme.
As peças grandes são
queimadas individualmente e as pequenas em grupo, emborcadas no interior da
fogueira, apoiadas em três pedras onde são totalmente envolvidas pelo fogo
durante uma ou duas horas. Eventualmente os vasos são reposicionados de modo a
queimar por igual.
A queima é realizada ao
ar livre e a impermeabilização da superfície é feita com a seiva da entrecasca
de árvores (Ingá spp.). Os grafismos são pintados com pigmentos orgânicos e
inorgânicos através de variadas técnicas, como a incisão, a marcação com malha,
a inserção de apliques, entre outros. O tom vermelho pode ser obtido com o uso
do urucum, o branco com o caulim, o preto com o jenipapo, o carvão ou fuligem.
A vitrificação do vasilhame era obtida com a aplicação de resinas vegetais como
o breu de jutaí, a resina de jatobá ou o leite de sorva ([3]).
Bibliografia:
BITAR,
Rosana. Arte e Transcendência a Obra de
Ruy Meira ‒ Brasil ‒ Pará ‒ Estacon Engenharia, 1991.
CARVAJAL,
Gaspar de. Relatório do Novo
Descobrimento do Famoso Rio Grande Descoberto pelo Capitão Francisco de
Orellana – Brasil – São Paulo – Consejería de Educación – Embajada de
España – Editorial Scritta, 1992.
DA
MATTA, Alfredo. Cai e Cauxi – Brasil
– Manaus – Revista do Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas, 1934.
LÉVI–STRAUSS,
Claude. A Oleira Ciumenta – Brasil –
São Paulo – Editora Brasiliense, 1986.
Solicito
Publicação
(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de
Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor
e Colunista;
· Campeão do II
Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
· Ex-Professor
do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);
· Ex-Pesquisador
do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
· Ex-Presidente
do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
· Ex-Membro do
4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
· Presidente da
Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
· Membro da
Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
· Membro do
Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
· Membro da
Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
· Membro da
Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
· Comendador da
Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
· Colaborador
Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
· Colaborador
Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
· E-mail: hiramrsilva@gmail.com.
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