Terça-feira, 2 de junho de 2020 - 08h11
Bagé, 02.06.2020
Arqueologia
e Cerâmica
Os
Índios Pueblo acreditam que todas as suas peças de Cerâmica possuem alma;
também as consideram como seres personalizados. Os potes passam a ter essa essência
espiritual assim que são modelados e antes de serem cozidos, e por isso dentro
do forno são colocadas oferendas ao lado do pote a ser cozido. Quando o pote
quebra devido ao calor, emite um ruído que provém do ser vivo que escapa. (LÉVI–STRAUSS).
O texto de Angyone
Costa publicado em 1945, no Volume VI dos “Anais
do Museu Histórico Nacional”, serve de referência para os amantes da arte
da Cerâmica de todo o mundo. Sua descrição sobre a manufatura dos vasos de Cerâmica
é irretocável e vem sendo reproduzida, por décadas, por pesquisadores e
escritores em suas obras.
Ninguém contesta que a
principal riqueza arqueológica do Brasil é a Cerâmica indígena e que esta Cerâmica,
a mais valiosa, justamente pela técnica, beleza e perfeição de seus modelos, a
da Amazônia, especialmente a de Marajó. Não se presuma que o Sul, onde
predominaram povos Tupiguarani e Gê, não tenha contribuído com material da
mesma espécie, mas a sua qualidade inferior, embora em abundante quantidade,
não permite margem a melhores afirmações. Por muitos anos, ainda será naquele
campo que os arqueólogos irão proceder a averiguações para poder explicar algo
sobre a vida antiga do Brasil.
A Cerâmica está ligada
ao estudo das primitivas culturas, ao ciclo das indústrias que o primeiro homem
construiu. Corresponde ao fim do neolítico superior e surge muito depois da
grande descoberta – o fogo –, muitos anos antes desta outra, que será o
terceiro grande invento da humanidade, a roda, e que os povos americanos não
conheceram.
Nasceu da necessidade
de cozinhar o alimento, quando o homem fez a experiência, levado pelo acaso, de
que a argila era argamassável com água, e sujeita ao fenômeno do endurecimento,
pelo Sol ou pelo fogo. Aperfeiçoou-se quando os imperativos da vida no clã
começaram a despertar no homem um indefinido desejo de melhora, uma
insatisfação de instintos que o levou a construir o conforto.
Naquele momento, já a Cerâmica
exercia uma alta função, dela se faziam as peças para a mesa, as peças de
finalidade religiosa, as peças destinadas a enterramentos. O oleiro já não
gravava, apenas, o desenho rupestre, que aprendera a riscar com o sílex, no teto
e na parede das cavernas, nas pedras e barrancos dos caminhos. Impressionava-se
com as cores e os ruídos da natureza, e procurava distingui-los, verificar de
onde vinham.
Desta percepção
resultou que os seus sentidos começaram a se apurar pela vista e a se
manifestar pela habilidade da mão e dos dedos.
E a tabatinga foi o
material preciso, plástico e dúctil, que apareceu na hora exata em que os
sentidos se achavam aptos à função criadora, e surgiram os traços em reta, os
círculos, os pontos inspirados pelo tecido de certas plantas e, ainda, a
reprodução de alguns animais, que viviam nas florestas ou que o homem começava
a domesticar.
O desenho singelo
adquiriu formas mais ricas, círculos, traços, que se compõem, reproduzindo
coisas ou cenas da vida, conforme o grau de sensibilidade de cada grupo ou as
circunstâncias em que a cultura se desenvolveu. A Cerâmica, sendo uma arte
inicial e muito antiga, resulta de uma técnica já hoje perfeitamente
vulgarizada. É bem a arte de utilizar a argila na confecção de objetos, tanto
de uso doméstico, como religioso, funerário ou propriamente decorativo. Pode
ser feita com pasta porosa ou pasta impermeável. À primeira pertencem os
objetos de barro cozido ([1]),
as louças vidradas, esmaltadas, faianças, etc.; à segunda, as porcelanas finas,
que supõem uma civilização histórica florescente. Ao primeiro grupo pertence a
louça dos oleiros de civilizações nascentes, a louça de Marajó, por exemplo, a
dos Tupi-Guarani do litoral, etc.
Entre as tribos
americanas e brasileiras em geral, a Cerâmica era trabalho atribuído às
mulheres. Sabe-se que esse costume se transmitiu de povo a povo, chegou aos
nossos dias e resistiu sempre a todas as modificações.
Técnica dos ceramistas indígenas
Na Amazônia, os oleiros
empregavam como matéria-prima a tabatinga pura ou misturada com diferentes pós,
que exerciam geralmente a ação de desengordurantes.
Esses pós eram
conseguidos de diferentes maneiras, segundo o testemunho de naturalistas e de
arqueólogos que viram os nativos trabalhar. Deles, um dos mais preciosos era o
caripé, cuja fabricação Hartt se compraz em descrever: (COSTA)
Vi prepararem a casca
do caripé empilhando os fragmentos e queimando-os ao ar livre. A cinza é muito
abundante e conserva a forma original dos fragmentos. Tendo sido reduzida a pó
e peneirada, é perfeitamente misturada com o barro a que dá, quando úmido, um
aspecto de plombagina escura ([2]) mas,
com a ação do fogo, esta cor torna-se muito mais clara. O uso do caripé faz a
louça resistir melhor ao fogo. (HARTT)
Além do pó obtido por
aquele processo, o oleiro amazonense adiciona, à tabatinga, pós de pedra-pome,
de cauxi, de escamas de pirarucu, de casco de tartaruga, de certos cipós e até
da própria louça quebrada, uso este último que tem sido motivo de
desaparecimento de peças preciosas de Cerâmica, especialmente em Marajó. A
mulher oleira, amassando esses ou alguns desses ingredientes, conseguia dar à
tabatinga uma ligação e consistência durável, sem sacrifício da peça.
O grande segredo,
entretanto, não estava na escolha do material apropriado, que este havia em
abundância, e sim no seu preparo. Depois da tabatinga amassada, era dividido em
pequenos bolos, feitos a mão do tamanho que podia comportar. Esta massa passava
a ser estendida sobre uma tábua ou esteira ou sobre o casco de tartaruga,
conforme o vaso fosse de fundo chato ou convexo. Para o seu preparo, eram
elementos indispensáveis a água e fragmentos de casco ou de cuia, para servir
de alisador.
Modelado o fundo, pela
compressão da massa sobra a tábua, a esteira ou casco de tartaruga, a oleira
começava a construir-lhe as paredes pelo processo do enrolamento.
Consistia o enrolamento
([3])
na técnica de se fazerem cilindros, cordas ou torcidas de barro, com diâmetro
proporcional à grossura que se queira dar à peça, e com um comprimento
aproximado da circunferência do vaso, dispondo-as sucessivamente, sobre a
periferia do fundo, já preparado, e fazendo-as aderir de modo conveniente, pelo
achatamento ou compressão feita com os dedos.
Dada a primeira volta,
a oleira dava, sempre com os mesmos cuidados, uma e outras mais, de maneira a
ir erguendo harmoniosamente as paredes do vaso, até sua final conclusão. Para
impedir as imperfeições ocorrentes em um trabalho manual desta ordem, a oleira
empregava uma cuia chata ou “cuipeua”,
molhava-a n’água e alisava com este instrumento a superfície, até conseguir um
perfeito polimento. Para evitar o achatamento, durante a fabricação dos vasos
maiores, essa técnica tinha de ser modificada para as grandes igaçabas ([4]),
fazendo a oleira pequenas estações ([5])
na feitura das paredes laterais, a fim de permitir o endurecimento conveniente
das partes inferiores, à proporção que a feitura do vaso ia avançando.
Evita-se, por essa
maneira, o fatal achatamento de toda a peça provocado pelo peso das cordas
superiores. Armada a arquitetura do vaso, alisadas as paredes externas com a “cuipeua” eram elas, ainda úmidas,
pulverizadas com uma fina camada de barro puro, cor de nata, parecendo às vezes
brunidas ([6])
antes de irem ao fogo, de onde resultava ficarem com uma superfície dura e
quase polida.
Antes do fogo, a que
todas as peças estavam sujeitas, os vasos eram postos lentamente a secar à
sombra e, depois, ao Sol, sem o que, rachavam. O processo da queima era a
segunda e mais importante ação técnica a que se submetia a peça.
Dependia de vários
cuidados, do máximo de delicadeza na condução dos vasos ainda moles, fáceis de
amassar ou achatar-se.
Efetuava-se de
diferentes modos; geralmente, eram colocados distantes do foco de calor, a fim
de que fossem aquecidos gradualmente, sem contato direto com o fogo, chama ou
brasa; depois, quando já haviam adquirido, pela ação do rescaldo, uma forte
consistência, eram então postos diretamente em contato com o fogo, ficando
totalmente cozidos.
Algumas tribos usavam
cozer a louça a fogo feito diretamente sobre o chão; outras faziam o uso de
covas; outras, mais adiantadas, já começavam a empregar fornos, toscos, é bem
verdade, mas que representavam uma invenção aperfeiçoada. Eles eram feitos com
a colaboração da pedra e tinham paredes de argila.
A seguir ao processo de
queimação, enquanto as peças ainda estavam quentes, usava-se empregar uma camada
interior de resina de juta-sica que, com o calor, adquiria um aspecto vítreo,
embora pouco durável. Essa maneira de trabalhar a tabatinga está perfeitamente
enquadrada na técnica ensinada por Linné, incontestavelmente a maior autoridade
em Cerâmica americana.
Segundo o americanista
sueco, são os seguintes os métodos adotados pelos indígenas sul-americanos,
para a fabricação de seus vasos:
1.modelação
do fundo, obtida pela compressão de massa sobre uma esteira, tábua ou um pedaço
de casco de quelônio;
2.enrolamento
para a formação das paredes;
3.moldagem,
pela utilização de cestas ou formas especiais;
4.movimento
giratório, executado pelo artista, da direita para a esquerda. (COSTA)
Centro
Cultural João Fona
É com muito pesar que
verificamos o pequeno acervo de Cerâmica Santarena existente no Centro Cultural
ao mesmo tempo em que tomamos conhecimento do tráfico criminoso destas
relíquias indígenas. Pouco conhecida, grande parte de seu acervo disperso pelo
mundo inteiro, destruição de sítios arqueológicos, ela está sendo relegada a um
segundo plano pelos pesquisadores. O contrabando do acervo é o grande
responsável pela fuga desse patrimônio cultural, fruto do descaso do poder
público.
A rica pré-história
santarena poderia atrair estudiosos e turistas, mas não existem museus especializados em arqueologia ou antropologia, não existe determinação oficial para acompanhar
e supervisionar construções na Cidade ou para coibir o comércio ilegal do
acervo tapajônico.
Apenas o Centro
Cultural João Fona abriga em Santarém o pouco que ainda resta da maravilhosa
Civilização Tapajônica já extinta. Foram identificados mais de 100 sítios
arqueológicos, um filão para alunos de antropologia e arqueologia.
Um final melancólico
para um herança cultural que não é apenas de Santarém ou do Brasil, mas de toda
a humanidade.
Mestre
Izauro do Barro
Aconselhado por amigos,
visitei o “atelier” do Mestre Izauro,
outra personagem interessante do universo cultural santareno. O Mestre nasceu
no interior de Santa Isabel do Pará, no dia 21.05.1917, e chegou a Santarém em
1997, quando tinha apenas 10 anos de idade. Em 2011, ainda se dedicava à arte
da Cerâmica e, apesar da idade avançada, o ceramista trabalhava diariamente
criando belas peças de Cerâmica na sua olaria instalada no Bairro do Uruará.
Suas obras já foram expostas em Manaus, São Paulo e Brasília, e países como
Itália e França.
Bibliografia:
COSTA,
Angyone. As Aculturações Oleiras e a
Técnica da Cerâmica na Arqueologia do Brasil – Brasil – Rio de Janeiro –
Anais do Museu Histórico Nacional ‒ Volume VI, 1945.
HARTT,
Carlos Frederico. A Origem da Arte ou a
Evolução da Ornamentação – Brasil – Rio de Janeiro – Arquivos do Museu
Nacional – Volume VI, 1885.
LÉVI–STRAUSS,
Claude. A Oleira Ciumenta – Brasil –
São Paulo – Editora Brasiliense, 1986.
Solicito
Publicação
(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de
Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor
e Colunista;
· Campeão do II
Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989);
· Ex-Professor do
Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);
· Ex-Pesquisador
do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
· Ex-Presidente
do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
· Ex-Membro do
4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
· Presidente da
Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
· Membro da
Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
· Membro do
Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
· Membro da
Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO);
· Membro da
Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
· Comendador da
Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS);
· Colaborador
Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG);
· Colaborador
Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN);
· E-mail: hiramrsilva@gmail.com.
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