Terça-feira, 9 de junho de 2020 - 09h35
Bagé, 09.06.2020
Simbolismo da Cerâmica Santarena
Pouco
depois de nascer, recebe o bebê um nome, tirado de planta ou animal; esse nome,
porém, muda-o ele diversas vezes em sua vida, logo que realiza alguma façanha
heroica, na guerra ou na caça. Acontece tomar assim a mesma pessoa cinco ou
seis nomes, um após outro.
A
ocorrência da representação de animais na decoração de alguns utensílios e
principalmente em urnas funerárias, e a identificação dessas espécies na fauna
da região, possibilitou que se atribuísse um caráter mágico-religioso a essas
representações, que estariam ligadas a histórias míticas, com base em analogias
etnográficas. (SCHAAN)
Símbolos
Os pesquisadores, ao longo
dos tempos, tentaram em vão identificar o simbolismo dos adereços antropomorfos
e zoomorfos que compõem a refinada Arte de Santarém. Cada traço, cada
representação geométrica ou imagem têm o seu significado, a sua motivação.
Os animais
representados em cada peça não foram selecionados aleatoriamente, alguns deles
são seres místicos cultuados pelos nativos, outros identificam o clã a que
pertenceram os ancestrais reverenciados nas urnas funerárias ou mesmo o nome do
morto ou alguma façanha heroica, na guerra ou na caça que marcou sua passagem
terrena.
Depois de comparar,
analisar os Costumes, Organizações Sociais e Ritos Fúnebres de diversas etnias,
vou esboçar uma teoria a respeito dos ícones cultuados pelos incríveis Tapajó. Infelizmente
os desbravadores e religiosos do passado se preocuparam mais em condenar sua “idolatria” do que entender sua cultura,
do contrário não estaríamos aqui, hoje, tentando montar este intrincado mosaico
na tentativa de interpretar sua magnífica arte Cerâmica e seus elaborados ritos
pretéritos.
[...]
linguagem, às vezes bem expressiva que nos vai contando hábitos, crenças,
gostos, lendas, preferências desse povo extinto. (BARATA, 1950)
Alguns elementos são
muito constantes nos vasos de gargalo e cariátides tais como: o Urubu-Rei, o
Mutum-cavalo, o Jacaré, o Morcego e fundamentalmente a Rã. Estes animais são
reverenciados, respeitados ou temidos, por diversas etnias, por uma série de
razões que elencarei a seguir. Logicamente os Tapajó consideravam estes seres
tão importantes quanto as demais tribos tendo em vista se encontrar muita
semelhança nas lendas e costumes destes povos.
Urubu-Rei
O urubu-Rei recebe
destaque especial no imaginário indígena que o considera como o dono do fogo,
chefe das demais aves e o mestre dos ventos.
Ele faz parte do
repertório das Lendas e Mitos de diversos povos como os Parintintins, os
Kamaiurá, os Kuikúru, os Tembé e certamente estava incorporado às Lendas
Tapajó.
No ritual de passagem
ele é o guia responsável por acolher o espírito do morto e encaminhá-lo para
outras esferas – um verdadeiro Hermes Tupiniquim. Nos vasos de cariátides ou de gargalo
encontramo-lo pousado na voltado para o centro da peça de asas fechadas numa
posição de espera preparando-se para acolher alma do defunto e, depois, de asas
abertas voltado para fora da peça voando para conduzi-la ao reino eterno.
Mutum-cavalo
Algumas etnias
consideram que a constelação do “Cruzeiro
do Sul” é na verdade um enorme mutum no vasto campo do céu, outras acham
que a Cobra Grande, que representa o Criador, pode nascer de um ovo de mutum.
Segundo os Mayoruna, que antes só comiam terra, o Mestre Mutum os levou para
sua terra onde ele lhes ensinou o que comer e como preparar os alimentos.
Jacaré-açu
O Jacaré-açu pode
chegar até setes metros de comprimento e o seu tamanho descomunal, ainda nos
dias de hoje, provoca medo e respeito nos povos ribeirinhos.
O magnífico réptil,
além de ocupar o topo da cadeia alimentar, não encontrava adversários, à sua
altura, nem mesmo entre os formidáveis guerreiros Tapajó. Ele era temido,
respeitado, adorado até e, por isso mesmo, tão presente nos adornos dos vasos
rituais.
Morcego
Franz Kreuther Pereira,
no seu livro Painel de lendas & mitos da Amazônia faz o seguinte relato a
respeito do morcego:
O Cãoera
é uma espécie de “morcegão”, um
morcego muito grande do porte de um urubu, que pode sugar todo o sangue de uma
pessoa adormecida sem que ela desperte e, em seguida, devorá-la. Adélia
Engrácia dá-nos três versões desse mito, recolhidas junto aos Índios Mura.
Nela
encontramos a informação que o Cãoera habita os buracos na terra e surge quando
se faz “misturado de jabuti e outras
carnes, no mato” ou “quando se queima
pelos ou penas de animais”.
Também
pode surgir – adverte Adélia – quando “se
joga espinha de peixe n’água” ou até quando “se grita na mata”. Aparentemente a área de abrangência do mito é a
região fronteiriça às Guianas, território das famílias Aruak, Karib e também
Tupi, porém a estudiosa dos Mura ressalta que, em suas viagens pelos Rios Negro
e Xingu, jamais ouviu qualquer referência a esse ser sobrenatural. (PEREIRA)
Rãs
(Muiraquitã)
É fácil entender por
que a pequena rã amazônica recebia tanto destaque na Cerâmica ritual de
Santarém. A secreção peçonhenta do pequeno batráquio intimidava os adversários
e permitia aos Tapajó sobrepujarem facilmente todos os seus oponentes no campo
de batalha.
Eles eram os únicos,
naquela região, a dominar a tecnologia de envenenar as flechas e isso os
colocava em condições de vantagem sobre as demais tribos. O veneno, certamente,
não era o curare pelos motivos que vou expor a seguir.
Curare
I
Carvajal, Acuña,
Heriarte, dentre outros cronistas e pesquisadores pretéritos, mencionam o uso
de flechas envenenadas por diversas tribos da Amazônia. A maioria dos relatos
menciona que o veneno utilizado era o curare. A primeira referência escrita que
existe sobre o curare aparece nas cartas do historiador e médico italiano
Pietro Martire d’Anghiera (1457-1526). As cartas foram impressas parcialmente
em 1504, 1507 e 1508, e sua obra completa foi publicada em 1516 com o nome “De Orbe Novo”. Pietro fala de um soldado
mortalmente ferido por flechas envenenadas durante uma Expedição ao Novo Mundo
e escreve uma carta ao Papa Leão X falando das propriedades do curare que
reproduzo um trecho abaixo:
O Curare tem uma
característica especial – própria do veneno americano – bloquear a transmissão
neuromuscular nas sinapses e, portanto, causar a morte por paralisia dos
músculos respiratórios. Usado, nates, apenas como veneno, hoje, está sendo
aplicado na medicina: seus princípios ativos sintetizados são coadjuvantes
essenciais e universalmente difundidos como anestésicos nas cirurgias. (MOTTIN)
José Monteiro de
Noronha, em 1768, faz o seguinte relato:
121. Dos
Índios, que habitam no Japurá, só são antropófagos os das nações Miranya, e
Umauá.
Para a caça, usam todos
de esgravatana ([1])
e, para a guerra, de escudos cobertos de peito de jacaré ou couro de anta;
cuidarus, que são uns paus de cinco palmos, mais e menos, de comprido, chatos,
bem levigados ([2]),
esquinados ([3])
de 2 polegadas de largo, e mais largos na ponta e lanças feitas de pau
vermelho, cujas pontas, e também as das flechas, que despedem com as
esgravatanas são envenenadas.
O veneno é feito da
cortiça de certo cipó, ou pau flexível chamado “uirari”, de superfície escabrosa, um palmo mais e menos de diâmetro,
e folhas como as da maniva.
Moída a casca, ou
cortiça do dito cipó e borrifados os pós com água, os põem a destilar, e o
sumo, que corre, fervem ao fogo até ficar na consistência de extrato, ou
unguento. Ao dito “uirari” ajuntam os
sumos de outros cipós, e vários venenos, que conhecem, para o fazerem mais
ativo. (NORONHA)
O naturalista alemão
Alexander Von Humboldt e seu companheiro francês Aimé Bonpland, em 1800,
exploraram o Rio Orenoco e Rio Negro, demonstrando que as bacias do Orenoco e
da Amazônica comunicam-se entre si pelo Canal do Cassiquiare.
Na oportunidade, ele
faz um interessante relato sobre o curare, reproduzido na interessante obra “O Cosmos de Humboldt”:
O
principal artigo de exportação de Esmeralda era uma forma particularmente fina
de curare, que era vendida a um preço elevado. Quando Humboldt chegou, a
maioria dos Índios acabava de voltar de uma Expedição de coleta de plantas
usadas na produção do veneno. Sua volta foi marcada por um grande festival
entre os homens, com dois dias de banquete à base de macaco assado e dança ao
som da música de toscas flautas de caniço.
Enquanto
seus vizinhos se embriagavam, o Índio velho, encarregado de fabricar o veneno
fazia seu trabalho mortal, permitindo que Humboldt levasse para a Europa a
primeira receita detalhada da droga. Primeiro, o Mestre do veneno pegava a
casca dos cipós, já previamente retirada e esmagada em fibras. A isso,
acrescentava água, filtrada lentamente através da casca num cone feito de
folhas de bananeira e palmeira. O líquido amarelo resultante era então fervido
em panelas grandes e rasas, sendo provado de vez em quando pelo Mestre do
veneno e ficando cada vez mais amargo à medida que fervia.
[Humboldt
também provou o veneno, que era atóxico, desde que não entrasse em contato
direto com o sangue; na verdade, era bebido como um paliativo para o estômago,
o que era absolutamente seguro – desde que a
pessoa não tivesse cortes nem feridas abertas na boca ou no aparelho digestivo].
Quando o líquido atingia a concentração desejada, o Mestre do veneno coava-o em
folhas de bananeira enroladas para remover a matéria fibrosa.
Mesmo
nessa forma concentrada, o veneno ainda era muito ralo para aderir a uma ponta
de flecha, então era misturado em seguida com o sumo viscoso de outra planta
para encorpar; isso também dava ao curare sua cor alcatroada característica.
A
preparação acabada era então vertida em pequenas cabaças, nas quais era vendida.
Enquanto trabalhava, o Mestre do veneno admoestou seus visitantes. “Sei”, disse ele:
que os brancos têm o
segredo de fazer sabão...
Cujos
mistérios ele parecia achar que só ficavam atrás dos do curare:
e aquele pó preto que
tem o defeito de fazer barulho quando usado para matar animais. O curare, que
preparamos de pai para filho, é superior a qualquer coisa que vocês podem fazer
lá embaixo. É o sumo de uma erva que mata em silêncio, sem ninguém saber de
onde vem o golpe.
Aplicado
à ponta de uma flecha e lançado por um canudo comprido, o curare maximizava a
produtividade do caçador, uma vez que vários macacos podiam cair
silenciosamente no chão antes que o resto do bando desconfiasse; com uma
espingarda, podia-se caçar no máximo um animal por vez, porque os outros se
dispersavam ao primeiro tiro. O curare matava uma ave em dois ou três minutos e
um porco em dez a doze. Segundo os missionários, a carne abatida de outra
maneira simplesmente não era tão saborosa. Produzindo seus sintomas
característicos de tonteira, náusea, sede extrema e dormência generalizada, o
curare também era bem capaz de matar seres humanos, como haviam descoberto os
conquistadores.
O
próprio Humboldt logo teve uma experiência que lhe serviu de lição sobre o
cuidado com que se devia manipular o veneno. Ao deixar Esmeralda, ele guardara
uma cabaça com curare ao lado de suas roupas. Com o calor, o veneno derretera e
molhara uma meia.
Quando
já ia calçar a meia, por acaso ele sentiu o líquido gelatinoso a tempo: uma vez
que seus pés estavam cobertos de picadas de insetos, o curare certamente teria
entrado em sua corrente sanguínea, com um efeito fatal. (HELFERICH)
Bibliografia:
BARATA, Frederico. A Arte Oleira dos Tapajó: I – Brasil –
Pará – Revista do Instituto de Antropologia e Etnologia do Pará, 1950.
HELFERICH, Gerard. O Cosmos de Humboldt – Brasil – Rio de Janeiro
– Editora Objetiva, 2005.
MOTTIN, Antônio J.
S. Italianos no Brasil: Contribuições na
Literatura e nas Ciências: Séculos XIX e XX – Brasil – Rio Grande do Sul –
EDIPUCRS, 1999.
NORONHA, José
Monteiro de. Roteiro da Viagem da Cidade
do Pará até as Últimas Colônias do Sertão da Província (1768) – Brasil
– Belém – Typographia de Santos & Irmãos, 1862.
PEREIRA, Franz
Kreuther. Painel de Lendas & Mitos
da Amazônia – Brasil – Belém – Editora Academia Paraense de Letras, 2001.
SCHAAN, Denise Pahl.
A Linguagem Iconográfica da Cerâmica
Marajoara – Brasil – Porto Alegre – EDIPUCRS, 1997.
SPIX & MARTIUS,
Johann Baptist Von Spix & Carl Friedrich Philipp Von Martius. Viagem pelo
Brasil (1817 – 1820) – Brasil – São Paulo – Edições Melhoramentos, 1968.
Solicito Publicação
(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de
Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor
e Colunista;
· Campeão do II
Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
· Ex-Professor
do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);
· Ex-Pesquisador
do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
· Ex-Presidente
do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
· Ex-Membro do
4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS);
· Presidente da
Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
· Membro da
Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
· Membro do
Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
· Membro da
Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO);
· Membro da
Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
· Comendador da
Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS);
· Colaborador
Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG);
· Colaborador
Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN);
E-mail: hiramrsilva@gmail.com
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