Segunda-feira, 9 de março de 2020 - 10h56
Bagé, RS, 09.03.2020
Jornal do Brasil, N° 63
Rio de Janeiro, RJ ‒ Sexta-feira, 14.03.1930
Os Nossos Limites com a Venezuela
O “Jornal do Brasil”
ouve o Comandante Braz de Aguiar, Chefe da Missão Brasileira
A Comissão Mista e o que ela já Realizou ‒ Episódios
Interessantes ‒ A Odisseia dos Trabalhos ‒ O contato com os Índios ‒ Tudo
Nacional ‒ O Magnífico Estado Sanitário do Pessoal
O Comandante Braz Dias de Aguiar recebeu o redator do Jornal do Brasil na manhã radiosa de
ontem, em sua aprazível residência da Tijuca, à rua Visconde do Cabo Frio. O
Comandante Braz de Aguiar não perde, mesmo no Rio, nos poucos dias em que que
aqui permanece, o hábito salutar da sua vida de campo: levantar com a
madrugada.
Pouco depois das 7 horas ele já está em sua residência
pronto para receber o mais matinal dos visitantes. Anteontem telefonamos para
sua casa, pedindo-lhe que nos recebesse. E ele respondia-nos:
– Pois
não. Já amanhã, posso recebê-lo em nossa casa, pela manhã.
– Às 11
horas. Comandante.
E ele:
– Não,
venha mesmo às 8 horas que já me encontrará de pé.
E, assim, ontem, às 8 horas e pouco, apertávamos o botão
da campainha do ponto de sua residência. Um minuto depois ele nos recebia na
sua confortável sala de jantar.
No centro, divisamos um bronze representando um pirata
pronto para a abordagem. Nas paredes, magníficas marinhas e, dando frente ao
visitante, certamente sinal de fervor cristão da dona da casa, um grande
quadro, também em bronze, representando o Coração do Jesus.
Os Setores das Nossas
Comissões de Limites
O Dr. Otávio Mangabeira, ao assumir o cargo de Ministro do
Exterior, prestou o máximo da sua atenção, ao grave e sério problema da
demarcação do nosso território procurando concluir dessa maneira,
patrioticamente, a obra encetada pelo Barão do Rio Branco, e dividiu, com
acerto, as nossas fronteiras, para a execução prática dessa tarefa em três
setores: o Setor Norte, o Setor Oeste e o Setor Sul.
O Primeiro, compreende os nossos limites com a Venezuela e
as três Guianas: o Segundo, diz respeito aos nossos limites com a Colômbia,
Bolívia e o Terceiro ocupa-se das fronteiras brasileiras com o Paraguai,
Argentina e o Uruguai. O chefe da Comissão de Limites do Setor Sul é o Marechal
Gabriel Pereira Botafogo; o da Comissão do Setor Oeste é o Dr. Estanislau
Bousquet e o do Setor Norte é o Capitão-de-Mar-e-Guerra Braz de Aguiar.
Foi a este, pois, que acaba de regressar de Cucuí, onde
esteve iniciando, com a Comissão Venezuelana, o serviço de limites do nosso
País com a Venezuela e que já se apresta para seguir com destino ao Norte, a
fim de começar o trabalho, com a missão britânica, de demarcação com a
respectiva Guiana, que fomos ouvir acerca do que ele já pode realizar.
Ouvindo o Chefe do Setor Norte
Durante duas longas e agradáveis horas o Comandante Braz
de Aguiar expôs ao nosso companheiro os curiosíssimos episódios dessa primeira
jornada, apontando-nos documentos, desdobrando-nos mapas das regiões a demarcar,
para que bem víssemos a penosa tarefa que pesa sobre os ombros dessas Comissões
Científicas, obrigados todos os seus membros, chefes, auxiliares e
trabalhadores a desempenhar a sua missão, ora, vadeando Rios e cachoeiras, às
vezes, com água até a cintura, ora, montando serras de centenas de metros de
altura, de dia ou de noite, ao Sol e à chuva. Disse-nos o Comandante Braz:
É
devido a esses graves empecilhos que os trabalhos de limites com um único País,
mas que representam milhares de quilômetros de extensão, como as nossas
fronteiras com a Venezuela, que vão a mais de 1.300, duram, de ordinário, meses
e meses, anos e anos. É preciso estar bem a par dessas ocorrências para se
poder ajuizar da demora de semelhante trabalho.
Não
são apenas as condições do terreno que se deve atender. É preciso pensar nas
condições climatéricas e meteorológicas. Ainda este ano quando procedia à
demarcação de limites com a Venezuela, somente no mês de janeiro tivemos 30
dias de chuva forte. Que é possível fazer nessas ocasiões? Como, com um céu de
chumbo, é possível tomar observações?
O Comandante Braz de Aguiar sorri e continua:
Tenho
encontrado pessoas que me dizem, ao me encontrarem no Rio: “Dias, você traça limites daqui?”
É
que não sabem que nem sempre se pode executar o serviço. Aqui venho de fugida.
Agora mesmo bati o “record” da
distância entre Cucuí e Rio: vim de lá até aqui em 23 dias. Cheguei ao Rio no
dia 5, à noite, e no dia 20 já vou regressar ao Norte. Outros me interrogam: “Mas, você vai traçar limites que o General
Rondon já determinou?”
Ledo
engano; a Comissão do benemérito bandeirante não é de limites. Ela é de
fiscalização de fronteiras, de determinação do Ministério da Guerra. Certo, no
seu percurso, o General vai fazendo observações, mas
nunca traçando limites.
A Partida da Comissão
Depois desse exórdio ([1]),
em que o Comandante Braz de Aguiar procura desfazer erros em que muita gente
labora, resultando em injustas críticas para essas Comissões técnicas disse-nos
ele:
A
Comissão que lidero partiu do Rio, a 10.10.1929, a fim de se encontrar a 1° de
dezembro, com a Comissão Venezuelana, na vila de São Carlos, território da
República da Venezuela. Passando sobre toda uma série de dificuldades, a maior
das quais a exiguidade do tempo, a Comissão na véspera daquela data estava em
Cucuí.
No
dia 1° de dezembro, dirigi-me a S. Carlos verificando que a outra Comissão não
e certificando-me de que, dadas as dificuldades do transporte, não poderia
alcançar aquele ponto antes de 15 de janeiro.
O Início dos Trabalhos
Como
não era possível aguardar tanto tempo a chegada da Comissão Venezuelana,
iniciei o traçado da linha Cucuí até o salto Huá, no Rio Maturacá, seguindo o
mais possível a orientação da Comissão Mello Nunes, em 1914. Partindo da ilha
S. José segue a linha o rumo SE; depois do 4 minutos passa pelo Igarapé Bonte,
cujas margens baixas e alagadas vão até aos Igapós manadeiros do Igarapé
chamado da Joaninha.
Continua
o terreno baixo e alagado até uma pequena elevação, onde existe uma capoeira.
Saindo dessa capoeira, caímos em um grande baixo, onde somente em pontes do
mais de 100 menos de comprimento conseguimos passar.
Só
encontramos terra firme no quilômetro, 10 onde está o acampamento da Dúvida,
colina de 39 m de comprimento, por 18 de largura e 1,60 de altura, em relação à
planície circunvizinha. Daí por diante, encontram-se baixos, Igarapés, Igapós
até o quilômetro 15, onde acertamos em outra elevação de uns 600 m do largura,
por 1.000 de comprimento.
Daqui
partindo, caímos na planície sempre molhada e sulcada por numerosos Igarapés e
baixios, até encontrar as águas dos afluentes do Erubichy. Desse modo, a linha
geodésica Cucuí-Maturacá corre em uma planície emoldurada pela serra de Parima
ou do Canabury e a margem esquerda do Rio Negro, sulcado por inúmeros igarapés
formando um plexo inextrincável do vasos comunicantes que, à menor chuva,
enchem e transbordam, inundando a planície que se transforma em um oceano no
meio da floresta. Tal foi o terreno em que operou a primeira das duas Turmas em
que dividi a Comissão, de fins de 1929 a princípios de 1930. Estávamos em meio
desse serviço, quando chegou a Comissão Venezuelana, formando-se, então, a
Comissão Mista, que ultimou o traçado dessa linha de 84 quilômetros.
A
outra Turma, que não teve trabalhos menos árduos, subiu o Rio Negro, entrou no
Canal de Cassiquiare, depois no Pacimoni, no Bacia, no Maruracá, até o Salto de
Huá. Depois de ter determinado as coordenadas desse salto e dos marcos da
linha, partindo desse mesmo ponto, foi obrigada a retirar-se por que a enchente
do Rio já não permitia o trabalho. Os oficiais, na última noite, já observaram
com água pela cintura. Foram colocados cinco marcos na linha Cucuí-Maturacá,
além dos quatro que já haviam sido deixados pela Comissão Mello Nunes – Duarte,
em 1914, permanecendo assim essa linha perfeita e definitivamente demarcada, de
acordo com o protocolo do 31.08.1929.
Como se Compunham as Comissões
A Comissão Brasileira, disse-nos o Comandante Braz Dias de
Aguiar:
Compunha-se
da minha pessoa, como chefe; CT Waldemar de Araújo Motta e Capitão Francisco
Pereira da Silva, ajudantes; Capitães Drs. João Baulino de Carvalho e Manuel
Maurício Sobrinho, médicos; Capitão Alfredo Luna, secretário; 1° Ten Floriano
Machado, auxiliar técnico, além de quatro radiotelegrafistas e um contingente
militar. Do lado dos nossos amigos venezuelanos, a Comissão era esta: Dr. José
Francisco Duarte, chefe; Dr. Simonpletrl, engenheiro; Dr. A. Hernandez, médico;
Félix Cardona, radiotelegrafista e J. Spooner, mecânico. Juntou-se a eles o
ornitologista americano H. Halt ([2]), que
se fazia acompanhar de sua esposa, trabalhando ambos para a Sociedade de
Geografia de Washington. O Dr. José Francisco Duarte, é uma das mais vivas
inteligências da Venezuela. De valor; mental inestimável, ele se encontrava, há
anos, na Suíça, entregue a estudos de matemática pura.
O Magnífico Estado Sanitário da Comissão
Falou-nos,
depois, o Comandante Braz do estado sanitário do pessoal que foi,
uniformemente, excelente, não se registrando, apesar das zonas percorridas, em
que os homens, muitas vezes, trabalhavam com água pela cintura, nem um caso de
impaludismo, ou de gripe. Contou-nos o ilustre Chefe da Comissão:
Aliás,
eu sempre que admito o pessoal, recito-lhe o meu regulamento:
Trabalhar ao Sol, ou à chuva,
usar o mosquiteiro; tomar medicamentos sem discutir para que fim ele é
ministrado; respeitar os índios e comer quando seja possível.
Esta última parte
justifica-se. Às vezes, o rancho está distante. Não é possível destacar um
homem para ir buscá-lo, sabendo-se que ele só teria de comê-lo no trajeto.
Os médicos da Comissão
levaram ambulâncias de acordo com a nosologia da zona a percorrer. Foi
instituída a profilaxia contra o impaludismo, a febre tifoide e paratifoide A e
B.
Empregamos contra o
impaludismo a profilaxia defensiva terapêutica e a mecânica. Na terapêutica,
sais de quinino e arsenicais. Na mecânica os mosquiteiros.
Tudo
Nacional
Desejo
que o Jornal do Brasil frize ([3]) que o
nosso aparelhamento é todo nacional; desde a lona até os víveres.
Estes
os mais frugais e saudáveis: feijão, arroz, farinha. Carne: o “corned beef” ([4]), da
indústria paulista, que foi muito apreciado pelos nossos companheiros
venezuelanos. Gosto, no contato com o estrangeiro, de lhe demonstrar as nossas
possibilidades econômicas. Parece-me que não faço mal com isso.
Cercados Pelos Índios
A
uma pergunta nossa, respondeu o chefe da Comissão:
A
segunda turma foi cercada pelos índios da tribo dos Macu. Eles se limitaram a
observá-la, absolutamente não a molestando. O pessoal quis entreter com eles um
comércio mudo, mas nada obteve. É que os rapazes da Turma deixaram os presentes
dependurados nas árvores e eles não lhes tocaram. Quem sabe se não cuidaram que
se tratava de oferendas que eles fazem aos seus deuses para aplacar-lhes a
cólera?
Para
o Estudo da Nossa Fauna
e da Nossa Flora
A
Comissão que chefio arrecada sempre tudo quanto possa interessar à nossa
geologia e aos museus. A minúscula colina, que encontramos na linha
Cucuí-Maturacá, é constituída de um afloramento de cristal. Eu trouxe para a
repartição competente amostras de todos os terrenos por onde passamos.
Nesse
ponto da palestra que, reconhecemos, se fazia longa, levantamo-nos e
despedimo-nos. O Comandante Braz de Aguiar, apertando-nos a mão, quis levar a
sua gentileza ao ponto de conduzir-nos até ao portão de sua residência. (JB, N°
63)
Bibliografia:
JB, N° 63. Os Nossos Limites com a Venezuela - O
“Jornal do Brasil” ouve o Comandante Braz de Aguiar, Chefe da Missão Brasileira
‒ Brasil ‒ Rio de Janeiro ‒ Jornal do Brasil, N° 63, 14.03.1930.
Solicito Publicação
(*) Hiram Reis e Silva
é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor,
Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;
· Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul
(1989)
· Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);
· Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do
Exército (DECEx);
· Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério
Militar – RS (IDMM – RS);
· Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar
do Sul (CMS)
· Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira
(SAMBRAS);
· Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil
– RS (AHIMTB – RS);
· Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande
do Sul (IHTRGS – RS);
· Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER –
RO)
· Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
· Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do
Sul (AMLERS)
· Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola
Superior de Guerra (ADESG).
· Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
· E-mail: hiramrsilva@gmail.com.
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