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Gente de Opinião

Hiram Reis e Silva

Demarcadores, Heróis Olvidados – Parte II


Demarcadores, Heróis Olvidados – Parte II - Gente de Opinião

Bagé, RS, 04.03.2020


Para mim, este heroísmo é bem mais nobre e bem mais difícil, demanda muito mais energia e tenacidade, do que o heroísmo do momento, de duração efêmera, como o que requer o ataque de uma trincheira inimiga: a primeira é uma temeridade refletida, a segunda, uma temeridade que se incendeia como a pólvora negra, ao calor repentino do entusiasmo contagioso das massas, que arrastam o homem às maiores loucuras.
Lá é o comandante que fascina a massa com o seu entusiasmo viril, aqui a massa que eletriza o comandante,
envolvendo-o na onda magnética dos hurras comunicativos...
(Coronel Amílcar Armando Botelho de Magalhães, 1942)

 

Tribuna da Imprensa, n° 3057

Rio de Janeiro, RJ ‒ Quarta-feira, 03.02.1960

Fronteira Entre Brasil e Guiana se Resolve Hoje

 

Depois de duzentos e sessenta e dois anos, será encerrado hoje, definitivamente, o problema das fronteiras entre o Brasil e a Guiana Francesa. As 16h00, no Itamarati, o Ministro Láfer recebera do embaixador Pio Correia o relatório final da Comissão Franco-brasileira e o mapa que determina os limites entre o nosso País e a Guiana.

 

As negociações à respeito tiveram início no século XVII, no ano de 1698 e culminaram no Tratado de Utrecht, em 1713. No início deste século, em questão arbitrada pelo presidente da Suíça, o Barão do Rio Branco demonstrou que a fronteira real era o Rio Oiapoque, como determinava o Tratado.

 

Os franceses pretendiam estender a Guiana até o Rio Araguari. O Brasil, ao ganhar a questão, aumentou o seu território em cerra de 260 quilômetros quadrados.

 

Os mapas finais e diversos documentos históricos, inclusive uma cópia autêntica do Tratado de Utrecht serão expostos, durante a cerimônia. A comissão brasileira era composta pelo General Bandeira Coelho [presidente] e os Srs. Maurílio Cunha e Leônidas de Oliveira. (TDI, N° 3057)

 

Jornal do Commercio, n° 105

Rio de Janeiro, quarta-feira, 03.02.1960

Demarcação Final da Fronteira
com a Guiana Francesa

Relatório e Mapas Serão Entregues
Hoje ao Ministro Lafer

 

Está marcada para hoje, às 16H00, no Itamarati, a entrega ao ministro Horácio Lafer do relatório e mapas referentes à definitiva demarcação das nossas fronteiras com a Guiana Francesa.

 

A propósito dessa solenidade, que é o coroamento de um trabalho que teve suas origens no ano de 1695, o embaixador Manuel Pio Corrêa esteve na sala de imprensa do Ministério, para uma palestra esclarecedora com os jornalistas.

 

Disse o chefe do Departamento Político e Cultural do Itamarati que nomes dos mais ilustres da diplomacia brasileira estiveram empenhados nesses estudos, como Rio Branco e Duarte da Ponte Ribeiro, e os membros da Comissão Mista Franco-Brasileira pude­ram chegar pacificamente a um acordo, agora, reco­nhecendo os direitos do nosso País a uma faixa de quatrocentos quilômetros quadrados, graças a esse espírito de continuidade, à documentação e ao carinho com que são conservados tantos documentos e mapas nos arquivos da Casa de Rio Branco.

 

DÚVIDAS DIRIMIDAS

 

Acentuou o Sr. Pio Corrêa que todas as dúvidas fora dirimidas, e, prevaleceu a realidade do Tratado de Utretch de 1713, e que serviu de orientação para a decisão do presidente da Confederação Helvética, favorável ao Brasil, no julgamento que ele presidiu no ano de 1900. Agora, após tantas demandas e tão largo espaço de tempo, no curso do qual chegamos a ficar sem essa faixa de terra [que é o território do Amapá] a questão chegou a bom termo e serão reintegrados ao território brasileiro esses 400 km2.

 

Na entrega do relatório, o embaixador Pio Corrêa fará ao ministro de Estado um histórico dessa centenária questão. O chefe da delegação brasileira, Gen Bandeira Coelho, esclareceu, ainda, o embaixador Pio Corrêa, ficou sensibilizado com a cordialidade e o espírito compreensivo dos delegados franceses. (JDC, N° 105)

 

O Mundo Ilustrado, n° 181

Rio de Janeiro, RJ - 10.06.1961

Em Plena Mata, Longe do Mundo,
são as Fronteiras

 

O resto era o infinito coberto de espessas nuvens que nos encobriam a clara visão da longínqua serra Tamaquari, e por trás delas o objetivo a perlustrar e a demarcar, embora as mais duras adversidades: demarcar a linha de fronteira Setentrional do Brasil com a Venezuela pela cumeada do divisor dos tributários do Rio Negro e das contravertentes do Rio Orenoco.

 

Éramos nove, turma adiantada da expedição que reeditava toda a autenticidade das heroicas bandeiras de Raposo e Anhanguera, Borba Gato e Palheta, Pedro Teixeira e Lobo D’Almada. Eles alargaram do Sul e do Centro para o bruto Oeste e do Leste para o Norte e Noroeste as fronteiras coloniais do Brasil, ganhando imensas terras de Castela, mas sem demarcá-las, sem deixar nos seus confins a presença física de marcos inequívocos de domínio territorial.

 

Esta árdua tarefa caberia a homens de igual capacidade de sacrifícios, a homens que, através de séculos e sucessivas gerações, legaram a outros da mesma têmpera a épica intrepidez demarcatória.

 

Muitos desses homens eu os conheço, com galões de General, teodolito às costas ou com terçados à mão rude e no jamachi. Deixei-os no Rio Padauari, desmatando terra firme para acampamentos, subindo o afluente Marari, puxando canoas com mãos esfoladas, remando, abrindo picadas e superando dia a dia as piores condições de sobrevivência para chegar ao sopé da íngreme Tapirapecó, vencer os alcantis sem temor de fatalidades e cumprir, afinal, a tarefa anônima de demarcação de limites. Éramos nove, os oito companheiros que de mim se despediram, cumprindo o breve período de vanguarda da campanha, voltaram a reunir-se aos irmãos do dever que o País ignora. Eu voltei do Marari.

 

A EXPEDIÇÃO EM MARCHA

 

Quando cheguei a Belém na última semana de outubro de 1960, credenciado pela Divisão de Fronteiras do Itamarati para integrar-me na campanha que a Comissão Brasileira Demarcadora de Limites ia empreender, todos os preparativos já estavam ultimados pelo Gen Bandeira Coelho. Meu saco de petrechos estava pronto, com rede e mosquiteiro.

 

Partimos às 23h00, do dia 31, com destino ao Sul de Marajó. Duas horas depois nosso barco fundeou no Paraná do Arrozal. Ali acabaríamos o resto da madrugada sem Lua; ao alvorecer continuaríamos na rota fluvial até o imenso Amazonas. Ao quarto dia de navegação ancoramos em Óbidos. A antiga aldeinha dos índios Pauxis estava adormecida na colina que olha a Foz do Trombetas.

 

No porto sujo de fiapos de juta caboclos comerciavam peixe.É aqui em Óbidos que recrutamos o pessoal para a campanha. Esses homens são os mais duros da Amazônia, e só eles suportam os sacrifícios da expedição”, falou-me o velho e calejado Leônidas Ponciano de Oliveira, mudando o cachimbo de canto a canto da boca já ferida por muitas febres.

 

O sertanista, com trinta anos de serviços demarcatórios, sabia, de certo, o que dizia. Eu o saberia horas depois, vendo aqueles caboclos decididos disputando o privilégio do engajamento. Ao todo, 86 armaram rede nos dois batelões amarrados ao nosso barco como alvarengas.

 

E seguimos no rumo de Manaus, no rumo do Rio Negro, pelo qual teríamos acesso ao Rio Padauiri e seu tributário Marari. Por este, raso e pedrento, chegaríamos ao afluente Madona e a Tapirapecó.

 

NA MEMÓRIA DOS TEMPOS

 

Há mais de dois séculos, daquele mesmo porto de Belém, então escorregadio barranco onde a guarnição do Presépio se ajuntava na pesca de tucunarés e tambaquis, partira a primeira expedição para demarcar a fronteira selvagem do Noroeste do Brasil lusitano com os confins da Nueva Andaluzia. E tantos e tantos decênios transcorridos, desde outubro de 1754, a linha limítrofe, não mais dos domínios de Portugal e Espanha, mas do Brasil e da Venezuela, ainda está por concluir-se em mais de 800 quilômetros, sobre lombadas rochosas da cordilheiras Pacaraima, Parima e Tapirapecó.

 

Cumpria, àquela época, atender instruções pertinentes ao Tratado de Madri; efetivamente atender às disposições do Tratado para a necessária configuração jurídica e física do nosso território, esquecida desde a Capitulación de la Partición del Mar Oceano [Tordesilhas, 07.06.1494], que estipulava o prazo de 10 meses, contados a partir do dia do pacto, para a demarcação do Meridiano de 370 léguas a Oeste de Cabo Verde, Mas foi tudo debalde: durante 5 anos a delegação luso-brasileira, chefiada por Mendonça Furtado, esperou em Mariauá pela delegação espanhola chefiada por Don José Iturriaga e que deveria chegar àquela região navegando pelo Orenoco, Cassiquiare e Rio Negro. Desta vez, porém, não haveria espera demorada: o delegado venezuelano Jorge Pantchenko nos alcançaria, com seus companheiros, próximo da Foz do Rio Padaurí. E alcançou-nos, decidido a sofrer. A fronteira de NE parte da Pedra de Cucuí, na margem esquerda do Rio Negro e segue por uma linha geodésica rumo SE até o salto Huá. É um imenso Igapó essa fronteira demarcada pelo Barão de Parima no período de 1879 a 1883 e confirmada pelo Protocolo assinado Brasil e Venezuela em 09.02.1905.

A OESTE DO DESCONHECIDO

 

Planejara o Gen Bandeira Coelho chefe da CBDL, duas campanhas: uma, fronteira com a Guiana Francesa, visava a fixação de marcos divisórios, dado que o alinhamento do divisor já havia sido executado por outras campanhas: e outra, fronteira com a Venezuela, no NO amazônico. Circunstâncias adversas, porém, alteraram o plano de duas faces, reduzindo-a a um só objetivo ‒ ou seja, marcação sobre Tapirapecó, numa extensão que alcança 200 km, desde a nascente do Rio Madona, afluente do Marari na Latitude Norte de 01°12’16,5” e Longitude de 64°55’35,8”, ao meio do salto Hutá na serra Cupí.

 

FOI TERRÍVEL OBSTÁCULO, MAS VENCIDO

 

Para o Itamarati, responsável pela demarcação das fronteiras, o sertanista demarcador, o caboclo auxiliar que abre caminho pela selva, pelos Rios e pelas montanhas, são apenas homens a serviço da Pátria, e não lhes paga o merecido, o mínimo devido. Dir-se-ia que o próprio governo ignora a soma de sacrifícios dos homens da CBDL e a dedicação de quantos compõem a Divisão de Fronteiras, orientada pelo diplomata e escritor Guimarães Rosa. Demais, o povo, as elites, incluindo instituições culturais, ignoram que o Brasil, ainda hoje, tem quase 1.000 quilômetros de fronteira a demarcar.

 

Anonimamente, o Gen Bandeira Coelho, que herdou do seu antecessor, Cmt Bráz de Aguiar, um legado de penas e ideais, organiza e empreende expedições aos limites Setentrionais, constituindo mérito da CBDL [1ª Divisão] o seguinte quadro de demarcações concluídas: limites com a Guiana Inglesa ‒ 1.605 km; com o Suriname ([1]) ‒ 598 km; com a Colômbia, 1.643 km; com Peru ‒ 1.956 km e com a Venezuela ‒ 1.000 km. Com este país restam exatamente 838 km a demarcar. Cada quilômetro de penetração, de estudo e de fixação de marcos representa uma soma enorme de trabalhos vigorosos.

 

A VOLTA DO DESCONHECIDO

 

Longe, embora, dos meus companheiros de jornada pelos Rios Amazonas, Negro, Padauiri e Marari, sei que, turma por turma, estão de regresso a Manaus, Óbidos e Belém. Uns vitimados pela malária, outros com lesões, e todos estropiados ‒ pois tiveram de para galgar a cordilheira Tapirapecó, escavar degraus na rocha e sofrer intempéries cruéis. Tapirapecó ainda verá os homens da CBDL, e depois a medonha Parima, com suas escamas invioladas. As bandeiras continuarão, sacrificando autênticos heróis na demarcação de limites. (OMI, N° 181)

 

Bibliografia:

 

JDC, N° 105. Demarcação Final da Fronteira – Brasil – Rio de Janeiro – Jornal do Commercio, n° 105, 03.02.1960.

 

OMI, N° 181. Em Plena Mata, Longe do Mundo, são as Fronteiras – Brasil – Rio de Janeiro – O Mundo Ilustrado, n° 181, 10.06.1961.

 

TDI, N° 3057. Fronteira Entre Brasil e Guiana se Resolve Hoje – Brasil – Rio de Janeiro – Tribuna da Imprensa, n° 3057, 03.02.1960.

 

 

 

Solicito Publicação

 

(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;

 

·     Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)

·     Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);

·     Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);

·     Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);

·     Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)

·     Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);

·     Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);

·     Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);

·     Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)

·     Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);

·     Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)

·     Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).

·     Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).

·     E-mail: hiramrsilva@gmail.com.


Veja também: Demarcadores, Heróis Olvidados – Parte I

 



[1]    Guiana Holandesa.

* O conteúdo opinativo acima é de inteira responsabilidade do colaborador e titular desta coluna. O Portal Gente de Opinião não tem responsabilidade legal pela "OPINIÃO", que é exclusiva do autor.

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