Terça-feira, 18 de abril de 2017 - 21h08
Hiram Reis e Silva, Bagé, RS, 18 de abril de 2017.
As grandezas do nosso Brasil, não foram vistas pelo poeta de “Tragédia Épica”, pelo seu lado estático, de formas radiantes de uma natureza grandiosa, mas também pelo seu lado dinâmico, em revelações eloquentes da alma do povo, que sente a terra, o seu cenário e os seus homens, em irradiações estupefacientes de uma majestosa e única prodigalidade. Há, em equipolência (equivalência) das três zonas ‒ o Pampa, o Amazonas e o Sertão do Cariri ‒ a diversidade de três almas ‒ o gaúcho, o seringueiro e o sertanejo ‒ as quais são os três oficiais, senti¬mentalmente dispares no fato da guerra, porque estavam dirigidos por amores diferentes ‒ o da noiva, o da mãe e o da filha.
A correnteza poética, que, dizendo-se nova, por formas extravagantíssimas de Arte e de Estética, procura exaltar a terra e o homem do Brasil, chega tarde, verdadeiramente, em face da prioridade real, que Francisco Mangabeira deu às suas inclinações pela fulgurante grandeza brasileira.
Em “Tragédia Épica” os feitos dos homens se celebraram porque eram eles brasileiros, ao mesmo tempo em que se afirmaram como tais, por sua própria razão de ser. Não se forçou a natureza, nem do quadro, nem das figuras, para se exaltar o heroísmo do jagunço, para se afervorar (encher-se de fervor) o acontecimento épico, contido na grande tragédia, ou para se inundar da luz da glória, a epopeia dos feitos guerreiros.
A tragédia, sendo ao mesmo tempo épica, não tira o valor da raça e do homem, porque é a relação entre o doloroso e o heróico, entre o triste episódio e o vibrante heroísmo O Brasil está louvado sem prejuízo da gramática e da arte, sem desprestígio da poesia e do bom senso Falam três almas distintas, com um só sentimento elevado: o amor da pátria.
Cada um deles sofre, entretanto, o seu amor individualmente, sob a impressão do momento.
O que todos exuberam (tem em excesso) por igual – o Gaúcho, louvando os campos, aonde corre o cavaleiro arguto e sem rival; o Nortista, fascinado pela magnificência do Rio-mar, onde se espelha, não a sua figura na correnteza calma, mas a sua alma, nos grandes momentos das insopitáveis (irrefreáveis) pororocas e o Nordestino, assombrado, não com a sua própria sombra, mas com a fartura da luz e de calor, que o Sol dispersa nas terras, onde a vida se modifica para ser virtualmente ânsia e desespero, na sede e na fome espalhadas pelos sertões áridos e crestados ‒ o que todos exuberam por igual, é a fascinação brasileira, o fanatismo da nossa terra, a paixão das nossas gentes, pelo que é seu, no rincão da família, pelo que é nosso, na pátria brasileira.
Sentiu Francisco Mangabeira nos campos e nas trincheiras, de Monte Santo a Canudos, através de diversas etapas, o valor étnico daquelas gentes desconformes nos sentimentos individuais, e, no entanto, unânimes na objetiva de felicitar o Brasil pela paz entre os seus filhos, levados a campanhas extremas, sem perda, contudo, da noção de identidade humana, que o fanatismo religioso apenas obumbrou (anuviou).
E por isto, para os transviados, o poeta primou na dedicação à caridade. Quando regressou, depois de incendiado o Arraial dos fanáticos e de decapitados muitos deles, pela famosa gravata vermelha, que o foi o degolamento á faca, na fúria dos vencedores, a 23.10.1897, trouxe, como recompensa, os maiores elogios dos chefes militares. Dizia-se que tinha prestado relevantes serviços nos hospitais de sangue, e, mais do que tudo, uma experiência dolorosa do quanto pode, não raro, o atavismo humano.
Porque não salientar o estado d’alma do poeta, como resultado psíquico daquela peregrinação pelos sertões ensanguentados da Bania, com a prova explícita dessa experiência, naqueles belos versos que formam a “Carta do Soldado”, cuja grandiosidade está justamente na razão direta da simpleza com que se escreveram, num ritmo, vulgar, com a luxúria, entretanto, das rimas preciosas? Lá estão esses versos magníficos, escritos nos arraiais da luta, na “Tragédia Épica”, como elemento do grande poema. Mas, eles sós tem o apreço e a valia de um poema. E ainda não é tudo. Contêm eles quadras que em si sós são outros lautos poemas. Eis uma:
Carta do Soldado
(Mangabeira, 1900)
O soldado embora bravo
É esquecido pela lei...
Mas, se eu aqui sou escravo
Nos teus cismares sou rei!
A alma sensível do poeta, procurou, no extremo oposto ao ambiente sangrento, em que fazia o seu tirocínio quotidiano, o meio próprio para produzir a profunda censura da animalidade sobrevivente do homem ‒ a sua obra foi sempre de criação e de crítica ‒ no fato da guerra. Foi consequência esse ponto de vista, em que Francisco Mangabeira se colocou, da necessidade que provou de expandir o seu interesse artístico, ou psicológico, através da rebelião íntima contra os horrores desenvolvidos tetricamente aos seus olhos, na vizinhança do hórrido Canudos. Assim, aspirou ele, com uma vaga tristeza, em ‒ “A Carta do Soldado” ‒ a uma felicidade, a uma expressão de beleza, que estava prometida, mas sempre e sempre recuada, quando nada pela inércia dos combatentes. Mas, aquela passagem pelas intempéries dos hospitais de barraca, a pensar ferimentos e a curar almas, com a sua palavra inspirada na sua fé ardente de artista, contorceu a diretriz da sua existência tranquila e superiormente serena.
Recordar-se aquele instante doloroso, em que Francisco, metamorfoseado em um cirurgião militar, embora ainda a atravessar as Termópilas do terceiro ano do curso médico, dentro de uma farda singela, armado e abatido, na “gare” (estação) da Estrada de Ferro da Bahia ao São Francisco, apertou o seu choroso pai de encontro ao peito, é refazer-se um dos seus grandiosos momentos de sua curta existência de abnegado, que o foi.
Não deslizou pelo seu rosto moreno, uma só lágrima. No entanto, os seus olhos estavam apagados, como as paisagens das serranias envoltas na bruma dos crepúsculos. E, mordendo o lenço branco, sofregamente, nervosamente, pela janela do “wagon” (vagão) – fui testemunho de vista – fitou com o saudoso pai, até que o comboio se foi e ele perdeu, com a distância, a vista do genitor estremecido...
O artista desenvolveu-se triunfalmente com o envolvimento do poeta nas angusturas do Exército, a que servia. O médico, porém, só se completou por força do compromisso de diplomar-se que Mangabeira assumiu com a adoção da carreira. E isto, aliás, sem maior retardamento, em 1900, mas também sem notas acadêmicas, que lhe dessem maior brilho entre os seus condiscípulos e colegas.
Ainda no quarto ano do curso, estimulado pelos arroubos dos encômios (louvores) com que Múcio Teixeira, desde 1896, em uma série de artigos, sob o título de ‒ “Um Novo Poeta Baiano” ‒ estampada no Jornal de Noticias, da Bahia, e em 1897, em continuado estudo, publicado na Cidade do Rio, o afamado jornal de José do Patrocínio, Francisco Mangabeira estampou o seu primeiro livro de versos, sob a impressionante epígrafe de ‒ “Hostiário”. Este volume de grandiosos versos, porém, não foi o que primeiro escreveu o poeta. E isto explicou ele em nota aposta ao volume, do teor que se segue:
Este livro, que tem a prioridade na publicação, não foi o primeiro que compus. Escrevi o “Hostiário” de 1896 a 1897, quando já estavam prontos as Flâmulas e os Poemetos. Se o prefiro aos outros para a minha estreia, é porque o acho o mais sincero de todos, embora a uniformidade do metro e do assunto, possa torná-lo enfadonho. Quanto ao primeiro caso, tenho a declarar que usei propositalmente dum só ritmo de verso, competindo ao leitor dizer se eu soube, ou não, disfarçar a monotonia que talvez daí provenha. Relativamente ao assunto...
As reticências, que não são minhas, mas do poeta, significam, positivamente, muita cousa, porque suspenderam, para sempre, o seu próprio juízo sobre o assunto do poema: o amor. O fato, entretanto, foi que o “Hostiário” sensacionou (teve grande sucesso) e, da Província, o nome do poeta, já definitivamente aureolado, segundo as previsões de Múcio Teixeira, chegou à capital do país, ecoando por todos os Estados, cheio de glórias e de gabos (louvores).
Na Bahia daqueles atrasados tempos, onde, com relativa importância, chegado do Sul, esbanjando a fama que os forasteiros costumam apregoar de si mesmos, pontificava, em rodapés de jornais, Damasceno Vieira, este, do cimo de sua velhice e das ânsias de sua arte passada, não pode deixar de proclamar o triunfo obtido pelo “Hostiário” ‒ acrescendo o valor dessa proclamação o fato de que, feito o pregão de Mangabeira, como o fora por Múcio Teixeira, já tinha o novo artista contra si a inimizade daquele poeta como crítico de seu primeiro livro de versos... Pois Damasceno escreveu:
Assim como das sete notas musicais, compositor emérito sabe formar variadas e felizes combinações, que nos deleitam o ouvido e nos transportam a sentimentais devaneios, assim também o poeta do ‒ “Hostiário” ‒ com limitado número de objetos, compõe um poemeto de 227 páginas: pouco se afasta de vossos olhos deslumbradores, o vosso peito piedoso e são, mãos leves e puras, aquela boca de flor, sorriso brando, cabeça de oiro, tranças bastas e escuras, e a vossa face divina e bela. (DINIZ)
Vossos olhos: «Pois o Sol brilha nos vossos olhos, minha Senhora.» «Surgiste calma, serenamente. E em vossos olhos vi minha cruz.» «Os astros brilham, somente quando vêm vossos olhos.» «Volvei-me a bênção misteriosa dos vossos olhos de serafim!» «Os vossos olhos são meu fanal (farol)» «Nem também rogo doce guarida na luz dos vossos olhos, Senhora.»... (MANGABEIRA ‒ Hostiário)
DINIZ: Francisco Mangabeira escolheu como tema um único assunto ‒ o Amor; uma cadência única ‒ a dos versos de nove sílabas. Espírito juvenil e já transcendente, soube disciplinar-se a ponto de submeter o seu talento a essa dupla cadeia. Traça limitado horizonte ao estro; circunscreve a forma dentro dos limites estreitos dos monossílabos; arrisca-se a parecer monótono; porém vence as dificuldades que se criou para a sua estreia; encara o Amor por mil faces; percorre febrilmente toda a gama da paixão, ora otimista, ora pessimista; dobra e desdobra os versos a seu talante (arbítrio, vontade); repete-os como estribilho; enovela-os; distende-os em quadras, em quintilhas, em oitavas; ‒ e produz assim as mais variadas harmonias, subordinadas embora ao mesmo compasso, como se nos proporcionasse um original concerto só composto de valsas, porém escolhidas e emocio¬nantes valsas de Strauss.
Acha-se o livro metodicamente dividido: a cada um dos quatro tipos ideais de mulher, o jovem poeta consagra doze poesias, demonstrando assim que Dona Laura, Dona Leonor, Regina! e Santa!, merecem-lhe o mesmo culto.
Estava realizado o êxito prometido. O livro emocionava, o livro sacudia a indiferença da Província ressabiada com todos os poetas ‒ prevenção antiga e dolorosa! ‒ o livro, enfim, indicava uma grande individualidade poética, uma grande personalidade artística no seu autor. E bastou “pour épater” (para impressionar)...
Um seu contemporâneo asseverou:
Bem sabia que o seu livro era primoroso e tinha de ser apreciado, se não pelo povo, de quem sabia e dizia ser desvalorizada a opinião, mas pelos que têm e sabem apreciar uma estrofe bem trabalhada, e fora dos moldes banais e vulgares da norma.
E esse contemporâneo, que emitiu tão firme consideração, foi Fernando Caldas, tecendo o elogio do poeta do “Hostiário”. Através das páginas desse seu primeiro livro, o amor é a essência e a própria vida do poeta. Por isto Mangabeira talvez adotasse intimamente como flâmula de seu poema, a expressão de Balzac: “L’Amour c’est mon essence et ma vie” (“O amor é a minha essência e minha vida”).
A razão está por toda a parte. E o poeta a diz nos versos com que abre o hostiário de Dona Leonor
Dona Leonor
(Mangabeira, 1898)
Nestas poesias eu vos proclamo
A vencedora do meu amor...
Resumem-se elas nisto: ‒ Eu vos amo,
Como as abelhas ‒ o prado em flor.
‒ Poli o verso, conforme pude
Para cantar
A primavera da juventude,
Que vejo em vossa fronte brilhar.
Nestas poesias eu vos proclamo
A vencedora do meu Amor...
Resumem-se elas nisto: ‒ Eu vos amo,
Como a ave ‒ o ninho cheio de olor.
Faço com elas uma moldura
Para engastar
A vossa imagem risonha e pura
Os vossos risos, o vosso olhar.
Nestas poesias eu vos proclamo
A vencedora do meu amor...
Resumem-se elas nisto: ‒ Eu Vos amo,
Como o Sol ama seu resplendor.
Uma coroa teço e com ela
Vou adornar
A vossa face divina e bela,
Iluminada pelo luar.
Nestas poesias eu vos proclamo
A vencedora do meu amor...
Resumem-se elas nisto: ‒ Eu vos amo,
Como um crente ama Nosso Senhor.
Inda hei de ver-vos, senhora minha,
A irradiar,
Como se fosseis uma rainha
Vinda das terras de além do mar.
Nestas poesias eu Vos proclamo
A vencedora do meu Amor...
Resumem-se elas nisto: ‒ Eu Vos amo,
Perdidamente, Dona Leonor...
Fontes:
DINIZ, Almachio. Francisco Mangabeira– Brasil – Rio de Janeiro – Tipografia da Escola Profissional, 1929.
MANGABEIRA, Francisco. Ultimas Poesias (Obra Póstuma)– Brasil – Salvador – Oficinas dos dois Mundos, 1906.
(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;
Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);
Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM - RS);
Sócio Correspondente da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER)
Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS);
Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
E-mail: hiramrsilva@gmail.com;
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