Domingo, 8 de dezembro de 2013 - 09h44
Por Hiram Reis e Silva, Bagé, RS, 07 de dezembro de 2013.
- O Naturalista
Como deixar de ouvir o canto do sabiá, o pio da coruja, o coaxar do sapo e das pererecas, o cricri dos grilos, o estrondo das cachoeiras e o murmúrio dos riachos, o rosnar da onça, os gritos dos macaquinhos e o ronco dos guaribas. Sentir a maciez dos musgos e das pétalas das orquídeas e outras flores, o ardor da urtiga, os espinhos das palmeiras e gravatás. (AQUINO)
Quando ainda treinava para a descida do Rio Negro, fui chamado de “Naturalista” pelo Professor Dr. Rualdo Menegat, do Instituto de Geociências da UFRGS. Na época, ele solicitava autorização para reproduzir trecho de um artigo meu sobre o Guaíba.
Prezado Coronel Hiram,
Ao cumprimentá-lo, permita-me primeiramente apresentar-me: sou Professor do Instituto de Geociências da UFRGS. Coordenei a realização do Atlas Ambiental de Porto Alegre, obra que talvez seja do seu conhecimento, e sou membro do Comitê Científico da National Geographic Brasil e da Revista Brasileira de Geociências. No momento, estou preparando a publicação de um pequeno manual para saber por que o Guaíba é um Lago. Esse livro tem finalidades didáticas e destina-se à divulgação científica dos critérios e técnicas que nós pesquisadores utilizamos para definir os acidentes geomorfológicos e hidrográficos.
Li com muito interesse seu artigo “O derradeiro Desafio antes do Rio-Mar”, publicado em seu sítio eletrônico. Fiquei deveras impressionado com as dificuldades colocadas pelas correntes do Guaíba. Assim, peço tua autorização para tornar possível a publicação de um belo excerto de teu artigo, como segue:
Há quase dois anos, estamos treinando, exaustivamente, no Guaíba. O Lago Guaíba proporciona reais dificuldades à navegação com seus ventos fortes e largura de até 18km (entre a Vila Itapoã e a Praia da Faxina) bem superior à do Rio Solimões. As diversas rotas que idealizamos, atravessando o Canal em navegações contínuas superiores a duas horas, buscaram ultrapassar as situações que enfrentaremos na Amazônia. Os ventos do quadrante Sul, superiores a 25 nós (45km/h), passando entre os morros da Ponta Grossa e a Pedra Redonda, criam um interessante efeito de turbilhonamento. As ondas, de até 1,5 m, surgem de todos os lados sem um padrão definido exigindo muita habilidade e força do canoísta. (Hiram Reis e Silva, 2009).
Essa sua descrição coincide espetacularmente com o comportamento das águas de um Lago e, também, faz um alerta para aqueles que pretendem aventurar-se em navegá-lo desavisadamente. Além disso, mostra o espírito de um verdadeiro naturalista, que precisamos desenvolver para observar a natureza em todos os momentos. Sendo o que se apresenta para o momento, coloco-me a sua disposição para dirimir eventuais dúvidas que por ventura possam surgir e aproveito o ensejo para enviar meus protestos de alta estima e sobeja consideração,
Cordialmente, Prof. Dr. Rualdo Menegat
Refletindo um pouco sobre o termo “Naturalista”, fiquei imaginando se eu era realmente digno de ostentá-lo. Acho que alguns fatores importantes devem ser considerados antes de fazê-lo, o primeiro, e fundamental, é o amor pela natureza; outro, é ser capaz sentir a influência sobre os seres vivos ou inanimados, de cada raio de luz filtrado pelas diáfanas nuvens e, por vezes, multiplicado pelas copas frondosas dos seculares colossos das florestas. Teríamos ainda uma relação infindável de considerações a levar em conta que deveriam caracterizar o “Naturalista”. Infelizmente, nos dias de hoje, a extrema especialização acadêmica e o rigor científico são colocados acima de cada um destes requisitos. Na verdade, o mais importante, para o cientista da natureza, é a capacidade de interagir com o meio ambiente que o cerca. De sentir os cheiros, as cores, de viajar no tempo e no espaço, observando tudo que o cerca não apenas com os olhos acorrentados ao presente, mas de ser capaz de recuar e avançar no túnel do tempo para poder entender a evolução dos elementos que o cercam. De se emocionar com o alvorecer e o ocaso de cada dia, de extasiar-se com as sonatas inéditas que emanam dos animais, de encantar-se com as acrobacias das aves... Embora considere que possa me enquadrar em algumas das propostas supracitadas, acho que me falta o conhecimento holístico que possuíam os pesquisadores de outrora. Mesmo quando eram militares com missões eminentemente técnicas, como demarcações de fronteiras ou lançamento de linhas telegráficas, eram capazes de fazer avaliações sobre antropologia, ciências físicas e biológicas etc.
Embora muitas vezes as observações e relatos do “Naturalista” precedam as leituras, o desejável é que, mesmo que a observação tenha sido precedida pelo estudo minucioso de bibliografia, e seja capaz, através de um espírito crítico acendrado, desvincular-se do conhecimento alheio para não enveredar pelas mesmas amareladas páginas sem nada acrescentar de novo.
Não é, desta vez, um humanista, nem um filósofo (...) Não é mais o europeu em busca do desconhecido tropical, que sobe o Rio Negro. Vai senti-lo, portanto, com muito mais intensidade emocional. E por isso mesmo, embora não sendo antropólogo, traz valiosa contribuição ao estudo social da região. (Heloisa Alberto Torres)
A pesquisadora e Naturalista Carla Abreu Soares Aquino na sua tese sobre a “preguiça comum” faz algumas reflexões bastante interessantes a respeito do verdadeiro naturalista:
O “Naturalista” nato adquire seus conhecimentos em contato com a natureza. O profissional passa pelos bancos escolares, onde nem sempre obtém conhecimento geral e global da natureza e sim de fragmentos, na maioria das vezes sem a perspectiva do todo. Esta assertiva não quer dizer que o estudo das partes, efetuado nas escolas, universidades e instituições de pesquisa não seja válido. Pelo contrário. Mas não forma o naturalista.
Os profissionais cada vez mais isolam-se e protegem-se no casulo da “civilização de laboratório”. São cientistas, mas não devem ser chamados de “Naturalistas”. Estão ligados ao cordão umbilical de fórmulas e formulários, bolsas e relatórios. Presos a engrenagens burocráticas crescentes, anunciadoras de que os meios justificam os fins, estes nem sempre alcançados. (...)
A divulgação do que é simples é vestida com uma linguagem complicada, inacessível aos não iniciados: biologês, geologês, etc. Assim, não alcança os objetivos perseguidos consciente ou inconscientemente pelo observador. Que diferença dos textos dos grandes “Naturalistas” e cientistas europeus de menos de um século atrás,que lançaram as bases da ciência atual! Que falta eles fazem! Muitos “Naturalistas” natos desistem de transmitir a outrem o que observaram, frente a essas barreiras com sua ortodoxia (...)
Como colocar nessa camisa de força as sensações mencionadas de início? Como encaixá-las no matematismo? Alguns “Naturalistas”, contudo, têm coragem para desafiar a corrente. (AQUINO)
Matematismo: doutrina que defende que tudo que acontece no mundo pode ser entendido por meio da matemática e obedece a leis matemáticas . (Hiram Reis)
- Relatos Pretéritos
Quantos naturalistas hodiernos seriam capazes de descrever as raízes aéreas como Spruce o faz nas suas “Notas de um botânico na Amazônia”? A narrativa, ao mesmo tempo pragmática e poética, empolga quem a lê e, ao mesmo que transporta o leitor para o seio da mata, projeta diante dele um filme mágico, em imagens aceleradas, reproduzindo todo o processo de crescimento das raízes das figueiras desde sua germinação até o estrangulamento final da árvore hospedeira.
Richard Spruce (1854)
Nas Moráceas, especialmente nas figueiras parasitárias, temos outro tipo de sapopemas, cuja origem é óbvia. Os excrementos de aves contendo sementes dos figos que lhes serviram de alimento caem numa forquilha da árvore, ou mesmo em seu tronco nu ou nos seus galhos, aos quais adere. Ali a semente germina e, à medida que seu caule cresce para cima, suas raízes, em forma de bandeja, e que, caso a árvore hospedeira seja delgada, acabam por se transformar numa bainha, vão descendo, divergindo um pouco da vertical para todos os lados, bifurcando-se aqui e ali, mas sempre buscando o chão. Caso se formem bem alto, essas bifurcações vão-se repetindo uma, duas ou mais vezes, conferindo ao conjunto a aparência de pares de pernas exploradoras, que estariam descendo de uma habitação na qual teriam entrado não se sabe como, e que agora tateiam o chão com os dedos. Ao atingirem o solo, enfiam-se nele profundamente, aumentando aos poucos em largura pela adição de matéria orgânica a sua borda externa, porém conservando praticamente a mesma espessura ao longo de seu comprimento, e desse modo formando umas espécies de contrafortes tabulares. Depois de ter encontrado esses pontos de apoio independentes, o parasito se instala à vontade sobre o tronco amigo que o acolheu, e, já que seu apoio agora se tornou dispensável, costuma sufocá-lo ingratamente num abraço traiçoeiro, até que ele venha a morrer. (...) Somente umas poucas figueiras se desenvolvem desse modo que acabamos de escrever. Outras deitam raízes que se ramificam em espirais, emaranhando-se umas nas outras, até cingir o tronco de uma árvore, formando uma rede tenaz que impede efetivamente seu crescimento ulterior, e que acaba por sufocá-la. Outras emitem rumo ao solo raízes parecidas com cordas, que pendem frouxamente, a princípio, mas que aos poucos se vão tornando retesadas e rígidas. (SPRUCE)
- O Fascinante Negro Caudal
(...) vimos uma Boca de outro grande Rio, à mão esquerda, que entrava no que navegávamos, e de água negra como tinta, e por isso lhe pusemos o nome de Rio Negro. Corria ele tanto e com tal ferocidade que em mais de vinte léguas fazia uma faixa na outra água, sem misturar-se com a mesma. (Gaspar de Carvajal)
O Negro Caudal vem encantando desbravadores, naturalistas, pesquisadores, escritores e poetas desde que se teve notícia de sua existência, pelos “civilizados” há séculos. A cada um, este portentoso ente aquático impressionou de uma forma. Alguns pela cor de suas águas, outros pela força de sua torrente, outros pelas características físico-químicas, outros pelas infindáveis e paradisíacas Ilhas, outros pelo colorido e formas exóticas de sua ictiofauna, outros ainda pela sua diversidade étnica e cultural...
No dia 23 entramos no Rio Negro, outro Mar de água doce que o Amazonas recebe pelo Norte. (...) Testemunhei por meus próprios olhos que essa é a sua direção várias léguas acima de sua desembocadura no Amazonas, onde o Rio Negro entra tão paralelamente que, sem a transparência das águas que se chamam precisamente “Rio Negro”, seria tomado por um braço do próprio Amazonas, separado por alguma Ilha”.
(Jean Louis Rodolphe Agassiz)
Talvez os “cientistas” de hoje pudessem buscar inspiração em textos como o de Aurélio Pinheiro, no seu livro “À Margem do Amazonas” para se aproximar, quem sabe, da sabedoria dos verdadeiros “Naturalistas” de antanho. Pinheiro assim descreve “o Rio Negro”:
Não há talvez em todo o vale do Amazonas ‒ tão fértil em mistérios aterradores, em lendas inverossímeis e em episódios que saciariam a mais sôfrega fantasia ‒ região mais vivamente interessante que a do Rio Negro.
As águas escuras como infinita toalha de hulha polida; as Baías descomunais onde as tempestades levantam ondas como as do oceano; as cachoeiras sem conta interceptando a navegação; as florestas intermináveis, invariáveis, cansativas; as Vilas em ruínas, agonizando em doloroso abandono, “revelando um fim de civilização e de raça”, na magoada expressão de Osvaldo Cruz, ao visitar como higienista e como sábio, a desgraçada Vila de Moura ‒ são etapas melancólicas assinalando a solidão daquelas paragens.
As suas praias de refulgente brancura, brilhando à luz do Sol ou fulgindo à noite, lívidas, parecem mudas legendas seculares perpetuando feitos de supremo heroísmo, abnegações enternecedoras, originais caprichos de governantes, revoltas épicas de silvícolas, tumultos de guerrilhas no entusiasmo e na avidez das primeiras conquistas, audácias indescritíveis de aventureiros, arrojos de missionários expondo as vidas nas tabas alarmadas. (...)
Os barrancos históricos de Thomar recordam a emocionante aventura de Ambrosio Ayres, o Bararoá, figura de caudilho e gentil-homem, conclamando vassalos, amigos e indígenas, chefiando a sua tropa de bravos e lançando o terror nas hostes perversas da cabanagem, que vence gloriosamente nas cercanias da Serpa e de Luzéa, desbaratando-as para sempre.
No solo desventurado de Mariuá ainda se encontram vestígios das edificações de Joaquim Tinoco Valente e de Lobo d’Almada, Governadores da Capitania de São José do Rio Negro, erguendo palácios, fábricas e quartéis, num grandioso sonho de prosperidade e de força para a terra ilimitada que governavam e defendiam ‒ convictos de que aquela soberba Mariuá, à margem da Negra Caudal, seria a célula de toda a civilização da Bacia amazônica. Mariuá, porém, longínqua, estéril, insalubre, teria de desaparecer. E ficaram na terra abandonada os cadáveres de Tinoco Valente e Lobo d’Almada, os mais ardentes sonhadores da grandeza do Amazonas. (...)
A certeza do prêmio ao labor sobre-humano; o súbito aparecimento da “Manôa Dorada” faiscando ao Sol; a evidência das serranias que deviam guardar nas entranhas todo o ouro da terra; a água dos Paranás e dos Rios lavando esmeraldas e diamantes; as fábulas magníficas de Orellana, Pizarro, Almagro e Ursúa, correndo por toda a planície, desde a cordilheira dos Andes até a Foz do Mar Dulce ‒ davam aos forasteiros perturbados essa extrema intrepidez que ainda hoje assombra os historiadores.
Os bandeirantes do Sul rasgavam longas veredas que os levavam ao seio das matas impérvias (impenetráveis), ao ápice das serras desconhecidas, aos Rios ainda sem nome ‒ e as cenas de bravura e sacrifício abarrotam por aí pesados volumes de comovedora literatura. Mas, geralmente, os bandeirantes partiam em grupos numerosos, em aparelhadas monções, organizadas, armadas, instruídas, sob o comando de chefes experientes. E os louvores a esses pioneiros reboam há trezentos anos em vastos capítulos da nossa história. Merecem-nos, não há dúvida. Ao destemor, ao sofrimento, à tenacidade dos antigos paulistas, deve o país essa homenagem. (...) Que coragem se poderia comparar a de Francisco Xavier de Moraes, que em 1747 atravessava a teia dos múltiplos cursos d’água do Alto Rio Negro, e rompia o Cassiquiare, ignorando certamente que transpunha o “divortium aquarum” das Bacias do Amazonas e do Orenoco? (...)
O Rio Negro, deserto, sombrio, faminto como todos os Rios de águas escuras na Amazônia, doentio, triste, só poderia inspirar lendas sinistras. Mariuá foi um erro inexplicável dos primeiros Governadores; um século de retardamento para o Amazonas ‒ e ninguém hoje acreditará que essa mísera “Villa de Barcellos” foi antigamente a poderosa metrópole da Capitania de São José do Rio Negro. (...)
E as suas árvores devem reter ainda, na tristeza das frondes e na rede torturante das lianas, os soluços e as iras e as blasfêmias, desse homem de gênio, boêmio, cavalheiresco, transviado, ingênuo como uma criança, herói como um conviva da Távola Redonda, que foi Eustásio Rivera, transvasadas nas páginas doloridas de “La Voragine”. (PINHEIRO)
- A Singular Torrente
O Negro me envolveu no seu manto de mistério; a alvorada silente, diferente do Solimões, que mais parecia uma Ode à Natureza, torna-o, à primeira vista, um ser inerte, apático e sem vida. A beleza das paisagens contrastava com a ausência de sons. A calmaria do Alto Rio Negro e as belas Ilhas de pedra foram substituídas, à medida que progredíamos, pelas intermináveis praias de areias virgens, pelos banzeiros e fortes ventos de proa que dificultavam a progressão de minha equipe de apoio no seu precário “bongo”.
Diferente dos ventos sulistas, que acariciam a superfície das águas do irmão Guaíba, os banzeiros formam ondas que não obedecem a um padrão definido tentando jogar o casco do meu formidável “Cabo Horn” para todos os lados, e só consegui mantê-lo na rota graças ao formidável leme que possui. Diferente do Solimões, cujas águas podiam ser cortadas sem o uso deste implemento, aqui no Negro ele é de vital importância.
- Margens Funestas
(...) revolto, e vacilante, destruindo e construindo, reconstruindo e devastando, apagando numa hora o que erigiu em decênios ‒ com a ânsia, com a tortura, com o exaspero de monstruoso artista incontentável a retocar, a refazer e a recomeçar perpetuamente um quadro indefinido (...) (CUNHA ‒ 2000)
O efeito devastador das águas do Solimões sobre as margens, golpeando, destruindo, arrastando, reconstruindo, alterando continuamente seu traçado, aqui não se vê. O Negro derruba os gigantes da floresta, mas eles permanecem aferrados aos barrancos de onde tombaram. São redesenhados, esculpidos pelas mãos do tempo e das águas. No Baixo Rio Negro, as margens de tabatinga, golpeadas continuamente pelos banzeiros, formam formidáveis paredões verticais e as arenosas espraiam-se preguiçosamente. No Alto Rio Negro, as margens íngremes rochosas e as de terra mostram-se revestidas por uma interminável rede formada pelas radículas provenientes das bases das árvores, compondo uma densa e extensa franja.
- Pobre Vegetação
No Rio Negro, cortei e medi tantas árvores, inclusive das mais altas, que disponho de dados suficientes para indicar com relativa precisão as alturas médias e máximas das florestas existentes em diversas partes da região, mas tenho de admitir que jamais encontrei uma árvore que fosse mais alta do que as que vi no Pará. (SPRUCE)
As terras mais pobres não apresentam a estupenda variedade e portento da Bacia do Solimões e as águas carentes de nutrientes não revitalizam a várzea por ocasião das cheias. Talvez, por tudo isso haja uma diferença tão grande na capacidade de trabalhar dos nativos das mais variadas etnias do Alto Rio Negro em relação aos Tikunas do Alto Solimões. A compleição física indica uma carência alimentar ancestral que não conseguiu ser suprida até os dias de hoje, agravada, certamente, pela falta de aptidão para a agricultura e o secular vício da bebida.
Descendo o Rio Negro
Desde o primeiro dia de minha Expedição pelo Negro, eu comparava as paisagens atuais com as imagens pretéritas do Solimões. Impossível deixar de estabelecer comparações entre as características do primeiro com as do segundo. O foco inicial de minha atenção no Negro se voltou para o silêncio das matas ciliares. A alvorada no Solimões era uma verdadeira Ode à Vida e ao Sol, carregada de sons de pássaros de todos os matizes, acompanhada pelo soturno ronco gutural dos guaribas, possuía uma singular beleza que me arrebatava e me fazia mergulhar nos mistérios e belezas da natureza.
O Negro, com suas Ilhas e praias de incomparável beleza mais parecia um grande e belo quadro de natureza morta. As matas de menor porte do Negro não tinham a diversidade, a opulência e os frutos das do Solimões que permitiriam que os pássaros a povoassem. A torrente mais lenta causa um impacto bem menor nas margens que, por isso mesmo, guardam cicatrizes perpétuas dos gigantes da floresta tombados pelos temidos banzeiros. É interessante confrontar minhas impressões com a dos naturalistas do passado, por isso, transcrevo os relatos abaixo, lembrando, porém, que as observações de Spix se estenderam, apenas, até a Cidade de Barcelos e as de Agassiz até Pedreira (atualmente Moura).
Johann Baptist Von Spix (1820)
O seu declive é muito pequeno, de sorte que mais parece Lago do que Rio corrente; porém o mais fraco vento faz levantar vagas, durando a agitação muito mais tempo do que no Solimões; se o vento é mais violento ou é mesmo temporal, o movimento das suas águas é igual ao das do Mar, assustando os navegantes. Este é também o único perigo até Santa Isabel, onde começaram a aparecer no Rio bancos e violentas corredeiras, e mais acima estão as cachoeiras. Neste Rio, nada se tem a recear dos desabamentos de barrancos, de troncos de árvore deitados perto da margem ou boiando no Rio. Também é livre de toda praga de insetos (carapanãs, piuns, maruís, mutucas, brocas e formigas), que são o flagelo do Solimões; entretanto, isso só até Santa Isabel, pois, daí em diante, até às nascentes, aparecem os piuns em enxames enormes e também não faltam as espécies branca e escarlate quase invisíveis de ácaros, o micuim, que penduram no capim e se apegam aos transeuntes, produzindo com as suas picadas uma comichão intolerável e, depois, pequenos tumores. Em contraste com o Solimões, cujas margens estão em grande parte expostas às inundações e quase sempre são pantanosas, o Rio Negro tem margens limpas, arenosas, secas e terrenos mais altos, particularmente do lado Meridional, onde as terras elevadas, pedregosas, descem frequentemente em declive suave de 200 a 300 passos, numa clara margem arenosa, revestida de árvores anãs e de arbustos ralos, que é uma espécie de campo, seguindo-se logo a mata mais alta e densa. Essa mesma mata não é irregular, como a do Solimões composta por árvores pequenas e gigantescas, de arbustos, embaúbas, palmeiras, etc, da maior diversidade de árvores e do mais variado colorido. É, ao contrário, regular; as árvores são do tamanho mediano com a uniforme tonalidade e brilho das folhas especas, como as das lauráceas, de sorte que essa floresta mais parece umas arcadas contínuas, sob as quais se pode passear a vontade. Pena é não serem essas magníficas praias semelhantes a campos, nem essa aprazível mata animada por quase pássaro algum,mas apenas por muito poucos macacos.Pelo fato de o Solimões adubar muito mais as suas margens e serem elas gordas e férteis,parecem que todos os seres vivos correm para ali. Quando navegávamos no Amazonas e Solimões, nunca nos faltava caça, e cada lanço da tarrafa nos trazia 50 a 100 peixes de diversos tamanhos. O contrário se dá nas águas escuras do Rio Negro. Nem a mata nem as águas oferecem presas, e pode-se estar a pescar o dia inteiro, sem apanhar um só peixe, a isso juntam-se o silêncio e a uniformidade da floresta, a cor negra da água, o que torna melancólica a viagem e só favorece a meditação. (...) Na verdade, também a extraordinária fertilidade do Solimões faz com que, apesar de todos os carapanãs e de outras pragas, as suas povoações sejam muito mais habitadas que a do Rio Negro. (...) Ambos os Rios têm os seus baixios mais para o lado Setentrional, e o Negro, também aí, maior número de Igarapés e Lagos; na margem Meridional destes dois Rios é que se acha a maioria das povoações. (SPIX)
Luís Agassiz, e Elizabeth Cary (1865)
Ontem pela manhã, entramos no Rio Negro e observamos o conflito de suas águas calmas e quase pretas com as ondas amareladas e apressadas do Solimões, como é denominado o médio Amazonas. Os Índios chamam-nos admiravelmente: “o Rio Vivo e o Rio Morto”. O Solimões vem encontrar a corrente escura e lenta do Rio Negro com uma força tão irresistível, tão viva que este último parece bem, ao lado dele, uma coisa inerte. Verdade é que esta época do ano é aquela em que as águas dos dois grandes Rios começam a baixar, e o Rio Negro parece opor uma fraca resistência à força superior do Solimões; durante um rápido instante, ele luta contra o Rio impetuoso; mas, logo subjugado e estreitamente comprimido de encontro à margem, prossegue o seu curso até uma pequena distância, lado a lado com o Solimões. O mesmo não se dá na época das cheias; então o enorme Rio comprime com tal superioridade a embocadura do Rio Negro que nem uma gota de suas águas, pretas como tinta, parece se misturar à massa d’água amarelada do interruptor; este atravessa o seu afluente e passa, barrando-o completamente. (AGASSIZ)
Gastão Cruls (1944)
Bem diferente há-de ser o aspecto da flora marginal se penetrarmos qualquer Rio de águas pretas. Aí, nada do friso de capins aquáticos e praieiros, ou da orla de outras plantas herbáceas que nos rios de aluvião antecedem a mata e, por ocasião das enchentes, não raro se despregam das ribanceiras para formar os periantãs que descem de bubuia, ao sabor da corrente, levando no seu bojo garças e outras aves, quando não até onças, colhidas de surpresa sobre essas Ilhas viajeiras. Não. Nada disso. Tal como no Rio Negro, Rio de águas pretas que poderia ser tomado como padrão, a floresta não se faz anunciar. Chega logo à beira dágua e apresenta-se sem rebuços. Não se pense, porém, que por vir assim, tão prontamente, ao nosso encontro, tenha um ar mais prazeroso e comunicativo. Muito ao contrário, de um verde tristonhamente carregado, essa mata, de árvores não muito altas e folhagem miúda, tem um rosto bastante severo, trai qualquer coisa de sombrio e misterioso. (CRULS, 2003)
- Livro do Autor
O livro “Desafiando o Rio-Mar – Descendo o Solimões” está sendo comercializado, em Porto Alegre, na Livraria EDIPUCRS – PUCRS e na rede da Livraria Cultura (http://www.livrariacultura.com.br). Para visualizar, parcialmente, o livro acesse o link:
http://books.google.com.br/books?id=6UV4DpCy_VYC&printsec=frontcover#v=onepage&q&f=false
Fonte: Coronel de Engenharia Hiram Reis e Silva
Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);
Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS);
Colaborador Emérito daAssociação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra(ADESG).
Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
E-mail: hiramrsilva@gmail.com
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