Segunda-feira, 30 de novembro de 2015 - 14h59
Hiram Reis e Silva, Bagé, RS, 30 de novembro de 2015.
Rondon: altura média, testa larga, fisionomia distinta, traços finos, olhos amendoados, queixo delgado. Herói que nasceu soldado e morrerá soldado. Mas herói “sui generis” que, para não matar, nem deixar que se matasse um só homem, preferiu arrostar cem vezes a morte... (Fuad Carim ‒ Embaixador da Turquia no Brasil, 1953).
23.10.2015 (sexta-feira) – Navegando pelo Rio Paraguai
Partimos de Cáceres, margem esquerda do Rio Paraguai, às 15h20 em duas pequenas, mas confortáveis, voadeiras pilotadas pelo alemão e pelo Angonese, dando início à etapa mais tranquila de nossa Expedição. Apesar de ser uma sexta-feira, as margens estavam tomadas por pescadores ou grupos de banhistas que aproveitavam as águas ou a sombra da vegetação para escapar da canícula. Avistamos dois enormes e preguiçosos tuiuiús (Jabiru mycteria) pescando pequenos e inocentes lambaris sem ao menos precisar entrar n’água, urubus e biguatingas. Volta e meia o alarido provocado por bandos de araras e periquitos quebrava, momentaneamente, a tranquilidade da natureza que nos envolvia.
Relatos Pretéritos - Rio Paraguai
Guenrikh Guenrikhovitch Manizer (1821 a 1828)
Reportando os relatos do Barão Georg Heinrich von Langsdorff na sua Expedição pelo Brasil:
Os guaicurus uma vez foram desafiar os portugueses até em Vila Maria (São Luiz de Cáceres, à margem do Rio Paraguai), saqueando-a e tudo levando a ferro e fogo. Em não poucas ocasiões travaram renhidos combates com as monções. Uma delas, composta de 50 a 60 canoas e cerca de 600 homens, sofreu completa derrota. Em outro ataque mataram eles a tripulação inteira, escapando só cinco pessoas que se esconderam na mata. Contam que num desses encontros, um mulato de São Paulo, famoso pela colossal corpulência e força extraordinária, sustentou com o auxilio de sua esposa, o choque de várias canoas tripuladas por guaicurus... (MANIZER)
Francis de Castelnau (1843 a 1847)
Quando passamos por Vila Maria estavam sendo celebradas as festas do Pentecoste. Afora as cerimônias religiosas, houve espetáculo, em que foi representada a Inês de Castro e algumas outras peças mais ou menos interessantes. O fim da festa foi assinalado por uma grande representação, de que fez parte, entre outras coisas dignas de nota, uma pantomima em que Caim desancava Abel a cacetadas, invocando, contudo, a cada momento o nome de Nosso Senhor. Toda a população do lugar corria a ver essas coisas, o que nos deu ensejo de apreciar a enorme desproporção existente entre o número de pessoas dos dois sexos. Havia nada menos de duas mulheres para cada homem.
Vila Maria tomou este nome por ter sido fundada sob o reinado de D. Maria I. A cidade parece destinada a rápido crescimento; mas o descaso do governo, e também dos próprios habitantes, de par com a falta de comunicação com o baixo Paraguai, tem impedido que ela se desenvolva como era de esperar. Sua população não vai além de quinhentas ou seiscentas pessoas e toda a freguesia de que é ela centro não possui mais de mil e oitocentos habitantes de todos os matizes, inclusive cerca de duzentos escravos. Contam-se entre os habitantes uns seiscentos índios, descendentes, diz-se, dos Chiquitos da Bolívia. Vila Maria está situada na margem esquerda do Rio Paraguai, num lugar em que a barranca não tem menos de uns dez metros de altura. Apesar da situação em que está, toda a região em volta não raro se acha inundada, pois o Paraguai, recuando sempre para o lado esquerdo, tende a destruir o terreno em que está construída a cidade. Já várias casas desabaram no Rio, enquanto outras se acham de tal modo em risco de cair, que foi preciso abandoná-las.
Vila Maria é a principal cidade de Mato Grosso, do lado da fronteira boliviana. O comandante da praça, como já dissemos, é um capitão, que tem debaixo de suas ordens de setenta a oitenta soldados. O destacamento de Jauru, composto de oitenta e quatro homens comandados por um alferes, está subordinado ao posto de Vila Maria, bem como o das Onças, que é constituído de uma quinzena de soldados, comandados por um sargento e um cabo. Veem-se na caserna quatro peças de artilharia, duas de calibre dezoito e as outras de doze. Estes canhões foram trazidos até Diamantino pelo Rio Arinos, em 1825. O atual comandante de Vila Maria, que naquele tempo estava empregado em Diamantino, fê-los arrastar por terra até Buriti, de onde foram transportados Rio Paraguai abaixo até o seu destino, onde chegaram em 1827. As autoridades deste estabelecimento são um subdelegado e um juiz de paz. O principal, para não dizer o único comércio do lugar, é o da ipecacuanha, planta que cresce em abundância nas margens do alto Paraguai, do Vermelho, do Sepotuba e do Cabaçal.
Ipecacuanha (Psychotria ipecacuanha): seu nome origina-se da palavra nativa i-pe-kaa-guéne – “planta de doente de estrada”, mais conhecida como ipeca ou poaia. Nas raízes desta planta, nativa das florestas tropicais americanas, são encontrados dois alcalóides importantes – a emetina e a cefalina que são usados no combate da diarréia e amebíase, além de serem considerados excelentes expctorantes e antiinflamatórios. (Hiram Reis)
A colheita desta planta é praticada geralmente durante os meses de seca, ou seja desde março até setembro; mas há ocasiões em que ela é igualmente praticada mesmo na estação das águas, quando é muito mais fácil arrancar a planta do chão amolecido pela umidade. As canoas que saem de Cuiabá, descem o Rio do mesmo nome e sobem o Paraguai, entretendo assim um comércio que atinge por ano milhares de arrobas do produto a que nos estamos referindo. Foi em 1814 que o Desembargador José Francisco Leal anunciou a existência da ipecacuanha nessa região, onde tinha sido enviado pelo governo, com o fito de procurar terrenos auríferos no distrito de Vila Maria e nas margens do Rio Cabaçal. Estes, apesar de não serem nada raros, lhe pareceram muito menos ricos em mineral do que havia calculado. Durante muitos anos ninguém se importou de utilizar a descoberta; mas, em 1830, um negociante de nome José da Costa Leite, tendo conseguido juntar duas arrobas da planta, remeteu-as para o Rio de Janeiro, onde a acharam de boa qualidade e a pagaram à razão de 1.600 réis a libra.
Negócio tão vantajoso deu logo origem a uma exploração considerável do produto, que continuou até 1837, quando a sua cotação começou a baixar, em consequência da enorme quantidade que dele se oferecia no mercado. Avalia-se em nada menos de vinte e cinco mil arrobas a quantidade de ipecacuanha lançada no comércio entre os anos de 1830 e 1837. Por fim, a extração da planta foi abandonada, até o ano de 1844. Por esta época, tendo sido vendidas no Rio de Janeiro algumas arrobas de ipeca à razão de 850 e 900 réis, preço que embora muito inferior ao que ela alcançava no princípio ainda deixava boa margem de lucro, voltou-se a explorá-la regularmente, com a probabilidade de que não mais se terão de temer as bruscas oscilações de preço verificadas no começo. A ipecacuanha, a julgar pelo que dizem os nativos, só ao cabo de dezesseis anos atinge completo desenvolvimento; sendo assim, não é crível que os mercados fiquem jamais tão abarrotados que o preço do produto venha a baixar demasiadamente. (CASTELNAU)
Roy Nash (1939)
2. CURSOS INTERIORES
Ótimos navios fluviais fazem com regularidade a carreira de Buenos Aires a Assunção; daí a Corumbá, trabalha outra frota; acima de Corumbá, navios menores fazem o transporte até Cuiabá e São Luiz de Cáceres; mesmo acima dessas cidades há um serviço de lanchas a vapor com percurso de vários dias e que só não funciona na força da estiagem. (NASH)
23.10.2015 (sexta-feira) – Navegando pelo Rio Sepotuba
Depois de navegarmos por aproximadamente 30 km, encontramos a Foz do Rio Tenente Lira (15°55’23,6” S / 57°39’05,0” O). Deixamos, então, o Rio Paraguai para trás e adentramos no Sepotuba. A jusante da Foz atual avista-se uma segunda Foz que pode ter sido o leito do Rio anteriormente. Os Rios de planície são inconstantes e tumultuários e tem a necessidade de redesenhar seus cursos continuamente. A perda da mata ciliar, a ação antrópica e o consequente assoreamento aceleram ainda mais este processo. Aportamos no nosso destino, Pesqueiro da D. Josefina (15°42’44,3” S / 57°40’01,6” O), sogra do nosso guia e piloteiro “Alemão”, a 72 km de Cáceres, às 18h30. Tentamos, sem sucesso, fazer contato pelo celular com familiares e amigos e depois de um saboroso peixe assado preparado pela D. Josefina fomos dormir em nossas barracas armadas sob um tapiri.
Relatos Pretéritos - Rio Tenente Lira ou Sepotuba
Theodore Roosevelt (1914)
07.01.1914 – Após deixarmos Cáceres, subimos o Rio Sepotuba, que no dialeto dos índios da região significa “Rio das Antas”. Este Rio só é navegável para navios grandes quando as águas estão altas. É de corrente rápida e belas águas claras, que desce das terras elevadas do planalto e se estende através da floresta tropical da baixada. O Rio Sepotuba nasce no Norte do estado do Mato Grosso, estando suas nascentes situadas nas escarpas da Chapada dos Parecis, que possui até 800 metros de altitude. Esta chapada é o divisor de águas entre a Bacia Amazônica e a Bacia do Paraguai. À nossa direita, ou na margem Ocidental, e a espaços na margem esquerda, a mataria é interrompida por pastagens nativas e campinas. (ROOSEVELT)
Cândido Mariano da Silva Rondon (1914)
Deixando Cáceres (07.01.1914), deixamos também o Nioaque ‒ não poderia ele ir além. Começamos a subir o Sepotuba (Tapir), explorado cientificamente em 1908. Rio claro, descendo do planalto para as florestas das terras baixas, só era navegável no tempo das águas. Subimos até Porto Campo, onde pousamos a 07.01.1914. (VIVEIROS)
Nioaque: desde o Rio Apa até Cáceres, a Expedição navegou a bordo do paquete (navio a vapor) Nioaque. De Cáceres em diante a jornada seria realizada em embarcações menores ou a pé. (Hiram Reis)
Amílcar Armando Botelho de MAGALHÃES (1942)
Recorreremos a um capítulo do livro “Impressões da Comissão Rondon”, do Coronel Amílcar Armando Botelho de MAGALHÃES, para reportar o acidente fatal que vitimou o valoroso Tenente Lyra e prestar uma justa homenagem a este herói anônimo de fibra inquebrantável que depois de tombar nos “ermos sem fim” do sertão inóspito cumprindo seu dever emprestou seu nome ao Rio.
UMA PÁGINA DE SAUDADE
1° Tenente João Salustiano Lyra
Quis um destino caprichoso, imprevisto como todos os destinos, que fosse perder a vida num pequeno Rio (Sepotuba, afluente da margem direita do alto Paraguai) aos 03.04.1917, quando dirigia uma turma independente de serviço geográfico, em trabalhos de levantamento da carta de Mato Grosso. [...]
No cenário apenas quatro protagonistas, dois que pereceram e dois que se salvaram; uma corredeira impetuosa onde as águas borbulham e burburinham, espadanando sobre rochedos; em torno a floresta despovoada, silenciosa e indiferente como toda massa inerte da natureza... Nesse desvão sem glória, a mão do destino apaga facilmente uma existência gloriosa e uma juventude viril também preciosa - Lyra e Botelho.
Tem muita força a fatalidade: como conceber de outra forma que dois grandes nadadores, de fortes músculos, acostumados a esforços mais violentos, fossem vencidos nessa luta?! Ainda mais quando a calma revelada pelos náufragos levou-os a atirar para terra as cadernetas de levantamento, para que não se perdessem na corrente e com elas desaparecesse o resultado do trabalho até aí executado; quando espontaneamente atiram-se na água, na convicção de que tal iniciativa evitaria, como evitou, a submersão da pequena canoa [montaria] em que navegavam! Esta, flutuou realmente, depois de colher em seu bojo boa porção de líquido, e, arrastada pela correnteza só pôde ser atracada à margem 200 metros a jusante, apesar do esforço neste sentido empregado pelo piloto. Fora lançado na água, ao primeiro desequilíbrio da canoa, o proeiro, que nadou para a margem e nada mais viu, porque tratara apenas de se salvar. O piloto, no último olhar que lançou para a retaguarda, viu ainda os dois oficiais à tona da água; quando saltou em terra e correu margem acima ao local do sinistro, nenhum vestígio mais deles encontrou: haviam desaparecido.
Aos gritos do piloto, na esperança de que os oficiais, arrastados pela velocidade das águas, pudessem ter saído mais abaixo, apenas o eco respondeu... Por terra, trilhando caminhos diferentes, a tropa diariamente vinha à beira do Rio, ao encontro da turma de levantamento, em pontos previamente determinados pelo Chefe da Expedição ‒ Tenente Lyra. E era essa justamente a última etapa a vencer, para amarrar o serviço a Tapirapoã, porto da margem esquerda do Sepotuba (hoje Rio Tenente Lira) até onde, desde a foz, a Comissão havia já executado o levantamento desse curso de água. A última etapa correspondeu, assim, o último dia de vida dos dois distintos oficiais. (MAGALHÃES)
Projeto Rio Sepotuba (2015)
Rio Sepotuba: O Rio Sepotuba é um importante afluente da Bacia do Alto Rio Paraguai, sendo um dos seus principais tributários. Na língua dos índios Parecis, chama-se Kazazorezá, que significa “Cipozal”, devido à grande quantidade de cipós encontrados em suas matas ciliares. Também recebe o nome de Rio Tenente Lira, em homenagem ao Tenente João Salustiano Lyra, que foi o responsável designado por Marechal Rondon, para o levantamento topográfico da região para a instalação de linhas telegráficas, que ligava Cuiabá – Santo Antônio do Madeira. O Tenente Lyra não assistiu a finalização desse empreendimento em 1919, pois no dia 03.04.1917, morreu afogado nas corredeiras do Rio Sepotuba e seu corpo jamais foi encontrado. (projetoriosepotuba.blogspot.com.br)
Fontes:
CASTELNAU, Francis de. Expedição às Regiões Centrais da América do Sul ‒ Tomo II‒ Brasil ‒ Rio de Janeiro ‒ Companhia Editora Nacional, 1949.
MAGALHÃES, Amílcar Armando Botelho de. Impressões da Comissão Rondon ‒ Brasil ‒ Rio de Janeiro ‒ Companhia Editora Nacional, 1942.
MANIZER, Guenrikh Guenrikhovitch. A Expedição do Acadêmico G. I. Langsdorff ao Brasil, 1821-1828 ‒ Brasil ‒ Rio de Janeiro ‒ Companhia Editora Nacional, 1967.
NASH, Roy. A conquista do Brasil‒ Brasil ‒ Rio de Janeiro ‒ Companhia Editora Nacional, 1939.
ROOSEVELT, Theodore. Nas Selvas do Brasil‒ Brasil ‒ São Paulo ‒ Livraria Itatiaia Editora Ltda ‒ Editora da Universidade de São Paulo, 1976.
VIVEIROS, Esther de. Rondon Conta Sua Vida‒ Brasil ‒ Rio de Janeiro ‒ Livraria São José, 1958.
(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;
Integrante do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS);
Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);
Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM - RS);
Sócio Correspondente da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER)
Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS);
Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
E-mail: hiramrsilva@gmail.com;
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