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Gente de Opinião

Hiram Reis e Silva

Expedição Centenária R-R – 2ª Fase (IX Parte)


Hiram Reis e Silva, Bagé, RS, 16 de dezembro de 2015.

No Rio Sacre, nesta expedição (1907) visitamos, como já foi dito, o Salto da Mulher. O leito do Rio, a montante, é de pedra de amolar – arenito amarelo claro, bastante rijo. O Salto de sete para oito metros, deixa passar um volume de água de cerca de 20 mil metros cúbicos (por segundo). Justamente onde termina o arenito aí se deu a queda, pela diferença do leito que é de areia, para baixo do salto. (MAGALHÃES)

Neste Rio (Sacre) teve Rondon ensejo de visitar o “Salto da Mulher” de que lhes falavam os dois índios e ao qual atribuem os Paresí a lenda da “existência de uma ninfa, debaixo da grande massa d’água que se despenha, com o dom de atrair e arrebatar os incautos que se aproximarem”. Foi avaliada a descarga em 30 a 40.000 litros por segundo e a altura da queda em 8 metros. (ROOSEVELT)

Fomos ter ao Timalatiá, ou Sacre ‒ corruptela de Sangue ‒ nome dado ao Rio por causa de uma anta que os índios mataram e esfolaram na margem e que tingiu as águas. Queria eu determinar as coordenadas geográficas de um grande Salto que aí existia, o Zuritô-Uamoloné ‒ Salto da Mulher ‒ nome dado em virtude da lenda de uma iara que para o abismo arrastava os incautos que se aproximavam. (VIVEIROS)

Aldeia Zanakwa à Aldeia Salto da Mulher (03.11.2015)

Partimos da Aldeia Zanakwa, às 09h10, depois de nos despedirmos da Cacique Marinho e de sua simpática família. No caminho o “Boi” e o Angonese tentaram, em vão, fazer uso de seus celulares. Essa seria nossa jornada mais cansativa, tínhamos pela frente cinquenta quilômetros de marcha até a Aldeia Salto da Mulher. Como íamos passar nas proximidades de uma grande fazenda entreguei ao Sargento Yuri o numerário suficiente para adquirir três sacas de milho, eu estava preocupado com a falta de alimento para os muares, o cerrado ralo não tinha gramíneas suficientes que os sustentassem. O fazendeiro negou-se a receber dinheiro pela aquisição das sacas fornecendo-as gratuitamente ao Sargento Yuri. As pancadas de chuva sucediam-se e volta e meia os animais escorregavam na estrada argilosa. Por volta das dezoito horas chegamos à Aldeia e contatamos o Cacique Acelino Noizokae, seu líder, que disponibilizou-nos a confortável residência de seu falecido filho e um curral para os muares. Tínhamos cavalgado 50 km. O filho do Cacique morreu afogado depois de pular da Ponte Nova da rodovia MT-235 sobre o Rio Sacre e bater a cabeça no madeirame da ponte velha foi arrastado pelas águas até o Salto da Mulher. Os jovens da Aldeia costumavam lançar-se às águas do Rio Sacre pulando da Ponte Nova, mas desde o acidente fatal que vitimou o filho o Cacique Acelino proibiu definitivamente tal prática.

Colhi algumas mangas “Coração de Boi” ainda verdes para serem degustadas durante a marcha. O “Boi” estava febril e foi levado ao entardecer até um Posto de Saúde para tratar da furunculose que o afligia. Diferente das demais Aldeias Paresí onde a caixa d’água era abastecida por poço artesiano alimentado por energia solar aqui era empregado um motor elétrico com a alternativa, em caso de falta de energia, de ser abastecido por uma roda d’água instalada no Rio Sacre.

Aldeia Salto da Mulher ao Galpão (04.11.2015)

Como o aprestamento matinal de meus parceiros fosse por demais demorado, ajudei o “Boi” com os animais. Os muares estavam famintos ‒ o luxuriante capim braquiarão do curral não era próprio para sua alimentação, tivemos de contemplá-los com generosas porções de milho antes de partir. Feito isto ainda me sobrou tempo para visitar o Salto da Mulher no Rio Sacre (13°54’06,0’’S / 58°15’56,0”O).

Chegamos cedo ao Galpão Agrícola (13°42’27,5’’S / 58°17’35,0”O) dos Paresí depois de cavalgar 25 quilômetros, 19 dos quais pela MT-235. Subi em uma antena próxima, mas não consegui nenhum sinal pelo celular, aproveitei, então, para tomar banho em uma nascente próxima. Logo que a equipe de apoio chegou com a Marruá iniciaram-se os preparativos para o churrasco.

Parceria Agrícola dos Paresí

A partir de 2005, os Paresí permitiram a entrada de fazendeiros nas Áreas Indígenas, situadas na região sudoeste do Mato Grosso, como alternativa suplementar de renda que é empregada em projetos comunitários e melhorias na infra-estrutura das Aldeias. Os Paresí entram com a terra e parte dos operadores das máquinas que aprenderam a manejá-las com os funcionários das fazendas e nos cursos ministrados pelo Serviço Nacional de Aprendizagem Rural (SENAR) enquanto os fazendeiros fornecem as sementes, máquinas e insumos. O lucro obtido com a safra do arroz, do milho e da soja é dividido em parcelas iguais. A iniciativa divide opiniões entre as principais lideranças Paresí. Na entrevista que realizamos com os Caciques Juvenal (Aldeia Kotitiko) e João Garimpeiro (Aldeia Kamai) ambos foram taxativamente contrários a este tipo de sociedade. As lideranças que defendem a parceria mostram orgulhosas os bens de consumo adquiridos com a receita do empreendimento. O administrador regional da FUNAI, Carlos Márcio Vieira, considera a ação como um fato que deve ser avaliado com critério e isenção e que só o tempo mostrará se é positivo ou não. Os antropólogos, é claro, consideram a experiência como um risco ao meio ambiente e a “cultura indígena”.

Galpão ao AC 02 (05.11.2015)

Partimos de manhã cedo e às 09h40, depois de contornar uma série de viveiros destinados à criação semi-intensiva de peixes, chegamos à Aldeia Bacaval onde a dinâmica Cacique Miriam coordenava um intenso mutirão, patrocinado pela FUNAI, que ensinava às mulheres Paresí a fabricar sabão e sabonetes. A origem de Bacaval, como algumas Aldeias Paresí, está intimamente ligada à Missão Jesuíta de Utiariti. Embora a Missão tenha sido desativada, em 1969, na realidade apenas o internato deixou de funcionar, tendo em vista que a Missão Anchieta (MIA) conseguiu autorização da FUNAI para continuar trabalhando com os indígenas nas áreas de saúde e pesquisa.

Ainda em 1969, foi criada a Operação Anchieta (OPAN) com a finalidade de apoiar projetos de agricultura mecanizada. Logo após o fechamento do internato um grupo Paresí fixou-se na região da atual Aldeia Bacaval, com o objetivo de produzir arroz e milho para a Missão. O acordo firmado entre os índios e a MIA estabelecia que a Missão forneceria toda a infra-estrutura e, em contrapartida, ela ficaria com toda a produção e pagaria os trabalhadores nativos com gêneros alimentícios, medicamentos e roupas.

Na proximidade das cachoeiras e antes que o sol decline, não nos livramos, porém, de uma ou outra lambe-olho (Melipona duckei), abelhinha insuportável que se obstina em nos querer penetrar pelos olhos e os ouvidos. (CRULS)

A abelha que os sertanejos denominam lambe-olho persegue o viajante pelo chapadão afora, procurando água nas lágrimas que umedecem a conjuntiva, ou no suor. (ROQUETTE-PINO)

Despedimo-nos das gentis, alegres e empreendedoras mulheres de Bacaval e seguimos nossa viagem. Mais adiante atravessamos a BR-364 e continuamos percorrendo uma retilínea estrada de terra a cavaleiro do Rio Papagaio. Fizemos uma parada para o almoço onde fomos importunados por centenas de insetos. Mais adiante fizemos uma parada e fui com o Sargento Yuri e o Soldado Eder, na Marruá, até o belo Rio Papagaio para verificar se valia a pena acampar na sua margem direita. O local, porém, ficava muito distante de nossa rota e resolvemos acampar no meio da estrada depois de ter sinalizado nossa posição adequadamente com galhos e iluminação. Tínhamos cavalgado 45 km.

Pragas Aladas

O Major Amílcar Botelho de Magalhães no seu livro “Impressões da Comissão Rondon” faz um relato contundente destes pequenos seres que tanto importunaram e importunam os expedicionários de todos os tempos.

Do incômodo que causam estes insetos e da quantidade em que se apresentam, só se pode fazer ideia justa por experiência própria; esforçar-me-ei, todavia, em fornecer elementos para que o leitor que não estiver nesse caso, forme juízo aproximado de ambas as coisas. Os mosquitos que mais castigam naquele sertão, são os piuns, borrachudos, carapanãs e catuquis. Pela manhã, quando a cerração desaparecia, e a luz do sol inundava aqueles belos quadros da natureza, nuvens de piuns envolviam as canoas acompanhando-as na sua marcha e formando auréolas em torno de cada cabeça humana na avidez de picar as partes descobertas da pele, que enchiam assim de pequenos pontos, vermelhos logo que o inseto os “inscrevia”, mais tarde pretos, “talqualmente” essas tintas de dupla cor, tão nossas conhecidas... Ao fim de dois dias de trabalho, a “pontuação” excedia em número aos poros da pele e os expedicionários inexperientes, como eu, eram obrigados a calçar pés de meia nas mãos, para evitar a coceira das picadas. Então a terrível praga atirava-se às orelhas, que era preciso defender com panos, não obstante o calor reinante. (Mais tarde aprendi, à minha custa, a munir-me de luvas de pele de cão por serem as mais resistentes, e de véu de filó, preso às abas do chapéu, atado ao pescoço, e caído sobre as orelhas, mas afastado delas, e aberto à frente do rosto, cuja defesa era feita principalmente pela barba, propositadamente crescida...)

Ao entardecer, quando a temperatura ia baixando sensivelmente, surgiam novas “guardas de honra”, formadas de vários tipos de borrachudos, também “pontuadores” e mais terríveis, não só porque produzem marcas sanguíneas maiores, como porque estas desenvolvem pruridos menos suportáveis ainda. Estes desapareciam ao cair da noite e eram “rendidos” imediatamente pelos carapanãs, ou pernilongos, transmissores da malária (só a fêmea morde, segundo afirmam os especialistas que se têm dedicado ao estudo da malária), os quais nos obrigavam à defesa mecânica do mosquiteiro, armado sobre as redes, pois do contrário seria quase impossível conciliar o sono, tão lancinantes são as ferroadas que nos pregam e de que não nos livramos nem com a espessura somada de duas peças de roupa ‒ a camisa e o casaco, túnica ou blusa. Além de ferir através da roupa, os carapanãs, graças às oitocentas vibrações de asas por minuto, de que falam os cientistas, causam-nos o incômodo nervoso de lhes ouvir o zumbido característico, quando nos passam próximo. O catuqui, que ronda a noite inteira, não existe em toda a parte para nos interromper o sono, felizmente, porque, não há malha fina de filó que lhe vede a passagem, embora a natureza o tenha aparelhado exclusivamente para picar a pele nua.

Das abelhas, a multidão é fantástica, em determinadas zonas. Não tínhamos aí as “frecheiras” ou lambe-olho, terrivelmente incômodas, porque caem às 4 e às 5 dentro dos nossos olhos, donde as tiramos a exalar enjoativo cheiro, e que abundam ao centro de Mato Grosso (serra de Chapada e arredores, Parecis, etc.), mas os enxames das múltiplas variedades e tantas espécies (63 espécies do Brasil constam da publicação feita pela Comissão Rondon: Himenoptera, por Adolfo Ducke, naturalista brasileiro, que também se dedica à botânica), formavam coortes agressivas que nos lambuzavam de mel, além de queimaduras a que estavam sujeitos das graúdas tataíras (Trigona cagafogo) zumbideiras. Eram tantas, em determinadas cachoeiras, que impediam de se trabalhar com o teodolito, a breve espaço transformado em poisadoiro (pousadouro) predileto, com os vidros embaciados por elas, na porfia de descobrirem orifícios por onde penetrar.

Para finalizar esta maçante citação de insetos, lembraremos que existiam ainda ali os maróis, potós, oras, cabas, mutucas, marimbondos, as infernais formigas tocandiras, cuja ferroada causa dor agudíssima, acompanhada logo depois, em certas pessoas, de acessos febris; e as irritantes formigas taxi, ruivas ou pretas, que têm predileção pelas coníferas de que recebem o nome. (MAGALHÃES)

AC 02 à Aldeia Utiariti (06.11.2015)

Fomos em demanda do Salto Utiariti, no Sauêruiná (Rio Papagaio). Mandei alargar a picada do nosso acampamento ao Salto e foi um deslumbramento o panorama da enorme bacia, com seu anfiteatro de luxuriante vegetação. Escondida na beleza do mais lindo Salto vivia enorme força. A água despenhava-se em um esguicho de 80 metros de altura por 90 metros de largura, com uma energia que deveria atingir 80.000 cavalos. O nome Utiariti que os índios dão aos seus Pagés é também o de um pequeno gavião “totem” da tribo. Chegando (em 1909) a Utiariti, vimos uma destas avezinhas, e um dos exploradores ia abatê-la, para a coleção destinada ao Museu Nacional. Deteve-o o índio Tolori – o Matias. – Não o matem! Se o fizerem, nunca mais poderão ser felizes, porque da sua espécie provimos nós, os Paresí. Em homenagem às crenças do meu precioso auxiliar mandei que fosse poupado o Utiariti e dei esse nome ao maravilhoso Salto e ao Rio... e fui feliz...  (VIVEIROS)

Utiariti (Falco Sparverius): conhecido também como gavião-pequeno, falcão-americano, falcão-quiriquiri e gaviãozinho é o menor dos falcões e uma das menores aves de rapina brasileiras. Ele é encontrado em todo o território nacional exceto nas áreas florestais. O utiariti é um animal sagrado para os Paresí que acreditam que aquele que o matar atrairá para si e seus familiares muito sofrimento e morte. (Hiram Reis)

Partimos às 08h20 e chegamos por volta das dezesseis horas à Aldeia Utiariti, depois de cavalgar 40 km. O Cacique Orivaldo não se encontrava na Aldeia, mas os Paresí já tinham sido alertados de nossa chegada e fomos alojados em uma confortável residência de madeira. Montei minha barraca no quarto, lavei minhas roupas e materiais, pendurei-os no varal para secar, tomei um banho e fui, então, conhecer e fotografar o famoso Salto Utiariti.

Expedição Centenária R-R – II Parte ‒ Fase I (Tapirapoã / Kamai)

Expedição Centenária R-R – II Parte ‒ Fase II (Kamai / Utiariti)

Fontes:

CRULS, Gastão Luís. A Amazônia que eu vi‒ Brasil ‒ São Paulo ‒ Companhia Editora Nacional, 1938.

MAGALHÃES, Major Amílcar Botelho de. Impressões da Comissão Rondon‒ Brasil ‒ Rio de Janeiro ‒ Editora Brasiliana, 1921.

ROQUETTE-PINTO, Edgard. Rondônia ‒ Brasil ‒ Rio de Janeiro ‒ Companhia Editora Nacional, 1938

ROOSEVELT, Theodore. Nas Selvas do Brasil‒ Brasil ‒ São Paulo ‒ Livraria Itatiaia Editora Ltda ‒ Editora da Universidade de São Paulo, 1976.

VIVEIROS, Esther de. Rondon Conta Sua Vida‒ Brasil ‒ Rio de Janeiro ‒ Livraria São José, 1958.

(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;

Integrante do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)

Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);

Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);

Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);

Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM - RS);

Sócio Correspondente da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER)

Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);

Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS);

Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).

Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).

E-mail: hiramrsilva@gmail.com;

Blog: desafiandooriomar.blogspot.com.br

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