Sexta-feira, 18 de dezembro de 2015 - 06h41
Hiram Reis e Silva, Bagé, RS, 14 de dezembro de 2015.
Poucos pernilongos mas, por outro lado, piuns de várias espécies eram um tanto excessivos; variavam de tamanho entre o pólvora e a grande mutuca preta. As pequenas abelhas sem ferrão não se amedrontavam e com dificuldade são afastadas quando pousam na mão ou no rosto, mas nunca picam, só fazendo cócegas na pele. Apareciam também abelhas grandes que havendo pousado, não ofendiam se não fossem molestadas; no caso contrário enterravam o ferrão cruel. Os insetos não eram de ordinário inconveniente sério, mas em certas horas se tornavam tão numerosos que eu tinha de escrever de luvas e com a gaze na cabeça. (ROOSEVELT)
Aldeia Jatobá à Fazenda Estrela (29.10.2015)
A partir de Tapirapoã nosso percurso se dirigia para o Norte, subindo e atravessando o planalto deserto do Brasil. Das fraldas desta zona elevada, que é geologicamente muito antiga, defluem para o Norte os tributários do Amazonas, e os do Prata para o Sul, fazendo imensos volteios e desvios sem conta. (VIVEIROS)
Partimos da Aldeia Jatobá, às 08h10, depois de nos despedirmos da Cacique Nair e agradecer-lhe o apoio prestado. O traçado da estrada se estendia altaneiro pelo “divortium aquarum” (divisor de águas). Do alto do lombo de nossas mulas deslumbrávamo-nos com a paisagem magnífica que nos permitia avistar, ao longe, as nascentes que alimentam o Rio-mar de um lado e do outro as que fluíam para a Bacia do Prata. Esquecêramos de entrar em um acesso arenoso à direita e um gentil motociclista Paresí oportunamente orientou-nos a pegar uma estreita trilha que nos conduziria ao caminho correto. Embora grande parte das trilhas e estradas sejam argilosas e muito escorregadias após as chuvas encontramos desta feita um trecho arenoso.
[...] dia após dia trotamos para a frente transpondo chapadas intermináveis de campos e cerrado ralo, com arbustos quase sempre pouco mais altos do que um cavaleiro. Alguns tinham flores amarelas, brancas, róseas e cor de laranja; as mais lindas eram as glórias-matinais. (ROOSEVELT)
A aridez do Cerrado impressionava-nos, os arbustos retorcidos com seus troncos carbonizados pelas queimadas constantes eram vítimas silenciosas não só de uma natureza nem sempre benfazeja, mas principalmente pela ação secular e criminosa e daninha por parte dos aborígenes. A falta de gramíneas e água prenunciava sérias dificuldades para nossos espartanos muares. A vegetação calcinada, porém, apresentava aqui e ali pequenas e delicadas flores de todos os matizes que momentaneamente quebravam a monotonia da paisagem. Por volta das onze horas apeei, para descansar as pernas, conduzindo a mula Bolita pelo cabresto. No limite da Área Indígena, avistei uma boa poça d’água, 300 m fora de nossa rota, alertei meus parceiros e conduzi a Bolita até o local. Qualquer água ou alimento ao longo do percurso não devia nem podia ser menosprezado e tinha de ser devidamente aproveitado. Os animais é que estavam sendo exigidos fisicamente nessa etapa e, por isso mesmo, necessitavam de especial atenção.
Logo à frente, fizemos a parada do almoço no acampamento provisório montado pelo Sargento Yuri e o Soldado Eder. Desencilhamos os animais e os soltamos na plantação de uma grande fazenda vizinha à Área Indígena.
Chegamos à Fazenda Estrela por volta das 17h30. O arrendatário paranaense gentilmente conseguiu um local para montarmos as barracas e carregarmos os equipamentos eletrônicos.
Processo de Savanização Milenar
Alguns desavisados acham que o cerrado ralo e abrasado dos Paresí sempre teve estas características, na verdade a ação antrópica, mais do que a da própria natureza através dos raios, alterou significativamente as zonas da mata de transição e do cerrado para o triste cenário que observamos hoje.
Os índios sempre souberam como lidar com a terra. São eles que nos ajudam a manter vivas nossas matas e contribuem para a preservação de nossos mananciais. (Mércio Pereira Gomes)
O ex-Presidente da FUNAI Mércio Pereira Gomes e outros tantos antropólogos e ambientalistas atrelados a convicções ideológicas sem nenhuma fundamentação científica, mostram desconhecer a cultura que tanto defendem e as leis que regem a sobrevivência dos povos nativos. O Professor Evaristo Eduardo de Miranda afirma que o processo de savanização não só teve origem com os povos primitivos, mas como continua até os dias de hoje. Embora Miranda faça essa observação exclusivamente em relação a áreas florestais, é lógico que ela ocorreu e continua ocorrendo em outros biomas.
O uso sistemático do fogo pelos humanos, principalmente como técnica de caça, favoreceu a extensão ou a manutenção de ecossistemas abertos como as savanas ou cerrados, em detrimento das áreas florestais, mesmo em condições climáticas desfavoráveis. [...] Condicionamentos locais de clima e solo podem acelerar ou limitar esse processo, mas o caráter nômade de vários grupos de caçadores-coletores espalhou esse fenômeno em diversos locais da região amazônica. Esse processo de savanização, de ampliação de áreas de cerrados em detrimento das florestas, ainda segue seu curso nos dias de hoje, em vários locais da Amazônia, promovido por culturas ameríndias bem posteriores aos primeiros caçadores-coletores. [...]
A regressão das florestas e a ampliação dos cerrados devido ao uso do fogo podem ser observadas nitidamente em sequências de imagens de satélite, de vários anos, tiradas de áreas indígenas no Norte do Pará, na região dos Tiriós, próxima da fronteira com o Suriname. Ali, os indígenas promoveram um crescimento anual da área dos cerrados em detrimento da floresta, pelo uso generalizado do fogo em grande escala. Eles alteram a dinâmica vegetal com a promoção de gigantescos incêndios anuais, os maiores de todo o Brasil. Eles propagam-se ao sabor dos ventos alísios do Hemisfério Norte, na direção Nordeste-Sudoeste. (MIRANDA)
Para verificar a destruição promovida pelos Tiriós basta se observar no “Google Earth” uma região totalmente desmatada de 150 por 80 quilômetros aproximadamente na fronteira do Suriname com o Brasil (Norte do Pará). As observações de Miranda são reforçadas pelos relatos de Oscar Canstatt, em 1871 e de Roquette-Pinto, em 1912:
Seu modo de caçar os animais em fuga é bárbaro e só possível onde não há nenhuma lei protetora das florestas. No tempo seco, sobretudo, quando o Sol tropical torra com seus raios abrasadores os campos e o mato baixo, ateiam-lhe fogo, e emboscam a caça em lugar onde o elemento destruidor não os pode atingir. Aí é fácil abater a caça que, em desabalada fuga, corre para a única vereda salvadora. (CANSTATT)
Por meio do fogo costumam também matar algumas espécies: ateiam labaredas no cerrado, de maneira a rodear certa área; quando a caça foge às chamas, atacam-na. [...] O fogo das queimadas que o raio acende, ou o índio, ou o sertanejo, lambe o karêke e o sapé, requeima o murici e a mangabeira; e eles custam a brotar. Mas o pau-santo, mal cessa o fogo, ainda todo negro, com o tronco rachado pelo calor, cobre-se de pontos alvos, abre em flor, qual um retalho de noite que se matiza de estrelas. (ROQUETTE-PINTO)
Leandro Narloch apresenta, igualmente, uma série de evidências que desfaz a imagem preservacionista do indígena brasileiro e mostra a preocupação dos colonizadores com a manutenção e a exploração sustentável das florestas.
Um grupo caingangue residente no Paraná, que havia recebido ferramentas de aço apenas no século XX, lembrava-se de que não mais tinha de escalar árvores, outrora uma atividade muito frequente, para apanhar larvas e mel. Muitos dos que caíam das árvores morriam ‒ agora eles simplesmente derrubavam as árvores. (Warren Dean)
O mito do índio como homem puro e em harmonia com a natureza já caiu há muito tempo, mas é incrível como ele sempre volta. [...] As tribos que habitavam a região da mata atlântica botavam o mato abaixo com facilidade, usando uma ferramenta muito eficaz, o fogo. [...]
Os portugueses criaram leis ambientais para o território brasileiro já no século XVI. [...] No Brasil, essa lei protegeu centenas de espécies nativas. Em 1605, o regimento do Pau-Brasil estabeleceu punições para os madeireiros que derrubassem mais árvores do que o previsto na licença. [...] “Essa legislação garantiu a manutenção e a exploração sustentável das florestas de Pau-Brasil até 1875, quando entrou no mercado a anilina”, escreveu o biólogo Evaristo Eduardo de Miranda. “Ao contrário do que muitos pensam e propagam, a exploração racional do Pau-Brasil manteve boa parte da mata atlântica até o final do século XIX e não foi a causa do seu desmatamento, fato bem posterior”. (NARLOCH)
Fazenda Estrela à Aldeia Kamai (30.10.2015)
Kêtêrôkô é nome Paresí de Aldeia Queimada. Ao lado das casas da Comissão Rondon, os índios levantaram sua grande palhoça; lá trabalham as mulheres e vão dormir os homens que prestam algum serviço à linha telegráfica.
(ROQUETTE-PINTO)
Partimos cedo da Fazenda Estrela e por volta das 08h00 chegamos à Aldeia Queimada onde acompanhados do Cacique Nelson visitamos o sítio original das casas da Comissão Rondon. Depois da visita fizemos uma preleção sobre os objetivos da Expedição para toda a Aldeia e seguimos viagem.
Passamos pela Aldeia Rio Verde comandada pelo Cacique Carlito e fizemos uma parada na Aldeia Kotitiko capitaneada pelo Cacique Juvenal que nos aguardava devidamente paramentado. Os jovens Paresí filmavam entusiasmados nossa chegada com seus celulares e “tablets” de última geração. O Cacique Juvenal fez sua apresentação pessoal e falou da necessidade de regularizar o uso de armas de fogo pelos Paresí argumentando que essa autorização fora dada pelo Coronel Rondon, há cem anos atrás, durante o lançamento das Linhas Telegráficas. Esse argumento foi replicado em todas as Aldeias pelas quais passamos.
De Kotitiko fomos para a Aldeia Kamai comandada pelo Cacique Estevão. Entrevistamos, depois de um revigorante banho, o Cacique Geral João Arrezomae (João Garimpeiro). Após a entrevista o Cacique fez uma prece emocionante, na língua Paresí-Haliti, desejando sucesso na nossa empreitada. Fomos acomodados numa espaçosa e muito asseada oca com piso de cimento onde passamos a melhor noite desde que iniciamos a Expedição.
Aldeia Kamai ao Acampamento (AC 01) no Cerrado (31.10.2015)
O dia seguiu a rotina habitual até estacionarmos no Acampamento selecionado pela equipe de apoio – Sargento Yuri e Soldado Eder. Os insetos mencionados por Theodore Roosevelt apareceram com toda pujança e só encontrávamos sossego no interior das barracas. Tentei, diversas vezes, sem sucesso, contato com familiares e amigos através do celular. Fomos dormir cedo, não havia nenhuma opção de lazer no cerrado estorricado.
AC 01 – Fuga das Mulas e Pane da VTR Marruá (01.11.2015)
E era preciso deixá-los inteiramente à solta para poderem vaguear à cata de sua parca alimentação, necessitando do maior tempo possível para descanso e pasto. Ainda em tais condições muitos se enfraquecem quando não é possível levar milho, como sucedia conosco. Não conseguíamos encontrá-los antes de clarear o dia, levando horas para reuni-los, o que nos obrigava a viajar durante o período mais quente e mais fatigante do dia. (ROOSEVELT)
Nesta manhã as mulas não foram encontradas. Como era de se esperar alguns dos animais esfaimados e sedentos sumiram na estrada. Como se este desastre já não fosse suficiente a Viatura Marruá empenhada na busca dos mesmos perdeu sua roda dianteira esquerda, justamente o rodado que fora objeto de manutenção no 2° B Fron. Perdemos o dia todo procurando os fujões até recebermos notícia de que os mesmos tinham sido encontrados e presos pelo filho do Cacique Marinho da Aldeia Zanakwa. Conseguimos contatar o Comando do 2° B Fron que nos prometeu providências para o dia seguinte.
AC 01 à Aldeia Zanakwa (02.11.2015)
Zaiakúti – Escudo de caçada; é formado por um arcabouço de varas flexíveis mantidas por meio de tiras de urubamba ou mesmo de arame. Tem cerca de um metro de altura e 0,40 de largura. Se a vegetação não auxiliasse o disfarce, seria fraco protetor, dispondo de área tão escassa. (ROQUETTE-PINTO)
No dia seguinte, enquanto meus parceiros deslocavam-se para a Aldeia Zanakwa fui com o filho do Cacique Marinho até a Aldeia Rio Verde tentar, sem sucesso, contato com o 2° B Fron. À tarde fomos tomar um banho revigorante nas límpidas águas do Rio Verde seguidos por algumas simpáticas crianças da Aldeia. O Sargento Yuri tinha permanecido na estrada com a viatura Marruá e no final da tarde conduziu a nova viatura até a Aldeia. A ação rápida e meritória do Cmt do 2° B Fron trouxe tranquilidade à equipe preocupada com a possibilidade de mais um dia perdido. O Cacique Marinho mostrou-nos uma oca em construção e encenou o uso do escudo de caçada (Zaiakúti).
Expedição Centenária R-R – II Parte ‒ Fase I (Tapirapoã / Kamai)
Expedição Centenária R-R – II Parte ‒ Fase II (Kamai / Utiariti)
Fontes:
CANSTATT, Oscar. Brasil: Terra e Gente (1871)‒ Brasil ‒ Brasília ‒ Senado Federal, 2002.
MIRANDA, Evaristo Eduardo de. Quando o Amazonas Corria para o Pacífico‒ Brasil ‒ Rio de Janeiro ‒ Editora Vozes, 2007.
NARLOCH, Leandro. Guia Politicamente Incorreto da História do Brasil‒ Brasil ‒ São Paulo ‒ Editora Leya, 2009.
ROOSEVELT, Theodore. Nas Selvas do Brasil‒ Brasil ‒ São Paulo ‒ Livraria Itatiaia Editora Ltda ‒ Editora da Universidade de São Paulo, 1976.
ROQUETTE-PINTO, Edgard. Rondônia‒ Brasil ‒ Rio de Janeiro ‒ Companhia Editora Nacional, 1938
VIVEIROS, Esther de. Rondon Conta Sua Vida‒ Brasil ‒ Rio de Janeiro ‒ Livraria São José, 1958.
(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;
Integrante do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);
Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM - RS);
Sócio Correspondente da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER)
Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS);
Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
E-mail: hiramrsilva@gmail.com;
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