Sábado, 30 de maio de 2009 - 08h24
Falar de Rondon é abusar dos adjetivos, é falar no superlativo. Encontramos na obra do Major Amílcar Botelho de Magalhães Júnior relatos dos bravos que compunham a Comissão Rondon. Apresentamos ao leitor brasileiro a vivência contagiante de brasilidade de um ícone tão magnífico que a própria história resolveu materializar sua grandeza emprestando seu nome a um estado brasileiro - Rondônia. Este artigo mostra, através de pequenos episódios, sua conduta profissional irretocável que marcou definitivamente a memória do, seu companheiro de viagem, presidente Roosevelt.
- A Comissão
“O Governo Brasileiro, atendendo aos desejos manifestados pelo notável e saudoso estadista da América do Norte, organizou uma comissão brasileira para o acompanhar na arrojada travessia do sertão de nossa Pátria e escolheu para chefiar essa comissão ‘the right man to the right place’ - o então Coronel Rondon. À larga visão de um jovem estadista - o Sr. Lauro Mül!er - ministro das Relações Exteriores nessa época, devem-se os extraordinários benefícios que advieram para o nosso País, com a acolhida de tal iniciativa, não só pelo reconhecimento geográfico de uma região até aí desconhecida e pelos estudos de História Natural realizados na zona percorrida, como também pelo valor da propaganda do Brasil no estrangeiro, especialmente na América do Norte, através do livro que Roosevelt publicou sob o título ‘Through the Brasilian Wilderness’, livro que ele foi escrevendo no decorrer da própria expedição.
(...) Logo que Lauro Müller transmitiu o convite a Rondon, este acedeu imediatamente ao appelo do Governo, ponderando em todo caso que estaria pronto ao desempenho da comissão certo de que ‘não se tratava de um mero passeio de sport, mais ou menos perigoso, mas que o Governo ligaria aos intuitos de uma travessia pelo sertão, objetivos científicos de utilidade para nossa Pátria’. Isto indica o ponto de vista elevado em que Rondon se colocava, ao mesmo tempo em que evidencia estar ele a par do que se passava no mundo, não obstante viver na floresta anos seguidos! (O Escritório Central tem sempre a incumbência de lhe transmitir por telegrama o resumo dos principais acontecimentos dentro e fora do País, telegramas a que alguns telegrafistas chamavam - o jornal de Rondon”. (Magalhães)
- A Expedição Roosevelt-Rondon
“Ficou assentado que a expedição Roosevelt estudaria a fauna daquela região e dela forneceria exemplares ao American Museum of Natural History de New York. particularmente interessado em coleções provindas das regiões divisoras das bacias do Amazonas e do Paraguai. As bagagens da expedição foram, assim, rotuladas com os dizeres: ‘Colonel Roosevelt's South American Expedition for the American Museum of Natural History’.
Completariam a expedição dois naturalistas, Cherrie e Leo E. Miller, veteranos das florestas tropicais; o secretário de Roosevelt, Frank Hasper; Jacob Sigg - que acumularia as funções de cozinheiro, enfermeiro e assistente de Father Zahm; Anthony Fiala, antigo explorador dos pólos. Seria este chefe do equipamento que deveria conter, especialmente, tudo o que pudesse defender os expedicionários de insetos e répteis, além de 90 latas de alimento concentrado, cada uma com ração para cinco homens, em um dia, reações compostas e acondicionadas pelo próprio Fiala. O filho do Sr. Roosevelt, o Sr. Kermit, reunir-se-ia à expedição, no Sul do Brasil, onde se achava havia alguns meses”. (Viveiros)
- A crueldade da vida dos trópicos
“Entrávamos agora no teatro dos trabalhos por nós iniciados em 1907, tendo-se já descoberto a maior parte desse sertão - ligado por meio das linhas telegráficas, a Santo Antônio do Madeira e a Cuiabá, portanto ao Rio de Janeiro - sertão já estudado e cartografado. A Comissão criada pelo Presidente Afonso Pena abrira à civilização, havia cinco anos, esse sertão que desde 1890 vinha eu percorrendo e estudando à custa de sofrimentos incríveis, suportados com a resignação de quem se consagrou a um ideal, vendo morrer companheiros, amigos devotados, de polinevrite, febres e disenteria, flechados pelos Índios, devorados pelas piranhas, exaustos de cansaço, eu próprio quase perdendo a vida em diversas ocasiões, inclusive a percorrer mais de 3.000 quilômetros, para atingir o Madeira, com 40° de febre.
Diria o Sr. Roosevelt, mais tarde, depois de atravessar a região: ‘é incrível a quantidade de insetos - que mordem, picam, devoram, depositam bernes, causam sofrimentos atrozes; vai além do que se possa imaginar. O patético mito da benfazeja natureza não pode ser aplicado à crueldade da vida dos trópicos”. (Viveiros)
- O head-ball
“Notava ele, com vivo interesse, os objetos de uso dos índios, os tecidos feitos pelas mulheres, os costumes - as mulheres sempre ativas, ocupando-se dos filhos com infinita paciência, carregando-os em faixas largas a tiracolo, inseparáveis de seus fusos que faziam rodopiar desde que tivessem as duas mãos livres, ainda que fosse por um instante, uma para suspender o fio, a outra para fazer girar o irrequieto aparelho.
Teve o Sr. Roosevelt ocasião de assistir a interessante esporte dos parecis - a que chamou head-ball (izigunati, ou matianá-ariti). Uma bola de borracha leve, por eles mesmos fabricada, era jogada com a cabeça, em destros movimentos de pescoço, sem que fosse tocada com mãos ou pés. Era difícil decidir o que mais admirar - se a destreza e força das cabeçadas, se a habilidade com que a bola era aparada. Referindo-se a esse esporte, em seu livro ‘Through the Brazilian Wilderness’, confirmou o Sr. Roosevelt a opinião que expendi em 1911 de que era instituição autóctone sobre a qual nunca lera nem ouvira contar nada que permitisse supor ser praticada por qualquer outro povo do mundo”. (Viveiros)
- O assassinato do Sargento Paixão
“Além da grave afecção palustre que acometeu RooseveIt, cuja vida esteve em sério perigo; além da redução que sofreram as rações normais dos expedicionários; além do trágico naufrágio de uma canoa, do qual salvou-se milagrosamente o destemido Kermit Roosevelt e de que resultou o desaparecimento de um dos canoeiros da expedição; um trágico acontecimento teve por teatro às margens do rio Roosevelt. Roosevelt narra-o com escrupulosa exatidão, transcrevendo em seu livro citado o documento que os expedicionários todos firmaram em testemunho da verdade. Vamos referi-lo sumariamente, para depois comentar a diversidade dos pontos de vista norte-americano e brasileiro na maneira de encarar os fatos. Na travessia de uma serra que tomou o nome do morto, foi assassinado traiçoeiramente por um dos soldados canoeiros o Sargento Paixão, belo tipo de negro, cujas tradições honrosas ao serviço da Comissão Rondon e da pacificação dos silvícolas, angariaram-lhe sempre a simpatia de seu chefe.
Passava-se a carga de montante para jusante da cachoeira e o Sargento Paixão dirigia o pessoal. Cumpridor de seus deveres e das ordens que recebia e que fazia cumprir sem tergiversações, impedira que o soldado subtraísse alimento em conservas. O soldado que era um tipo covarde e perverso, iludindo a vigilância do sargento, apossou-se de uma carabina Winchester carregada, ocultando-se atrás de uma grande árvore no pique do varadouro. Aí aguardou a passagem do sargento e desfechou-lhe um tiro de bala á queima-roupa, matando-o quase instantaneamente. Ouvindo o estampido, correram os expedicionários a verificar do que se tratava e já foram encontrar o sargento nos últimos arquejos da morte. Seguindo a pista do criminoso, floresta dentro, encontrou-se caída ao solo a carabina de que se servira, ao pé de um tronco, onde uma escoriação da casca parecia revelar que o assassino abalara em uma corrida louca, como que perseguido e chicoteado pelo remorso atroz, esbarrando ali com a arma, que lhe escapara das mãos... No desespero da fuga, prosseguira em carreira desordenada, para não perder tempo em apanhar a arma, como se sentisse já quase a estrangula-lo a mão da Justiça!... Não foi possível alcançar o criminoso e voltaram os expedicionários ao acampamento, sob a triste impressão do lamentável acontecimento”. (Magalhães)
- O choque de doutrinas
“Em face do assassinato apresentaram-se então em campos opostos a teoria dos americanos e a dos brasileiros. Roosevelt, interprete da primeira, entendia que o assassino devia ser fuzilado, sem mais formalidades, por qualquer dos expedicionários que lhe pusesse os olhos em cima. E argumentava que, estando os expedicionários de ração reduzida, não era lícito dividirem o que restava com um homicida; que este se mostrara indigno de qualquer sacrifício dos companheiros de exploração; que recebe-lo seria aumentar uma boca a comer, sem que se pudesse ter mais confiança nos dois braços para o trabalho. Os brasileiros, porém, entendiam que se deveria acolher o malvado, alimenta-lo e exigir dele o trabalho compensador do alimento a que tinha direito, embora como prisioneiro, à espera do contato com o meio civilizado, para os fins do processo legal a que deveria oportunamente responder.
No dia seguinte ao do assassinato, a expedição perseguiu a descida do rio e quis a fatalidade que o assassino, arrependido, no desespero de quem se sente isolado em pleno deserto, condenado de improviso a representar o papel do homem primitivo da Terra, surgisse a pedir socorro justamente quando passava a canoa de Roosevelt! O 1° ímpeto de Roosevelt foi, como era natural, levar a sua arma ao rosto e apontar... Certo, porem, no seu espírito refletido passou a imagem da teoria brasileira, como um anjo protetor e benigno... e ele retirou a arma, franziu o sobrolho e informou ao médico, que o acompanhava na mesma canoa, não desejar que a embarcação atracasse para receber o assassino. Os seus desejos foram satisfeitos e lá ficou a implorar perdão e piedade, debruçado sobre um galho à beira d’água, a figura sem dúvida asquerosa, mas infeliz, daquele pobre bandido... O desgraçado acompanhou com o olhar a canoa até que esta desapareceu na primeira curva do rio, como quem vê extinguir-se a sua ultima esperança!... O seu olhar desvairado compreendeu então que o abandonavam definitivamente aos azares de uma sorte cruel. Ele merecia incontestavelmente um tremendo castigo, pela hediondez de seu crime, mas justo é refletir que só uma grande dureza de sentimentos aprovaria semelhante solução, nada civilizada. Quando a expedição acampou, a ocorrência foi comunicada ao chefe da Comissão Brasileira. Discutido o caso em presença de todos os expedicionários, Rondon fez sentir a Roosevelt o que a propósito determinava a lei brasileira e que em face da nossa legislação o seu dever era aprisionar o assassino e conduzi-lo consigo: aos juízes competiria sentenciar-lhe o castigo. Imediatamente Roosevelt responde-lhe: ‘Pois bem, Sr. Coronel Rondon, se a lei de seu país é esta, eu estarei pronto a cumpri-la!’ Nenhuma prova mais cabal poderia Roosevelt ter dado da superioridade de seu espírito!
Rondon determinou então a permanência de um dia no novo acampamento e organizou uma patrulha que subiu o rio em busca do homicida, e que o devia prender, sem maltratar. Essa patrulha, porém, subiu o rio até o ponto em que fora visto o assassino, foi ainda muito além, rebuscou a mata em todas as direções, deu tiros de sinal, mas não conseguiu deparar com o criminoso. Este sem dúvida temera apresentar-se, supondo que o quisessem matar! À noite recolheu-se a patrulha e ao dia seguinte prosseguiu a expedição águas abaixo, sem que nunca mais se tivesse notícias do assassino. Teria sido comido pelas onças? Teria encontrado índios que o acolheram? Teria morrido de fome? Ninguém nunca o saberá talvez; a sua vida ficou envolta no mais profundo mistério e faz-me de vez em quando pensar em todas essas peripécias, arrastando-me a imaginação a uma infinidade de hipóteses”. (Magalhães)
- Uma Valquíria Brasileira
“Curioso episódio também foi observado em relação a mulher de um dos soldados regionais do destacamento que acompanhou Roosevelt, desde Tapirapoan (rio Sepetuba) ás margens do rio da Dúvida. Grávida já de nove meses, essa mulher acompanhou a pé todas as marchas da expedição, por terra, o que era motivo para admiração geral. Aconselhada em Tapirapoan a alojar-se ali para seguir depois de dar a luz, recusou-se peremptoriamente e declarou que estava acostumada a andar no sertão nesse estado de gravidez, sem se cansar. A convicção de suas afirmativas, levou o comandante do destacamento à tolerância de a deixar seguir, embora contra o voto do médico. Pois bem, essa mulher extraordinária, não só marchou diariamente 4 a 5 léguas a pé, como também só interrompeu a marcha um dia (24 horas) para dar a luz. Ao dia seguinte do parto prosseguia a marcha a pé carregando o filho ao colo”. (Magalhães)
- Uma Valquíria Brasileira
“Às 11 horas, o Dunstan, onde viajava a Comissão Americana. levantava âncora. rumo ao oceano... ainda o acompanhamos por algum tempo, a bordo do aviso Cidade de Manaus. Afinal, por entre as névoas da saudade, que já envolvia nossos corações, lançamos, ao espaço, as últimas despedidas, erguendo vivas ao Chefe da Expedição Americana e à grande República que tinha a glória de o ter por filho.
Às 23 horas voltava eu, no Cidade de Manaus, à Capital do Amazonas de onde segui pelo Madeira acima, e, depois, pelo Jamari, de onde demandaria a estação de Barão de Melgaço, a fim de continuar os meus trabalhos de construção da Linha Telegráfica de Cuiabá ao Madeira.
Escreveu o Sr. Roosevelt o volumoso livro ‘Through the Brazilian Wilderness’, descrição de sua viagem. Foi esse livro traduzido, tendo eu pedido prévia autorização à Viúva. Essa delicadeza muito a sensibilizou e a autorização veio assinada, não só por ela, como por todos os filhos e pelo editor.
Quando o Sr. Roosevelt foi à Europa, para fazer conferências sobre sua excursão, fui eu também convidado. Nessa ocasião, disse um português, a propósito do rio da Dúvida, que os portugueses já lhe conheciam a barra, ao que retrucou o Sr. Roosevelt:
- Só a barra era conhecida, isto é, alguns poucos quilômetros dos seus 1500 quilômetros de curso”. (Viveiros)
Fonte:
MAGALHÃES, Major Amílcar Botelho de – Impressões da Comissão Rondon – Brasil, Rio de Janeiro,1921 – Editora Brasiliana.
VIVEIROS, Esther de – Rondon conta sua vida - Brasil, Rio de Janeiro,1958 – Livraria São José.
Coronel de Engenharia Hiram Reis e Silva
Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA)
Acadêmico da Academia de História Militar Terrestre do Brasil (AHIMTB)
Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS)Site: http://www.amazoniaenossaselva.com.br
E-mail: hiramrs@terra.com.br
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