Quarta-feira, 27 de maio de 2020 - 08h33
Bagé, 27.05.2020
Vejamos, agora, alguns
quadros desta crudelíssima Campanha pela lavra de um ilustre militar e historiador
que participou ativamente de toda Guerra do Paraguai.
O General honorário do
Exército Brasileiro, voluntário da Pátria, Cavaleiro das Ordens Militares de
Cristo e da Rosa, foi condecorado com as Medalhas de Bronze e Passador de Prata
n° 5 do Mérito e Bravura Militares, de Prata da República Argentina, de Ferro com
Sol de Ouro do Estado Oriental do Uruguai ‒ por relevantes serviços militares
prestados na Campanha da Tríplice aliança. O General Pimentel como costumava
dizer o General Manuel Deodoro da Fonseca,
"fizera a guerra do Paraguai de fio a pavio". Natural de Rio
Formoso, Estado de Pernambuco, personificava as qualidades mais nobres e
audazes do Soldado Brasileiro. Diferente de outros autores que escreveram suas
obras sobre a Guerra do Paraguai no conforto e tranquilidade de seus gabinetes
ou consultando livros nas bibliotecas ele a vivenciou, percorrendo o campo de
batalha e combatendo o inimigo.
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Guerra do Paraguai – Episódios Militares
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General Joaquim Silveira de Azevedo
Pimentel
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Tipografia à Vapor A. dos Santos, 1887
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XIX – A Nudez
A 31 de maio de 1869,
partiu no Piraiú, com uma Força de Cavalaria e quatro bocas de fogo, o
Brigadeiro João Manoel Menna Barreto [de saudosa e gloriosa memória], para o
Sudoeste da República, por Ibitimi até Vila Rica, a fim de ir libertar naquela
direção militares de famílias paraguaias, que pediam com instância o socorro
dos brasileiros que as livrasse das garras do ditador, cuja perversidade se
tornara crescentemente assombrosa. Seguiu essa coluna, destruindo em sua
passagem toda a resistência que o inimigo tentou opor-lhe, incendiou a fábrica
de pólvora do Ibicuri e, chegando à Vila Rica, daí voltou conduzindo e
protegendo as famílias que não imploraram debalde nosso auxílio e apoio.
Deixemos falar o Diário do Exército [página 26], do Comando-Chefe do Sr. Conde
d’Eu:
Dia 10 [junho de 1869].
[...] o General João
Manoel anunciava a sua chegada a Paraguari às seis horas da tarde daquele dia,
depois de ter-se visto obrigado a lutar com os paraguaios, cujo esforço
principal fora isolar a coluna da frente da de sua retaguarda, que trazia
marcha muito demorada em consequência de grande acompanhamento de mulheres e
crianças [...]
Dia 11 [junho de 1869].
Sua Alteza foi pela
manhã até Paraguari, a três e meia léguas de distância, e encontrou a Força do
General João Manoel, que saía daquele povoado precedida de uma coluna de
velhos, mulheres e crianças, em número de mais de 4.000 pessoas, cujo aspecto
indicava os últimos limites da desgraça e dos padecimentos. Às 3 horas da
tarde, essa gente magra, nua, raquítica, curvada ao peso de longa tirania,
acabrunhada pela fome de muitos meses, entrava no acampamento de Piraiú.
Todos mostravam intensa
alegria por ver enfim terminado um tempo de sofrimentos inaturáveis, que já
haviam feito sucumbir muitos milhares dentre eles, tempo marcado pela nudez que
os fazia cobrir-se de tiras de couro e pela fome que os impelia a comer frutas
azedas, porque o despotismo do Chefe da Nação proibia-lhes a matança do gado e
até a colheita de laranjas doces.
O que sobremodo
compungiu o caráter brasileiro foi a nudez total, absoluta, das desgraçadas
mulheres. Dentre elas destacavam-se donzelas, senhoras da melhor e mais
aristocrática sociedade do Paraguai, formas de uma pureza e correção ideais,
que, ao cruzarem o olhar com os nossos oficiais e soldados, subia-lhes ao rosto
o rubor do pejo de tal modo, que prontamente acudiram-nos aos olhos lágrimas de
sincera comiseração. Ao desfilar o cortejo da nudez feminina, acendeu-se no
coração de todos uma ideia idêntica e gerou-se em todos os Pensamentos uma
palavra só:
‒ Camisas!
Rápidos nas boas obras,
como na compreensão de seus deveres militares, soldados e oficiais mergulharam
prontamente em suas barracas. Aqueles, das mochilas, e estes das macas,
arrancavam, pressurosos, camisas e lençóis. Nesse instante o espetáculo da
nudez desapareceu da vista dos libertadores. Atiravam-se camisas por cima das
senhoras e donzelas, e transformou-se a procissão numa espécie de irmandade de
capas brancas, respeitável pelo número de confrades. Coisa admirável! Ninguém
riu daquele grotesco cortejo! As senhoras, que agora viam-se protegidas pelo
natural pudor, até aquele momento expostos às vistas gerais, ergueram
gentilmente suas cabeças agradecidas e murmuraram reconhecidas:
‒ Deus lhes pague, generosos “inimigos”!
Nesse dia a alegria no
acampamento foi completa. As mochilas, porém, dos soldados e as macas dos oficiais
só ficaram possuindo meias e lenços; tudo o mais fora distribuído.
‒ Eis o que se chama, dizia um Cadete muito
feio a um colega ‒ despir um santo para cobrir outro.
‒ Enganas-te, amigo.
‒ Devias dizer: despir um diabo para cobrir
um anjo!
Referia-se o Cadete ao
fato de ter tido aquele a ventura de pôr sobre os ombros de uma beleza
paraguaia sua alva camisa de algodão. (PIMENTEL)
XXII – O Requinte da Audácia
(Audaces fortuna
juvat [1])
Um dos episódios mais
belos e talvez mais românticos que antes parece lenda medieval, acha-se ao
abrir o Diário do Exército do tempo do comando do Sr. Conde d’Eu. É para
lamentar que esse magnífico repositório de esplendorosos feitos tivesse uma
edição resumida, e que bem pouca gente possua o conhecimento de tão útil
publicação. A maneira singela com que ali se referem os fatos é sua melhor
recomendação.
Portanto, limitemo-nos
a copiar “ipsis verbis” ([2])
tudo quanto nos vai dar um dos mais belos fatos da grande Campanha que nos tem
fornecido matéria para estes artigos, e que no futuro há de fazer pasmar a quem
dela tiver conhecimento. Aí vai a transcrição:
Dia 22 [dezembro de
1869].
O Tenente-Coronel
Antonio José de Moura partiu com destino ao passo Espadim no rio Iguatemi, à
frente de 50 praças de cavalaria bem montadas. O ardente desejo de salvar sua
família o leva a essa arriscada empresa, para a qual conseguiu finalmente
licença do Sr. Conde d’Eu.
Interrompamos, por um
pouco, a transcrição. O Tenente-Coronel Moura tinha no Espadim, lugar destinado
aos desterrados de López que haviam de ser trucidados depois, uma irmã com duas
filhas. Essa senhora, natural do Rio Grande do Sul, casara-se com um português
morador em Vila Rica, no tempo de López pai; e depois da morte do marido
continuou a permanecer naquela vila, até que por ordem do ditador foi arrancada
de sua habitação e, depois de longas marchas, atirada no degredo de Ilhu, e
ainda posteriormente no de Iguatemi. Ao saber o distinto oficial que sua irmã e
sobrinhas estavam ameaçadas de morte certa, pediu licença, implorou ao
General-Chefe que o deixasse ir em socorro da família.
O Conde d’Eu negou-a
diante do perigo da empresa, mas Moura insistiu com tenacidade. Aquela energia,
e força de vontade, aquele desejo veemente de salvar a família, acabou por
vencer. O General-Chefe tinha coração e também gozava da ventura de ser chefe
de família Cedeu. Moura escolheu 50 amigos e partiu. Continuemos a transcrição:
Dia 1 [Janeiro de 1870].
O Tenente-Coronel
Antonio José de Moura deu uma circunstanciada e curiosa parte, datada de 29 do
mês próximo passado, de sua memorável expedição ao rio Iguatemi a fim de ir
salvar as famílias destinadas a perecer de fome no acampamento do passo
Espadim.
No dia 22 de dezembro
último, saíra ele, às 10 horas da manhã, do passo do rio Curuguati, junto ao
qual estava acampado. Levava 50 homens de cavalaria bem montados e melhor
dispostos ainda. Na madrugada de 23, chegou ao rio Jejuí-Guaçu, cuja
transposição lhe tomou bastante tempo por ser a corrente profunda e de grande
força d’água, entretanto, nesse mesmo dia alcançou a Vila de Iguatemi, onde
deixou dez homens de observarão com um inferior e pôde seguir além. Depois de
pequeno alto de descanso, caminhou toda a noite e, às 8½ horas do dia 24,
chegou à base da grande serra de Maracaju, cuja subida era preciso vencer para
ganhar o chapadão em que correm o Escopil e o Iguatemi, confluentes do Paraná.
Essa subida era abrupta e além disso pejada com grandes pedras e grossos
madeiros atravessados. Com seis homens atirou-se Moura à obra e, ora cortando
mata entrançada, ora esgueirando-se por entre galhos caídos, atingiu, com uma
légua de penosa ascensão, o planalto.
Aí existira uma guarda.
Contudo, o rancho achava-se abandonado, ou melhor, ocupado, não mais por soldados,
mas sim por mulheres que fugidas de Espadim, haviam parado, baldas de forças,
uma delas já moribunda. Duas eram espanholas, as outras paraguaias. Estavam de
viagem havia 6 dias, tendo 4 dias antes sido encontradas por espiões partidos
de Panadero, os quais aceitaram a desculpa de que vinham buscar laranjas azedas
([3])
e a promessa de que voltariam logo para o acampamento. O Tenente-Coronel
procurou então desentulhar o caminho para fazer subir a sua gente, mas a
princípio nada conseguiu.
Por isso despachou duas
paraguaias para que fossem ao Espadim e de lá viessem guiando as suas
companheiras de infortúnio até aquele ponto. Partiram elas; decorreram algumas
horas e a impaciência deu forças novas aos que esperavam. Tentando ainda uma
vez descobrir a subida, conseguiram abrir sinuosa trilha por onde passaram 20
homens a cavalo. Vinte outros ficaram de proteção na base; sentinelas
destacadas no deserto, tão valentes como os valentes que buscavam o
desconhecido. Ficou comandando o Alferes Francisco Carvalho de Moura. O
Tenente-Coronel Moura caminhou três léguas em terreno plano até chegar a um
cruzamento de estradas, das quais a mais batida era a da esquerda e foi por ele
seguida na distância de duas léguas. Parou então. Essa estrada levava a
Panadero, e como sinais incontestáveis jaziam cadáveres de mulheres, homens,
crianças e velhos que dias antes tinham sido degolados.
O Tenente-Coronel
retrocedeu e, depois de deixar quinze homens na encruzilhada, seguiu com cinco
praças pela outra estrada, se bem que a noite já estivesse bastante adiantada.
Depois de certo tempo de marcha, dois cavalos afrouxaram, e os soldados que os
montavam tiveram que apear-se e os ir tocando por diante. Afinal, às 11 horas e
meia, encontrou Moura três ranchos atopetados de famílias, mulheres e crianças,
acocoradas ao redor de grandes fogueiras. O abalo que essa desgraçada gente
recebeu foi imenso; umas desatavam em pranto ruidoso, outras fugiam espavoridas
e corriam sem direção; a maior parte, agrupada ao redor dos brasileiros, os
abraçava e os aclamava! Informaram que o acampamento distava ainda uma légua e
duas delas serviram logo de vaqueanas ([4]).
A uma hora da madrugada
chegou Moura à barraca do arroio Espadim, do outro lado do qual estava o
acampamento das exiladas, sete léguas distante do cume da serra. Foram
despachadas as duas mulheres e, com suas três praças, ([5])
atravessou o intrépido rio-grandense o arroio sobre o grosso madeiro que fazia
de pinguela. Entrava enfim nesse local, em que já haviam perecido centenas de infelizes,
depois de cruel martírio. Aí tinham-se passado cenas curiosas. As mulheres,
enviadas do alto da serra, cumprindo com pontualidade a sua comissão, haviam
procurado as duas sobrinhas do Tenente-Coronel Moura e anunciado a sua próxima
chegada, dando a ele o nome de Antônio Guimarães nome que, por coincidência
singular, era também o de um parente delas.
A notícia da vinda dos
brasileiros circulou logo, confirmando o dito de um índio Caiuá, que de manhã
viera espontaneamente trazê-las ao acampamento. Entretanto, as desgraçadas
mulheres acreditaram mais num embuste para melhor perdê-las, como costumava
ordenar o tirano Solano López, do que na possibilidade da verdade, e
convenceram-se disso vendo chegar, às 8 horas da noite, dois espiões
paraguaios.
Esses homens,
demorando-se até uma hora da madrugada, presenciaram a chegada das outras duas
mulheres que precediam o Tenente-Coronel Moura e que imediatamente produziram
grande agitação no arranchamento, gritando que aí vinham os brasileiros.
Presas, interrogadas, iam ser elas degoladas, quando penetraram na palhoça os
salvadores que incontinenti mataram os dois espiões.
A alegria que
demonstraram as destinadas ([6])
foi indescritível. Mulheres, com fachos acesos, corriam de um lado para outro
dando gritos descompassados; muitas caíram em delíquio ([7]);
outras expiraram de emoção e por todos aqueles pontos erguiam-se preces e
cânticos de grupos que, ajoelhados, agradeciam a Deus a sua providencial
salvação. O resto da noite passou-se assim.
As 4 horas da madrugada
de 25, Moura reuniu 1.200 dessas mulheres e as dividiu em terços que deviam
caminhar a certa distância um dos outros. A precipitação, porém, em sair
daquele horrível lugar foi tal, que pinguela cedeu ao peso de muitas que
queriam passar e entregou às águas velozes do Espadim, as mais apressadas.
Consertada a passagem,
saíram todas e encetaram marchas forçadas que as trouxeram até Iguatemi,
ficando, porém, de fraqueza e desânimo estendidas pelo caminho mais de metade.
Entraram, pois, em Curuguati quatrocentas e tantas. É de crer, contudo, que muitas
ainda possam vir se arrastando.
A irmã do
Tenente-Coronel Moura havia falecido quatro dias antes da chegada deste ao
Espadim, deixando duas filhas já núbeis ([8])
que puderam ser salvas. Tal foi a expedição do impertérrito ([9])
Tenente-Coronel Antonio José de Moura. (PIMENTEL)
Bibliografia:
PIMENTEL,
Joaquim Silvério de Azevedo. Episódios
Militares – Brasil – Rio de Janeiro, RJ – Editor Tipografia a Vapor A. dos
Santos, 1887.
Solicito
Publicação
(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia,
Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e
Colunista;
· Campeão do II
Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
· Ex-Professor
do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);
· Ex-Pesquisador
do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
· Ex-Presidente
do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
· Ex-Membro do
4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
· Presidente da
Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
· Membro da
Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
· Membro do
Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
· Membro da
Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
· Membro da
Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
· Comendador da
Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
· Colaborador
Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
· Colaborador
Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
· E-mail: hiramrsilva@gmail.com.
[1] Adaptado de um verso da Eneida de Virgílio – significa
literalmente “a sorte sorri para os
audaciosos”.
[2] “Ipsis verbis”: com as
mesmas palavras.
[3] Laranjas azedas: as doces eram proibidas, porque estavam
reservadas somente para o exército! (PIMENTEL)
[4] Vaqueanas: guias. (PIMENTEL)
[5] Com suas três praças: parece fabuloso! (PIMENTEL)
[6] Destinadas: na linguagem oficial de Solano López, queria dizer –
condenadas a morrer de fome ou degoladas. (PIMENTEL)
[7] Delíquio: chiliques.
[8] Núbeis: em idade de casar.
[9] Impertérrito: destemido, impávido.
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – XXVIII
Bagé, 29.01.2025 Continuando engarupado na memória: Tribuna da Imprensa n° 4.281, Rio, RJQuinta-feira, 21.02.1964 Em Primeira Mão(Hélio Fernande
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – XXVII
Bagé, 27.01.2025 Continuando engarupado na memória: Tribuna da Imprensa n° 4.279, Rio, RJQuarta-feira, 19.02.1964 Em Primeira Mão(Hélio Fernande
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – XXVI
Bagé, 24.01.2025 Continuando engarupado na memória: Tribuna da Imprensa n° 4.272, Rio, RJ Sábado e Domingo, 08 e 09.02.1964 Jango Atinge sua Maior M
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – XXV
Bagé, 22.01.2025 Continuando engarupado na memória: Tribuna da Imprensa n° 4.268, Rio, RJ Terça-feira, 04.02.1964 Em Primeira Mão(Hélio Fernandes)