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Hiram Reis e Silva

Francisco Solano López – Parte VII - Dionísio Evangelista de Castro Cerqueira


Francisco Solano López – Parte VII - Dionísio Evangelista de Castro Cerqueira - Gente de Opinião

Bagé, 29.05.2020

 

Dionísio Evangelista de Castro Cerqueira

 

O Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil, da Fundação Getúlio Vargas apresenta-nos o próximo historiador, que foi como soldado para a Guerra do Paraguai e de lá retornou como Tenente.

 

Dionísio Evangelista de Castro Cerqueira nasceu na vila de Curralinho, atual município de Castro Alves (BA), no dia 2 de abril de 1847, filho de Antônio Cerqueira Pinto e de Ana Fausta dos Santos Castro. [...] Após as primeiras letras, fez o curso de humanidades no antigo Colégio 2 de Julho em Salvador. Seguiu depois para o Rio de Janeiro, então capital do Império, a fim de ingressar na Escola Central e cursar engenharia. Estava já no segundo ano do curso quando teve início a Guerra do Paraguai [1864-1870]. Seguindo o exemplo de antepassados, alistou-se como voluntário em 1865, aos 17 anos, e a 5 de fevereiro seguiu para juntar-se às forças que combatiam em Montevidéu. Teve parte destacada em todas as grandes batalhas então travadas. Por sua participação na Jornada do Estabelecimento, foi feito cavaleiro da Ordem da Rosa. Na batalha do Chaco, “por denodo e bravura”, foi citado pelo imperador.

 

Em Angostura, foi louvado por “excessiva coragem”. Na Batalha de Lomas Valentinas, onde foi ferido gravemente, conquistou a medalha do Mérito Militar. Pela parte que tomou nos combates de maio de 1868 e nos das Cordilheiras, foi elevado a oficial da Ordem da Rosa.

 

Por conta de atos de heroísmo e bravura nos combates de Sapucaí e Peribebuí, em 1869, e Campo Grande, em 1870, foi elogiado pelo chefe do Exército, o conde D’Eu, por:

 

Haver concorrido com os triunfos alcançados em prol da honra e da segurança do Brasil.

 

Foi então promovido a primeiro-tenente por atos de bravura.

 

De volta ao Rio de Janeiro desde o fim da guerra, matriculou-se na Escola Militar. Foi promovido a capitão em 1872 e conquistou, em 1874, os títulos de engenheiro militar e civil e bacharel em ciências e matemáticas. [...]

 

Em agosto de 1890, após ser promovido a coronel, foi nomeado comandante da Escola Militar de Porto Alegre, com a missão de serenar os ânimos dos alunos que se encontravam exaltados com os acontecimentos políticos, tarefa na qual já haviam falhado outros oficiais de patente superior. Apelando para o espírito patriótico e a disciplina militar dos alunos, conseguiu obter sua confiança. [...]

 

Quando, em 3 de novembro seguinte, o marechal Deodoro da Fonseca deu o golpe de Estado em que dissolveu o Congresso Nacional, protestou contra tal ato e, embora estivesse prestes a ser promovido a general, pediu sua passagem para a reserva.

 

O Marechal Deodoro, ignorando seu protesto, nomeou-o quartel-mestre general do Exército, cargo de alta confiança, ao que respondeu com o pedido de reforma. Tendo seu pedido atendido por decerto de 12 do mesmo mês, deixou o serviço ativo do Exército no posto de general de brigada. (CERQUEIRA).

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Reminiscências da Campanha do Paraguai

Dionísio Evangelista de Castro Cerqueira

TTTTTTTTTT

Biblioteca do Exército, 1980

TTTTTTTTTT

 

XI – A Imprensa de López

 

[...] Era curioso ler o Boletim do Exército, de López, noticiando a vitória dos seus soldados, que tomaram as nossas posições e aniquilaram completamente os covardes e escravos brasileiro, que, ajoelhados e de mãos postas lhes pediam misericórdia, dizendo que também eram paraguaios.

 

Os canhões de grosso calibre da nossa esquadra já haviam desmantelado o pequeno Forte de Itapiru e as nossas granadas explodiam frequentemente no meio dos quartéis das Forças do Ditador, no Passo da Pátria, onde ele se sentia pouco seguro e já não tinha desejo de nos esperar. Para exaltar o espírito dos seus soldados, cuja valentia, obediência e abnegação dispensavam aliás estímulos, López, nos mandava injuriar pela sua imprensa. O “Boletim del Ejercito”, “O Semanario” e o “Cabichuí” ficaram, de sobejo, nossos conhecidos.

 

Às vezes, sem sabermos como, apareciam exemplares, cobertos de injúrias aos aliados, nos nossos acampamentos. De alguns sabíamos as origens: eram os encontrados nos bolsos dos mortos e feridos. Os outros haviam sido deixados, provavelmente, pelos espiões, que não eram raros e passavam facilmente por orientais no acampamento argentino, por argentinos no oriental, e por orientais ou argentinos no brasileiro.

 

 

 

Nas suas insultuosas publicações todos nós das três potências aliadas, éramos tratados de covardes e tudo o que há pior. Muitos anos depois, durante a revolta de 1893, vi com desgosto que alguns dos nossos chefes pareciam ter aprendido as más lições de López, lançando as mesmas injúrias aos adversários, em suas partes de combate. Não sei que glória há em triunfar de um inimigo covarde. Os japoneses exaltaram-se, exaltando a coragem dos russos na última guerra.

 

O pequeno periódico ilustrado “Cabichuí” [maribondo caboclo] tinha às vezes, pilhérias muito insulsas; outras, bastante picantes como as suas ferretoadas. Os nossos generais eram representados por lentas tartarugas, arrastando a custo, pesadas espadas; um macaco, de barbas grandes com uma coroa na cabeça, figurava o Imperador. Dava-nos nome de “cambaí” o que significava macaco. Até o nosso balão cativo, destinado a reconhecimentos, não escapou à veia humorística do Gavarni ([1]) guarani, que o pintava agarrado nas costas de um cágado. Definiu, uma vez, os aliados na seguinte sentença, cuja injustiça dispensa comentários:

 

Orientales... general sin ejercito:

Brasileros... ejercito sin general:

Argentinos... ni general-ni ejercito!!! […] (CERQUEIRA).



[1]   Paul Gavarni: caricaturista francês (1804-1866).

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XXIV – Rendição da Guarnição de Humaitá
Pobre Dona Juliana

 

[...] Nesse dia, 5 de agosto, que foi o último da luta encarniçada, o Coronel Martinez rendeu-se com todos os valentes companheiros.

 

Recebemo-los como mereciam. Tratamo-los o melhor possível. Conversávamos com eles, como camaradas. Não se via nas fisionomias da nossa gente, um vislumbre de ódio. Comovia-nos a desgraça daqueles centenares de bravos. Para que negá-lo? Olhava-os com simpatia, porque lhes conhecia a bravura. Cumpriam o mais sagrado dos deveres, defendendo a sua Pátria invadida; mereciam, portanto, o respeito dos que sabiam também amar a terra em que nasceram.

 

O tratamento, que demos durante a guerra aos nossos prisioneiros, devia ter feito nascer em seus corações sentimentos de afeto e de gratidão para nós, os seus vencedores. Por isso, quando contavam, no Paraguai, as atrocidades praticadas por legalistas e rebeldes na última guerra civil que ensanguentou o solo brasileiro, ninguém lá acreditava. Todos protestavam, dizendo:

 

Não é possível. Os brasileiros não são cruéis ‒ não podem degolar os seus irmãos. Nós conhecemos sobejamente a bondade da sua alma; tudo isso que dizem é falso.

 

É que as guerras civis são mais cheias de ódio. Depois da visita ao campo dos prisioneiros, que foram logo mandados para Humaitá, fomos ver as suas fortificações no longo albardão. A memória estremece ao recordar aquele quadro, horrorosamente pungente.

 

Nas proximidades das trincheiras, tropeçávamos nos cadáveres inchados e disformes dos nossos camaradas, que caíram no assalto inútil de 28 de junho. No fosso, havia alguns em decomposição adiantada, cobertos por nuvens de moscas, que esvoaçavam em roda macabra, num zumbido atordoador.

 

Com os braços pendidos para dentro, a cabeça na crista, rachada de meio a meio e o corpo agarrado ao parapeito, por um prodígio de equilíbrio, vimos um soldado do 5°.

 

Foi um valente que ali tombou para sempre, e cujo nome nenhum de nós conhecia. Descobrimo-nos diante daquele montão de carne putrefata, que ia, em poucas horas, adubar ainda mais aquela terra prodigiosamente fértil. O nosso olhar de admiração foi a única homenagem que tiveram aqueles heróis, tão humildes e, por isso mesmo, grandes. No recinto, que cenário!

 

Homens e mulheres, velhos e crianças em pedaços, com olhos vazados, lábios arrancados, pernas e braços dilacerados, crânios furados com os miolos de fora, os ferimentos mais horríveis e a gangrena enegrecendo os bordos estiomenados e purulentos.

 

Uns, deitados no chão úmido sem uma rama sequer; outros, os menos mutilados, encostados a troncos de árvores. O valente Coronel Martinez, que, resistira duas semanas e capitulara com honra, estava exausto.

 

Era um belo homem, o porte varonil, alto e louro e se parecia com o outro Martinez, que perdemos no dia 18 e que, morrendo, sofreu menos, certamente do que ele. Diziam que sua esposa, dona Juliana, era um tipo de graça e de beleza; e muito amada.

 

Contaram-nos que o Ditador ao receber a notícia da rendição mandou buscá-la presa, e expô-la em plena nudez à soldadesca brutal, e lhe infligiu com ferocidade os mais cruéis vilipêndios. Não saciada sua sanha, o imaníssimo tirano mandou que verdugos armados de azorragues flagelassem a mesquinha.

 

As brancas carnes avergoadas a princípio, tingiram-se de vermelho e saltaram laceradas em pedaços sangrentos aos golpes bravios, até findar-se a agonia da desgraçada num estertor do mais acerbo sofrimento. “El supremo” vingara-se, na dedicada esposa inocente, das páginas de glória escritas pelo marido na história da sua Pátria. Nada mais nos detinha no segundo Chaco. Deixamo-lo na primeira década de agosto e reunimo-nos ao grande exército que estava prestes a marchar para o Norte, onde López nos esperava na margem direita da Tebiquari.

 

Durante os três meses que vivemos em Andaí, pouco dormi ‒ fui sobrerronda do Batalhão. O Tibúrcio ordenou-me que rondasse as sentinelas, as prontidões; as patrulhas, as rondas e responsabilizou-me pelo que pudesse acontecer. Passei as noites todas de espada à cinta, ora em palestra com camaradas de serviço, ora correndo as trincheiras e o abarracamento ou indo às avançadas, quando se ouvia um tiro. Raras vezes recostei-me na rede da remada e sentia-me orgulhoso e feliz com a confiança do meu comandante. (CERQUEIRA).

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XXV – Traidores da Pátria

 

[...] Quando o 16°, depois de ganhar a margem direita, seguia em busca de um lugar onde abarracar, sentimos um cheiro nauseabundo de matadouro, que a cada passo se tornava mais intenso. Urubus negros e camirangas revoavam em círculo, disputando a posse de pedaços de carniça.

 

A medida que acercávamos, eram mais numerosos; já não se levantavam em bandos; pareciam mais mansos ou fazer pouco caso de nós; olhavam-nos curiosos, ensaiavam curtas carreiras abrindo as asas largas, e davam pulos, crocitando.

 

Mais adiante... que quadro! Ainda hoje enche-se de assombro a minha memória ao relembrá-lo. O trágico pincel do próprio Ribera tremeria ao copiá-lo. Tínhamos perto uma vala imensa, atopetada de cadáveres denegridos pela podridão, moços e velhos, todos nus com ferimentos medonhos de lança, de bala, de faca. As gargantas cortadas, cobertas de varejeiras, os peitos largamente fendidos e restos dos intestinos, que os urubus já tinham arrancado.

 

Todos imensamente inchados. Um ou outro com os olhos esbugalhados, quase todos só com as órbitas, que os abutres cavaram. Como aquela, havia outras valas, perto de um laranjal; e descobertas todas. Cada uma tinha na ponta de uma vara fincada numa garganta ou numa boca o letreiro: Traidores à la Pátria”. Não era possível contar os cadáveres. Estavam empilhados em desordem.Havia centenares. Parecia terem sido trucidados ali mesmo, à beira das enormes sepulturas.

 

 

 

O chão, em derredor, tinha ainda os sinais do sangue derramado. Paraguaios que estavam conosco, disseram-nos os nomes de alguns supliciados, que formavam o escol da alta sociedade do seu país. Ali estavam o Ministro das Relações Exteriores José Berges, o General Bruguez, homens de Estado, jurisconsultos, políticos, sacerdotes de alta hierarquia, generais e o que o Paraguai tinha de mais conspícuo.

 

Parentes e amigos dedicados “del Supremo” jaziam naquelas covas, de propósito descobertas, para que nós os víssemos bem. O pretexto para aquela matança espantosa foi uma conspiração, que o cérebro do Nero fantasiou para se libertar dos que ainda podiam julgar os seus grandes crimes naquela terra flagelada pela desgraça. Foi curta a nossa demora em San Fernando. [...] (CERQUEIRA)

 

XXXII – Marcha para Arecutaguá

 

Segui com o Batalhão para o rio Manduvirá, pelo qual haviam entrado alguns meses antes navios de pequeno calado da nossa esquadra, sob as ordens do bravo Jerônimo Gonçalves. O Ditador, depois dos últimos combates, mandou incendiar os seus seis últimos navios fatalmente condenados a cair em nosso poder e que estavam refugiados nesse rio.

 

Em nossa marcha, que foi longa, atravessamos pequenos campestres, grandes banhados e bosques. Os tempos estavam mudados: o inimigo batia em retirada precipitada por outros caminhos, perseguido por outras forças e já não receávamos vê-lo surgir na nossa frente. A cada passo, nessas marchas tétricas dos últimos tempos da guerra terrível, encontrávamos nas voltas do caminho, na lama das estradas, na margem dos riachos ou nas alpondras cobertas de musgo dos seus leitos marulhosos, refrescando os pés doridos nas águas frias, na ourela sombria da mata ou no meio do areal que abrasava, mulheres magras e macilentas, com os traços da beleza quase apagados, cobertas de andrajos, às vezes de seda, com arrecadas de ouro cinzelado incrustados de crisólitas nas orelhas pálidas, estendendo-nos suplicantes as mãos descarnadas cheias, não raro, de anéis com muitas voltas, implorando esmola de um punhado de farinha ou de um pedaço de carne para lhes matar a fome.

 

Mais além, criancinhas esqueléticas sugando sem força os seios murchos e secos das mães agonizantes. Adiante meninos nus, amarelos, barrigudos, com as costelinhas à mostra, olhando-nos espantados. Transidos de terror ou sorrindo-nos medrosos a nós, que perseguíamos nessas marchas de tormentos, seus pais, seus avós, e seus irmãos.

 

Oh! a guerra! Quanta dor naquela terra! Quanta lágrima na nossa pátria. Quantos soluços abafados pelos hinos da vitória! (CERQUEIRA)

 

Bibliografia:

 

CERQUEIRA, Dionísio. Reminiscências da Campanha do Paraguai – Brasil – Rio de Janeiro, RJ – Biblioteca do Exército Editora, 1980.

 

 

Solicito Publicação

 

(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;

 

·    Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)

·    Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);

·    Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);

·    Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);

·    Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)

·    Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);

·    Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);

·    Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);

·    Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)

·    Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);

·    Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)

·    Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).

·    Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).

E-mail: hiramrsilva@gmail.com

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