Sexta-feira, 29 de maio de 2020 - 08h58
Bagé, 29.05.2020
Dionísio
Evangelista de Castro Cerqueira
O Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil, da Fundação Getúlio Vargas
apresenta-nos o próximo historiador, que foi como soldado para a Guerra do
Paraguai e de lá retornou como Tenente.
Dionísio Evangelista de
Castro Cerqueira nasceu na vila de Curralinho, atual município de Castro Alves
(BA), no dia 2 de abril de 1847, filho de Antônio Cerqueira Pinto e de Ana
Fausta dos Santos Castro. [...] Após as primeiras letras, fez o curso de
humanidades no antigo Colégio 2 de Julho em Salvador. Seguiu depois para o Rio
de Janeiro, então capital do Império, a fim de ingressar na Escola Central e
cursar engenharia. Estava já no segundo ano do curso quando teve início a
Guerra do Paraguai [1864-1870]. Seguindo o exemplo de antepassados, alistou-se
como voluntário em 1865, aos 17 anos, e a 5 de fevereiro seguiu para juntar-se
às forças que combatiam em Montevidéu. Teve parte destacada em todas as grandes
batalhas então travadas. Por sua participação na Jornada do Estabelecimento,
foi feito cavaleiro da Ordem da Rosa. Na batalha do Chaco, “por denodo e bravura”, foi citado pelo
imperador.
Em Angostura, foi
louvado por “excessiva coragem”. Na
Batalha de Lomas Valentinas, onde foi ferido gravemente, conquistou a medalha
do Mérito Militar. Pela parte que tomou nos combates de maio de 1868 e nos das
Cordilheiras, foi elevado a oficial da Ordem da Rosa.
Por conta de atos de
heroísmo e bravura nos combates de Sapucaí e Peribebuí, em 1869, e Campo
Grande, em 1870, foi elogiado pelo chefe do Exército, o conde D’Eu, por:
Haver concorrido com os
triunfos alcançados em prol da honra e da segurança do Brasil.
Foi então promovido a
primeiro-tenente por atos de bravura.
De volta ao Rio de
Janeiro desde o fim da guerra, matriculou-se na Escola Militar. Foi promovido a
capitão em 1872 e conquistou, em 1874, os títulos de engenheiro militar e civil
e bacharel em ciências e matemáticas. [...]
Em agosto de 1890, após
ser promovido a coronel, foi nomeado comandante da Escola Militar de Porto
Alegre, com a missão de serenar os ânimos dos alunos que se encontravam
exaltados com os acontecimentos políticos, tarefa na qual já haviam falhado
outros oficiais de patente superior. Apelando para o espírito patriótico e a
disciplina militar dos alunos, conseguiu obter sua confiança. [...]
Quando, em 3 de novembro
seguinte, o marechal Deodoro da Fonseca deu o golpe de Estado em que dissolveu
o Congresso Nacional, protestou contra tal ato e, embora estivesse prestes a
ser promovido a general, pediu sua passagem para a reserva.
O Marechal Deodoro,
ignorando seu protesto, nomeou-o quartel-mestre general do Exército, cargo de
alta confiança, ao que respondeu com o pedido de reforma. Tendo seu pedido
atendido por decerto de 12 do mesmo mês, deixou o serviço ativo do Exército no
posto de general de brigada. (CERQUEIRA).
Reminiscências da Campanha do Paraguai
Dionísio Evangelista de Castro Cerqueira
TTTTTTTTTT
Biblioteca do Exército, 1980
TTTTTTTTTT
XI – A Imprensa de López
[...] Era curioso ler o
Boletim do Exército, de López, noticiando a vitória dos seus soldados, que
tomaram as nossas posições e aniquilaram completamente os covardes e escravos
brasileiro, que, ajoelhados e de mãos postas lhes pediam misericórdia, dizendo que
também eram paraguaios.
Os canhões de grosso
calibre da nossa esquadra já haviam desmantelado o pequeno Forte de Itapiru e
as nossas granadas explodiam frequentemente no meio dos quartéis das Forças do
Ditador, no Passo da Pátria, onde ele se sentia pouco seguro e já não tinha
desejo de nos esperar. Para exaltar o espírito dos seus soldados, cuja
valentia, obediência e abnegação dispensavam aliás estímulos, López, nos
mandava injuriar pela sua imprensa. O “Boletim
del Ejercito”, “O Semanario” e o
“Cabichuí” ficaram, de sobejo, nossos
conhecidos.
Às vezes, sem sabermos
como, apareciam exemplares, cobertos de injúrias aos aliados, nos nossos
acampamentos. De alguns sabíamos as origens: eram os encontrados nos bolsos dos
mortos e feridos. Os outros haviam sido deixados, provavelmente, pelos espiões,
que não eram raros e passavam facilmente por orientais no acampamento
argentino, por argentinos no oriental, e por orientais ou argentinos no
brasileiro.
Nas suas insultuosas
publicações todos nós das três potências aliadas, éramos tratados de covardes e
tudo o que há pior. Muitos anos depois, durante a revolta de 1893, vi com
desgosto que alguns dos nossos chefes pareciam ter aprendido as más lições de
López, lançando as mesmas injúrias aos adversários, em suas partes de combate.
Não sei que glória há em triunfar de um inimigo covarde. Os japoneses
exaltaram-se, exaltando a coragem dos russos na última guerra.
O pequeno periódico
ilustrado “Cabichuí” [maribondo
caboclo] tinha às vezes, pilhérias muito insulsas; outras, bastante picantes
como as suas ferretoadas. Os nossos generais eram representados por lentas
tartarugas, arrastando a custo, pesadas espadas; um macaco, de barbas grandes
com uma coroa na cabeça, figurava o Imperador. Dava-nos nome de “cambaí” o que significava macaco. Até o
nosso balão cativo, destinado a reconhecimentos, não escapou à veia humorística
do Gavarni ([1])
guarani, que o pintava agarrado nas costas de um cágado. Definiu, uma vez, os
aliados na seguinte sentença, cuja injustiça dispensa comentários:
Orientales...
general sin ejercito:
Brasileros...
ejercito sin general:
Argentinos... ni general-ni ejercito!!! […] (CERQUEIRA).
XXIV – Rendição da Guarnição de Humaitá
Pobre Dona Juliana
[...] Nesse dia, 5 de
agosto, que foi o último da luta encarniçada, o Coronel Martinez rendeu-se com todos
os valentes companheiros.
Recebemo-los
como mereciam. Tratamo-los o melhor possível. Conversávamos com eles, como
camaradas. Não se via nas fisionomias da nossa gente, um vislumbre de ódio.
Comovia-nos a desgraça daqueles centenares de bravos. Para que negá-lo?
Olhava-os com simpatia, porque lhes conhecia a bravura. Cumpriam o mais sagrado
dos deveres, defendendo a sua Pátria invadida; mereciam, portanto, o respeito
dos que sabiam também amar a terra em que nasceram.
O tratamento, que demos
durante a guerra aos nossos prisioneiros, devia ter feito nascer em seus
corações sentimentos de afeto e de gratidão para nós, os seus vencedores. Por
isso, quando contavam, no Paraguai, as atrocidades praticadas por legalistas e
rebeldes na última guerra civil que ensanguentou o solo brasileiro, ninguém lá
acreditava. Todos protestavam, dizendo:
Não é possível. Os
brasileiros não são cruéis ‒ não podem degolar os seus irmãos. Nós conhecemos
sobejamente a bondade da sua alma; tudo isso que dizem é falso.
É que as guerras civis
são mais cheias de ódio. Depois da visita ao campo dos prisioneiros, que foram
logo mandados para Humaitá, fomos ver as suas fortificações no longo albardão.
A memória estremece ao recordar aquele quadro, horrorosamente pungente.
Nas proximidades das
trincheiras, tropeçávamos nos cadáveres inchados e disformes dos nossos
camaradas, que caíram no assalto inútil de 28 de junho. No fosso, havia alguns
em decomposição adiantada, cobertos por nuvens de moscas, que esvoaçavam em
roda macabra, num zumbido atordoador.
Com os braços pendidos
para dentro, a cabeça na crista, rachada de meio a meio e o corpo agarrado ao
parapeito, por um prodígio de equilíbrio, vimos um soldado do 5°.
Foi um valente que ali
tombou para sempre, e cujo nome nenhum de nós conhecia. Descobrimo-nos diante
daquele montão de carne putrefata, que ia, em poucas horas, adubar ainda mais
aquela terra prodigiosamente fértil. O nosso olhar de admiração foi a única
homenagem que tiveram aqueles heróis, tão humildes e, por isso mesmo, grandes.
No recinto, que cenário!
Homens e mulheres,
velhos e crianças em pedaços, com olhos vazados, lábios arrancados, pernas e
braços dilacerados, crânios furados com os miolos de fora, os ferimentos mais
horríveis e a gangrena enegrecendo os bordos estiomenados e purulentos.
Uns, deitados no chão
úmido sem uma rama sequer; outros, os menos mutilados, encostados a troncos de
árvores. O valente Coronel Martinez, que, resistira duas semanas e capitulara
com honra, estava exausto.
Era um belo homem, o
porte varonil, alto e louro e se parecia com o outro Martinez, que perdemos no
dia 18 e que, morrendo, sofreu menos, certamente do que ele. Diziam que sua
esposa, dona Juliana, era um tipo de graça e de beleza; e muito amada.
Contaram-nos que o
Ditador ao receber a notícia da rendição mandou buscá-la presa, e expô-la em
plena nudez à soldadesca brutal, e lhe infligiu com ferocidade os mais cruéis
vilipêndios. Não saciada sua sanha, o imaníssimo tirano mandou que verdugos
armados de azorragues flagelassem a mesquinha.
As brancas carnes
avergoadas a princípio, tingiram-se de vermelho e saltaram laceradas em pedaços
sangrentos aos golpes bravios, até findar-se a agonia da desgraçada num
estertor do mais acerbo sofrimento. “El
supremo” vingara-se, na dedicada esposa inocente, das páginas de glória
escritas pelo marido na história da sua Pátria. Nada mais nos detinha no
segundo Chaco. Deixamo-lo na primeira década de agosto e reunimo-nos ao grande
exército que estava prestes a marchar para o Norte, onde López nos esperava na
margem direita da Tebiquari.
Durante os três meses
que vivemos em Andaí, pouco dormi ‒ fui sobrerronda do Batalhão. O Tibúrcio
ordenou-me que rondasse as sentinelas, as prontidões; as patrulhas, as rondas e
responsabilizou-me pelo que pudesse acontecer. Passei as noites todas de espada
à cinta, ora em palestra com camaradas de serviço, ora correndo as trincheiras
e o abarracamento ou indo às avançadas, quando se ouvia um tiro. Raras vezes
recostei-me na rede da remada e sentia-me orgulhoso e feliz com a confiança do
meu comandante. (CERQUEIRA).
XXV – Traidores da Pátria
[...] Quando o 16°,
depois de ganhar a margem direita, seguia em busca de um lugar onde abarracar,
sentimos um cheiro nauseabundo de matadouro, que a cada passo se tornava mais
intenso. Urubus negros e camirangas revoavam em círculo, disputando a posse de
pedaços de carniça.
A medida que
acercávamos, eram mais numerosos; já não se levantavam em bandos; pareciam mais
mansos ou fazer pouco caso de nós; olhavam-nos curiosos, ensaiavam curtas
carreiras abrindo as asas largas, e davam pulos, crocitando.
Mais adiante... que
quadro! Ainda hoje enche-se de assombro a minha memória ao relembrá-lo. O
trágico pincel do próprio Ribera tremeria ao copiá-lo. Tínhamos perto uma vala
imensa, atopetada de cadáveres denegridos pela podridão, moços e velhos, todos
nus com ferimentos medonhos de lança, de bala, de faca. As gargantas cortadas,
cobertas de varejeiras, os peitos largamente fendidos e restos dos intestinos,
que os urubus já tinham arrancado.
Todos imensamente
inchados. Um ou outro com os olhos esbugalhados, quase todos só com as órbitas,
que os abutres cavaram. Como aquela, havia outras valas, perto de um laranjal;
e descobertas todas. Cada uma tinha na ponta de uma vara fincada numa garganta ou
numa boca o letreiro: Traidores à la
Pátria”. Não era possível contar os cadáveres. Estavam empilhados em
desordem.Havia centenares. Parecia terem sido trucidados ali mesmo, à beira das
enormes sepulturas.
O chão, em derredor,
tinha ainda os sinais do sangue derramado. Paraguaios que estavam conosco,
disseram-nos os nomes de alguns supliciados, que formavam o escol da alta
sociedade do seu país. Ali estavam o Ministro das Relações Exteriores José
Berges, o General Bruguez, homens de Estado, jurisconsultos, políticos,
sacerdotes de alta hierarquia, generais e o que o Paraguai tinha de mais
conspícuo.
Parentes e amigos
dedicados “del Supremo” jaziam
naquelas covas, de propósito descobertas, para que nós os víssemos bem. O
pretexto para aquela matança espantosa foi uma conspiração, que o cérebro do
Nero fantasiou para se libertar dos que ainda podiam julgar os seus grandes
crimes naquela terra flagelada pela desgraça. Foi curta a nossa demora em San Fernando. [...] (CERQUEIRA)
XXXII – Marcha para Arecutaguá
Segui com o Batalhão
para o rio Manduvirá, pelo qual haviam entrado alguns meses antes navios de
pequeno calado da nossa esquadra, sob as ordens do bravo Jerônimo Gonçalves. O
Ditador, depois dos últimos combates, mandou incendiar os seus seis últimos
navios fatalmente condenados a cair em nosso poder e que estavam refugiados
nesse rio.
Em nossa marcha, que
foi longa, atravessamos pequenos campestres, grandes banhados e bosques. Os
tempos estavam mudados: o inimigo batia em retirada precipitada por outros
caminhos, perseguido por outras forças e já não receávamos vê-lo surgir na
nossa frente. A cada passo, nessas marchas tétricas dos últimos tempos da
guerra terrível, encontrávamos nas voltas do caminho, na lama das estradas, na
margem dos riachos ou nas alpondras cobertas de musgo dos seus leitos
marulhosos, refrescando os pés doridos nas águas frias, na ourela sombria da
mata ou no meio do areal que abrasava, mulheres magras e macilentas, com os
traços da beleza quase apagados, cobertas de andrajos, às vezes de seda, com
arrecadas de ouro cinzelado incrustados de crisólitas nas orelhas pálidas,
estendendo-nos suplicantes as mãos descarnadas cheias, não raro, de anéis com
muitas voltas, implorando esmola de um punhado de farinha ou de um pedaço de
carne para lhes matar a fome.
Mais além, criancinhas
esqueléticas sugando sem força os seios murchos e secos das mães agonizantes.
Adiante meninos nus, amarelos, barrigudos, com as costelinhas à mostra,
olhando-nos espantados. Transidos de terror ou sorrindo-nos medrosos a nós, que
perseguíamos nessas marchas de tormentos, seus pais, seus avós, e seus irmãos.
Oh! a guerra! Quanta
dor naquela terra! Quanta lágrima na nossa pátria. Quantos soluços abafados
pelos hinos da vitória! (CERQUEIRA)
Bibliografia:
CERQUEIRA,
Dionísio. Reminiscências da Campanha do Paraguai – Brasil – Rio de Janeiro, RJ
– Biblioteca do Exército Editora, 1980.
Solicito
Publicação
(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia,
Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e
Colunista;
· Campeão do II
Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
· Ex-Professor
do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);
· Ex-Pesquisador
do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
· Ex-Presidente
do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
· Ex-Membro do
4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
· Presidente da
Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
· Membro da
Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
· Membro do
Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
· Membro da
Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
· Membro da
Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
· Comendador da
Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
· Colaborador
Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
· Colaborador
Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
E-mail: hiramrsilva@gmail.com
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – X
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Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – IV
Bagé, 06.12.2024 Continuando engarupado na memória: Jornal do Brasil n° 186, Rio de Janeiro, RJSábado, 10.08.1963 Lacerda diz na CPI que Pressõessã
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Bagé, 02.12.2024 Continuando engarupado na memória: Jornal do Brasil n° 177, Rio de Janeiro, RJQuarta-feira, 31.07.1963 JB na Mira O jornalista H