Quinta-feira, 9 de julho de 2020 - 06h05
Bagé, 10.07.2020
Diário de Notícias, n° 127 ‒ Belém, PA
Sexta-feira, 07.06.1895
Hecatombe de Brasileiros
do Amapá, em 15 de maio de 1895,
Pelos Soldados Franceses, Vindos de Caiena
no Vapor de Guerra “Bengali”
Chegamos ontem do Amapá, aonde fomos no vapor mercante
– “Bragança” –, saído deste porto na
noite de 27 de maio próximo findo. Ainda, dolorosamente impressionados pelo que
vimos e ouvimos, vamos narrar com toda a fidelidade o ataque de surpresa feito
pela infantaria de Caiena contra os pacíficos habitantes da povoação do Amapá,
em sua totalidade brasileiros.
A população do território do Amapá, do Rio Amapá
Grande ao Araguari; de 350.0, a 4.000 pessoas é brasileira, não chegando a 30
os estrangeiros de diversas nacionalidades.
Esses brasileiros constituíram um Governo local seu há
muitos anos, e em dezembro do ano próximo passado elegeram um triunvirato. Este
triunvirato delegou ao seu companheiro Francisco Xavier da Veiga Cabral, todos
os poderes para organizar a polícia e comandá-la. Cabral tem se ocupado
especialmente de trabalhos de exploração no interior do Amapá, arrostando mil
dificuldades e despendendo grandes somas com o numeroso pessoal que emprega.
Sendo a França um País amigo e civilizado, impossível
seria suspeitar, que de surpresa os seus soldados caíssem sobre a povoação do
Amapá, massacrassem seus habitantes e incendiassem as casas! Por isso Cabral,
pacificamente entregava-se aos seus labores, vindo à povoação no meado de cada
mês, quando costumava chegar um vapor mercante do Estado do Pará.
Em 14 de março chegara Cabral do interior, e no dia
seguinte de manhã, às 9 horas mal se tinha acabado vestir, entra correndo um
amigo e anuncia-lhe que grande número de soldados franceses tinha desembarcado,
e um pelotão comandado por um 1° Tenente de marinha, avançava a marche-marche
contra a sua residência.
Como se achava, desarmado, Cabral sai ao encontro da
Força, que já estava a poucos passos. Três vezes o oficial pergunta:
‒ Sois o
Governador do Amapá?
Três vezes tem a mesma resposta afirmativa. Está
preso, diz o oficial a Cabral segurando-lhe no braço, e aos soldados ‒
agarrem-no.
‒ Um brasileiro
não se entrega a bandido. Responde Cabral, repelindo-o.
‒ Fogo, brada o
oficial, apontando contra Cabral um revólver.
Num momento, Cabral toma revólver e com ele atira
contra o oficial; erra, o oficial corre e ele persegue-o, disparando segundo
tiro, que ainda erra; ao terceiro tiro o oficial caiu. Quatro brasileiros, e um
americano, armados de rifles, respondem ao fogo e fazem frente aos assaltantes.
Cabral corre à casa, toma um rifle, volta, e faz fogo
contra os soldados franceses, e fá-los recuar até o grosso da coluna, e a todos
estes obriga a correr para o porto onde estavam a lancha a vapor e quatro
lanchões em que tinham vindo. Uma coluna tão ou mais forte que a primeira
avança do lado do cemitério, situado nos fundos da povoação e metendo esta
entre dois fogos. Então eram quinze os defensores do Amapá e destes Cabral
destaca quatro para atacar pelo flanco a segunda coluna.
O combate tornou-se geral. De um lado, 300 ou 400
franceses marinheiros e infantaria de marinha comandados pelos oficiais do
navio de guerra “Bengali”,
perfeitamente armados e municiados; de outro o heroico Governador do Amapá
Francisco Xavier da Veiga Cabral, acompanhado de 14 valentes, [13 brasileiros e
1 americano do norte].
As balas certeiras dos defensores do Amapá abriam
muitos claros nas colunas dos soldados franceses e três oficiais tinham cabido
mortos.
Às duas horas da tarde, esse punhado de bravos
retirou-se por não ter mais munição, conduzindo o único companheiro, que fora
gravemente ferido pelos franceses, e que veio a falecer dias depois. Os outros
feridos, 4 brasileiros tiveram forças para ganhar o mato que estava próximo lá
foram socorridos pelo heroico Governador e seus amigos.
Não tendo mais quem se lhes opusesse, os franceses
arrombaram as casas, assassinaram velhos, crianças, mulheres e homens,
indistintamente, para vingarem-se dos 15 brasileiros que ousaram defender-se,
matando e ferindo a mais de cem camaradas e a três oficiais. Não se pode
descrever o horror desta carnificina!
Arrombadas as portas a machado eram fuzilados os que
se tinham fechada nas casas, sem piedade alguma nem para as mulheres, que de
joelhos e com os filhos nos braços pediam misericórdia! Foram trucidadas 35
pessoas de todas as idades e feridas 25, sendo algumas gravemente. A raiva, o
despeito de terem sido batidos por 15 paisanos, obscureceu o entendimento dos
franceses e transformou-os em bárbaros sanguinários! Durante duas horas a
povoação esteve entregue a sanha brutal de uma soldadesca furiosa: todas as
casas foram saqueadas e 17 incendiadas, morrendo queimado em uma delas um velho
doente, maior de 70 anos.
Às 4 horas da tarde, temendo que ficassem em seco as
embarcações em que vieram, retiraram-se, levando mais a reboque uma canoa
grande, de 58 palmos sobre 16, cheia do cadáveres de soldados franceses e
conduzindo 3 prisioneiros, um português e dois brasileiros. A povoação estava
em chamas.
II
Por que os soldados franceses, vindos de Caiena no
vapor de guerra francês “Bengali”,
assaltaram a povoação brasileira do Amapá, saquearam e incendiaram as casas e
assassinaram os seus pacíficos habitantes, sem distinção de sexos nem de
idade?!
Por mais tratos que demos a imaginação nada podemos
encontrar que justifique ou ao menos autorize tanta perversidade. Um ligeiro
estudo retrospectivo, porém, projetará luz bastante sobre este monstruoso
atentado, e tornará evidente que somente a torpe cobiça de ouro do Governador
de Caiena Charvein transformou uma parte da marinha francesa num bando de
matadores de velhos, mulheres e crianças.
Às 7 horas da manhã de 30 de maio, chegou a bordo do ‒
“Bragança” ‒ o prático Manoel
Raymundo da Trindade, que mostrou uma carta do comerciante Domingos Fernandes
Mourão, datada de 26, da qual constava que no dia 13 do maio soldados e
marinheiros franceses assaltaram a povoação do Amapá, matando 40 pessoas e perdendo
maior número; que Cabral saíra salvo e o prático Chaves morrera.
Esta notícia causou verdadeiro estupor, pois parecia
inacreditável que, marinheiros e soldados de uma nação amiga, que ocupa lugar
distinto entre as primeiras nações do mundo, fosse capaz de praticar atos, que
repugna mesmo aos selvagens, ferozes contra os inimigos vencidos, porém
generoso com as mulheres, as crianças e os velhos. A verdade porém excedia
muito a triste e sucinta notícia!
Mr. Henri Coudreau, ilustrado francês, encarregado há
12 anos de missão científica oficial nas Guianas e na Amazônia, impressionado
por este lúgubre acontecimento declarou: que durante a sua última estada em
Paris previra este triste resultado, anunciando-o ao simpático e eminente Mr.
Etienne, Presidente do Grupo Colonial da Câmara dos Deputados e ao
representante do Brasil o Dr. Glibriel Piza;
‒ que era uma
guerra dos negros contra os brancos;
‒ que a raça
negra de Caiena é inimiga inconciliável dos brancos; brasileiros e franceses;
‒ que o Governador
de Caiena Charvein é abertamente o protetor dos ladrões e bandidos, que exercem
sua indústria no ‒ Contestado ‒ e o chefe ostensivo desta Cabanagem e seu
associado nas rapinas;
‒ que Mr. de
Feiynet, antigo Presidente do Conselho de Ministros, ilustre homem de Estado,
participa de sua opinião, isto é, que a solução do Contestado interessa à
amizade, ao comércio dos brasileiros e franceses, que muito lucrarão com o
desenvolvimento das boas relações existentes, e não aos poucos negros selvagens
de Caiena, que nenhuma vantagem trarão à prosperidade da França.
O ilustrado e muito conceituado paraense Dr. Antônio
Manoel Gonçalves Tocantins, que ainda há pouco tempo visitou as povoações do
território contestado, referiu:
‒ que, estalido
no Cunani em dezembro do ano próximo passado, ouvira um negro, membro do
Conselho Geral de Caiena dizer em voz irada a um parisiense: Pensa o Sr. acaso,
que nós gostamos da França?
‒ que em
setembro, estando no Amapá, aí apareceram dois buscadores de ouro Hazard e
Caillard e entregaram ao chefe do lugar, que então era o índio analfabeto
Eugênio Voisin uma carta do Governador de Caiena Charvein pedindo que deixasse
entrar os portadores e seus trabalhadores em procura de ouro;
‒ que esse membro
do Conselho Geral também estava em busca de ouro;
‒ que essa carta
autografa de Charvein tinha sido por ele entregue ao Governador do Pará Dr.
Lauro Sodré, e por este enviado ao Governo brasileiro no Rio de Janeiro;
‒ que o Sr.
Cônego Maltez fora a Caiena em dezembro último e visitara ao Governador
Charvein; e que este, sabendo que não tinha sido atendido o seu pedido pelos
brasileiros do Amapá, declarara que bem podia mandar o aviso de guerra francês
“Bengali” dar uma lição nos
amapaenses, mas que estes não perderiam com a demora.
A opinião insuspeita, de Mr. Coudreau , que conhece
perfeitamente, Caiena, o território contestado e seus habitantes; a carta
oficial do Governador de Caiena Charvein, pedindo às autoridades do Amapá que
deixassem entrar os seus comissionados Hazard e Caillard em busca de ouro; a
ameaça feita pelo mesmo Charvein, de mandar o aviso “Bengali” ao Amapá para castigar os seus habitantes por se terem
oposto aos seus desejos, provam de sobejo que a avidez, contrariada do
Governador de Caiena é a única causa da pilhagem, do incêndio da metade da
povoação do Amapá e massacre de seus habitantes.
Cachipor e Carsuene estavam devastados pelos crioulos
Caieneses; era preciso destruir o Amapá, massacrar os seus habitantes, para que
esses bandidos pudessem livremente penetrar no interior e satisfazer a sede
insaciável de que devora o seu associado o mulato de Martinica Charvein,
infelizmente Governador de Caiena, e o aviso “Bengali” da Marinha de Guerra Francesa, desempenhou esta triste
comissão!
Para assegurar o êxito desta abominável empresa, veio,
ao Amapá, na primeira quinzena de abril, o aviso “Bengali” sondar e balizar o rio até o porto da povoação.
Dois oficiais estiveram em terra e indagaram do Governador
se os crioulos podiam vir explorar ouro no Amapá; e sendo-lhes respondido
negativamente, perguntaram se viessem os crioulos o que fariam os Amapaenses. A
resposta foi que não deixariam entrar esses crioulos para não serem vítimas das
depredações que costumavam fazer.
O fim estava conseguido: a posição do Amapá
reconhecida, balizado o rio e marcada a altura da preamar e baixa mar; podiam
voltar com segurança e o fizeram em 15 de Maio! [Felipe José de Lima]
Pará 6 de junho de 1895
Sr. Dr. Tocantins, encarregado de missões científicas
Meu caro colega
Acabo de ler atentamente vosso relatório sobre o
massacre de Amapá. Relata um conjunto de fatos que, desgraçadamente não podem
ser postos em dúvida, mesmo nos detalhes: Assisti ao inquérito que fizestes no
Amapá, e cotejei-o com outro contra-inquérito feito por mim mesmo e minha
convicção é completa: OS FATOS SÃO EXATOS NO SEU CONJUNTO.
Peço-vos somente que destinais neste lamentável
acontecimento duas fontes de responsabilidade:
1ª A RESPONSABILIDADE
DO GOVERNO FRANCÊS:
O Governo
francês foi dividido em sua boa-fé por um pequeno bando de indivíduos, mais ou
menos comprometidos, camarilha, que eu observo à alguns anos e cuja entrada
próxima nas galés espero com paciência.
2ª A RESPONSABILIDADE
DO BANDO DE INDIVÍDUOS EM QUESTÃO:
Por hoje não
marcarei na espádua senão o odioso instigador do massacre do Amapá, o célebre
Charvein, grande jacobino anticolonial que dá lealmente a mão ao seu negro nas
pequenas combinações auríferas do, Contestado.
Não determino
por ora porque não estou na França; mas fá-lo-ei nos jornais de meu País.
Falarei! Não
consentirei que se diga, que Caiena, a Caiena que conheceis, a Caiena cujo
sentimento anti-francês vós mesmo tendes verificado, provocará um rompimento
entre a França e o Brasil.
O coração e o
bom senso das duas grandes nações amigas prevalecerão contra as patifarias dos
negros e a raiva dos concussionários (daqueles que praticam crimes contra a
administração pública).
Cordialmente,
meu caro doutor, vosso devotado.
Henri Coudreau
[Ex-encarregado de missões científicas, 1883-1895] (DDN, n° 127)
Bibliografia:
DDN, N° 127. Hecatombe de Brasileiros do Amapá ‒ Brasil ‒ Belém, PA ‒ Diário de
Notícias, n° 127, 07.06.1895.
Solicito Publicação
(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de
Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor
e Colunista;
· Campeão do II
Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
· Ex-Professor
do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);
· Ex-Pesquisador
do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
· Ex-Presidente
do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
· Ex-Membro do
4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
· Presidente da
Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
· Membro da
Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
· Membro do
Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
· Membro da
Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
· Membro da
Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
· Comendador da
Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
· Colaborador
Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
· Colaborador
Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
· E-mail: hiramrsilva@gmail.com.
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Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – III
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