Terça-feira, 5 de maio de 2020 - 07h39
Bagé, 05.05.2020
Guerra
do Paraguai
As enfermidades e os desastres nos iam levando
camaradas e abrindo claros nas fileiras. Em compensação surgia, às vezes, um
novo habitante para aumentar a população das “Aldeias”. Não era muito raro
ouvir à noite depois do toque de silêncio um vagido de criança, que nascia. Na
manhã seguinte, fazia sua primeira marcha amarrada às costas de alguma “China”
caridosa ou da própria mãe, que, com a cabeça envolvida num lenço vermelho,
cavalgava magro “Matungo”, cuja sela era uma barraca dobrada, presa ao lombo
por uma “Guasca”. Esses “Filhos do Regimento” criavam-se fortes e, livremente,
cresciam nos acampamentos, espertinhos e vestidos de soldadinhos, com um gorro
velho na cabeça e comendo a magra “Boia” que com eles e as mães, repartiam os
pais, brutais às vezes, mas quase sempre amorosos e bons. (CERQUEIRA, 1980)
Embora a imprensa
nacional, diferente da paraguaia, tenha realizado uma cobertura por demais
incipiente da participação feminina no conflito, vale a pena reportar algumas
de suas breves notas não só pelo seu intrínseco valor histórico mas, sobretudo,
porque elas nos permitem “engarupar na
anca da história” e acompanhar, como o fizeram os leitores de outrora,
ainda que por breves momentos, a saga daquelas heroínas de outrora. Alguns
historiadores hodiernos estimam que a presença da mulher na Guerra do Paraguai
foi quantitativamente mais efetiva dentre todas as guerras desencadeadas na
América Latina.
Quantas patriotas viram seus familiares partirem para defender a Pátria afrontada? Muitas foram as “vivandières” brasileiras que escoltaram seus maridos até o Teatro de Operações apoiando-o tanto no combate como na retaguarda e outras tantas alistaram-se como enfermeiras, costureiras, ou foram escravizadas pelo inimigo...
Maria
Francisca da Conceição
Narra-nos o General J.
S. Pimentel de Azevedo:
LIX
Maria Curupaití
O Brasil teve uma
heroína na maior extensão do vocábulo. Chamava-se Maria Francisca da Conceição.
Casada com um Cabo-de-esquadra do Corpo de Pontoneiros do Exército, seu marido
teve de embarcar com as Forças ao mando do Tenente-General Conde de Porto Alegre
com destino ao assalto glorioso do Forte de Curuzú.
O chefe proibiu
terminantemente que as casadas acompanhassem seus maridos naquela expedição,
devendo todas ficar sob a proteção do grande Exército de Tuiuti.
Maria não desanimou.
Tinha treze anos e amava soberanamente o consorte. Dotada de ânimo varonil, de
resoluções prontas, decidiu-se a acompanhá-lo a todo o transe.
O embarque seria na
madrugada do dia 1° de setembro de 1866. Recorreu a um cabeleireiro do
acampamento, voltando com suas madeixas destruídas. Estava com o cabelo
reduzido à escova!
Despiu os ornatos
femininos, deu pregas em uma calça do marido, a blusa dos uniformes e arranjou
um boné. Insinua-se no meio das fileiras na ocasião do embarque.
Era um soldadinho
imberbe, de pequenina estatura. Ninguém deu pelo disfarce. Entra com o Batalhão
em fogo. Do primeiro ferido que cai, toma as armas – carabina, cinturão,
cartucheira etc. Avançam as tropas. Troa a artilharia, confundindo seus trovões
com o crepitar das armas portáteis.
O chão cobre-se de
mortos e nada detém a fúria a dos brasileiros atacantes que tomam de assalto o
Forte com seus treze canhões, em renhido combate. Na refrega, uma bala dá em
cheio na fronte do marido, que cai morto.
Maria engole as
lágrimas, jurando, sobre o peito quente do consorte, vingá-lo. Trava-se dentro
do recinto da Fortaleza horrível intervelo ([1]),
medonha luta de arma branca.
Ela embebe raivosa a
sua baioneta no peito amplo do paraguaio que lhe ficara mais próximo: abate-o.
E outro, e outro.
Terminada a refrega,
vem chorar, então, e dar sepultura ao corpo do seu amado. Aí, entre soluços,
repete a jura.
Toma lugar nas
primeiras filas dos assaltantes; bate-se nelas, penetrando no formidável
baluarte juntamente com os poucos que ali podem entrar.
É repelida com eles e,
na faina de matar, adianta-se. Um paraguaio de cavalaria, reparando no esforço
do rapazito, de estatura abaixo da mediana, investe-o de espada em punho.
A pobre rapariga cruza
a arma contra o cavaleiro inimigo: defende-se mal então. A ponta da espada
deste atinge-lhe a graciosa cabeça de moça.
Ela resvala
ensanguentada e vai cair fora da trincheira!
Os companheiros
acodem-na, e ela é salva da fúria do agressor que não podendo ultrapassar a
trincheira, para junto à banqueta do parapeito.
Só no hospital
conhecem-lhe o sexo. Espanto geral de todos. Cada qual refere às suas proezas
na luta, acrescidas com as vivas cores da simpatia, da admiração e do pasmo.
Chamaram-na Maria Curupaití. Tornou-se venerada. Era moça e era bonita.
Na
batalha de 03.11.1867, em Tuiuti, irrompe Conceição nas fileiras do 42° Corpo
de Voluntários da Pátria seus patrícios: ‒ e aí trava-se combate contra as
numerosas forças do adversário. O seu exemplo arrebata os homens, aos quais não
cessam de dizer, com o sorriso das heroínas nos lábios:
‒ Aqui está Maria Curupaití! Avante!
O epílogo desta
aventura vivido por uma bela e valente pernambucana, não poderia ser outro: com
o fim da guerra, deslocou-se para o Rio de Janeiro, onde vivia, ao tempo da
escritura deste relato, alquebrada e sem recursos. (PIMENTEL, 1897)
Maria
de Souza Florisbela
[...] com os lábios enegrecidos pela ação de morder o
cartucho ([2])
[...] Essa mulher se tivesse nascido na França ou na Alemanha, talvez figurasse
em estátua na melhor praça de suas grandes cidades, mas no Brasil, nem de leve
se tomou consideração o ato de seu espontâneo e magnífico desprendimento e
bravura.
(PIMENTEL, 1897)
(Antonio Augusto
Fagundes)
(À Memória de Florisbela
Boca-Negra,
uma Heroína Esquecida)
Florisbela
‒ boca negra de morder tantos cartuchos.
Espingarda
e baioneta são agora os teus luxos.
Ninguém
“cantou flor” mais bela no meio desses gaúchos!
"Su
nombre, no era Floduarda,
Ni tampouco Florentina,
Su
nombre era Florisbela... y ahijuna! ([3])
Que
Flor de china!".
Um
clarim toca “a degüello” ([4])
cacarejando um alarde.
Florisbela
troca as saias pelas armas de um covarde.
Nos
olhos de Florisbela há um fogo verde que arde
‒
O céu de Curupaití tem estrelas nessa tarde!
Florisbela
perde o irmão. Florisbela perde o pai.
Florisbela
fecha os olhos do quarto amante que cai.
Recebe
três ferimentos de uma lança de nhanduvai ([5])
Mas
segue sempre adiante, só o sangue é que se esvai
Misturando-se
no barro dos chacos do Paraguai.
Os
heróis que regressaram honrando nossa bandeira Ganharam tanta medalha, que
esqueceram a parceira.
Esqueceram
Florisbela do outro lado da fronteira,
A
Florisbela-soldado, a mulher, a companheira,
Que
no calor do combate sempre queimou de primeira,
A
primeira nos ataques para pular a trincheira,
Que
foi bruxa no entrevero e na cama feiticeira!
(FAGUNDES,
1981)
(Jayme Caetano Braun)
[...] "Su nombre, no era Floduarda,
Ni tampouco Florentina,
Su nombre era Florisbela
E ahijuna! Que FLOR de china!" [...]
O Gen Joaquim Silvério
de Azevedo Pimentel, no seu livro “Episódios
Militares (1887)” conta-nos:
Vamos falar de uma
heroína.
Quem no exército não
conheceu a intrépida soldada que no 29° Corpo de Voluntários da Pátria
armava-se com a carabina do primeiro homem que era ferido, e entrava em seu
lugar na fileira, sustentando o combate até o fim da luta, largando então a
arma agressiva, para tomar as da caridade, e dirigir-se aos hospitais de
sangue? Quem não se recorda dos atos de heroísmo dessa dedicada mulher que,
devendo fugir a uma morte certa, ao contrário, chegou certo dia a dizer a um
homem que ‒ tomasse suas saias e lhe entregasse as armas ‒ e isto no mais
encarniçado do ataque malogrado de Curupaití, a 22 de setembro de 1866?
E, no entanto... quem
hoje fala em Florisbela, ignorada, desconhecida, quando merecia uma epopeia?
Sempre nos hospitais de sangue marcava seu lugar à cabeceira dos doentes. Ela
adotou o uniforme de “vivandeira militar”;
único, com que a vimos durante todo o nosso tirocínio de cinco anos de guerra.
E... com mágoa o diremos: outras passaram por heroínas, cantadas em romances e
poesias variadas. E ela... nem numa simples menção viu figurar seu nome! Todo o
2° Corpo de Exército, às ordens do Conde de Porto Alegre, viu-a, admirou-a,
invejou-a. A Pátria esqueceu-a. Florisbela tinha a desventura de ser uma
transviada ([6]),
sem nome, nem família; mas se alguma mereceu o nome de heroína, ela deveria de
figurar também no 1° plano ‒ “cum laude”
([7]).
Era o valor, a
temeridade, o heroísmo personificado, a abnegação, a virtude marcial, a imagem
da Pátria em suma, desgrenhada no calor da luta! Quanto desalento não
confundiu, quanta bravura não inspirou! Disse um filósofo:
‒ Tirai da sociedade a mulher, e aquela será um
vácuo!
Florisbela ali
representava o amor da Pátria. Vê-la com os lábios enegrecidos pela ação de
morder o cartucho, era o mesmo que ter diante de si o anjo da vitória. Ela
entusiasmava-nos! A essa heroína do Paraguai também cabe a honra de figurar na
história.
D. Ana Neri, em cenário
diferente, exercia a nobre missão de seu sexo. Era a caridade e a paz. Era a
viúva honrada que espargia pelos necessitados tudo quanto a bondade de um coração
maternal é capaz de fazer por um filho. Muitas vidas salvou com seus desvelos e
carinhos. Estava envelhecida no serviço da Pátria.
A Pátria, porém,
cobriu-a com o manto de sua gratidão. Pagou a dívida, e ela, sem nada exigir,
sempre heroica, manteve-se na altura de seu caráter. Sempre bondosa e digna,
como brasileira ilustre que era. Não tinha a virtude de Ana Neri, é verdade,
nem os recursos de sua valente educação; mas sobrava-lhe o valor varonil, e
disputou-o, braço a braço, com os inimigos da Pátria, a cuja glória fê-los
sucumbir, sempre que se mediram com ela! Como a Madalena da Bíblia, merecia
achar um Cristo que penhorado por tamanha dedicação a amasse e venerasse!
Coube a honra e a
glória de ver nascer tão grande filha à heroica Província do Rio Grande do Sul.
O País inteiro há de dizer, com as vozes do coração:
‒ O Brasil vos admira e se orgulha de ter-vos por
sua muito devotada filha! (PIMENTEL)
Rubens Mário Jobim, no
seu livro “Sargento Fortuna e Outros
Contos” romanceia:
Florisbela traz os
lábios enegrecidos de tanto morder o cartucho. Com seu porte, febrilmente guia
os soldados. É olhada como heroína. Todos lhe ignoravam o passado. Junto, um
companheiro começou a fraquejar. Ela lhe estende a mão, num gesto animador:
‒ Vamos, Tonico! A pátria muito espera de ti.
[...] (JOBIM, 1950)
Segundo a “Nação Armada: Revista Civil-Militar
Consagrada à Segurança Nacional”, n° 36, de 1942:
Maria de Souza
Florisbela foi uma gaúcha, mulher do povo ([8]),
que acompanhou os batalhões brasileiros, nessa guerra. Se caía um soldado,
tomava-lhe a arma e entrava em combate. De uma vez chegou a dizer a um homem
que tomasse suas saias e lhe entregasse a espada. Máscula na guerra, era,
entretanto, de grande delicadeza no trato dos feridos e doentes.
D.
Ignez Augusta Corrêa de Almeida
O Major Antonio José de
Moura, em dezembro de 1869, resgatou, em Tibicuari, a prisioneira de guerra D.
Ignez Augusta Corrêa de Almeida, esposa do negociante Ricardo da Costa Leite,
que fora presa, juntamente com o marido e dois filhos, em 1865, em Corumbá, e
levada para Assunção.
Todos os seus
familiares sucumbiram às crueldades promovidas pelos militares paraguaios. D.
Ignez partiu, depois de receber auxílio pecuniário do Exército Brasileiro, para
Cuiabá onde chegou em fevereiro de 1870. Faleceu nos idos de 1887, depois de
permanecer totalmente reclusa, durante 17 anos, sem ter conseguido se recuperar
das sevícias e privações da Guerra.
[1] Intervelo: nos dicionários portugueses não existe ainda este
vocábulo, que nasceu para a nossa língua no tempo da Guerra do Paraguai. Vem do
termo hispano-americano “entrevero”,
que quer dizer – choque de duas forças de cavalaria. Tomando-o de nossos
aliados, afeiçoamo-lo à índole de nosso idioma. Aceito o termo e geralmente
empregado no Exército, demos-lhe acepção mais lata e vigorosa. Intervelo significa
nessa Campanha a briga ou a luta promíscua de muitos indivíduos, a desordem no
combate, a mistura de inimigos encarniçados e cegos pelo ódio, quer fossem de
cavalaria ou de infantaria. Chamava-se à isso luta “intervalada”. O Dr. Taunay empregou “entreverados”, servindo-se da expressão genuína espanhola, talvez
sem se lembrar que o vocábulo já tinha foros de cidade entre nós, e estava
ajeitado à língua portuguesa. (PIMENTEL)
[2] O homem tinha que retirar o cartucho da patrona, cortá-lo com os
dentes na parte torcida e manter as necessárias precauções para que não caísse
a pólvora no chão; em seguida, introduzir a parte rasgada do cartucho na boca
do cano, fazendo cair toda a pólvora no fundo do cano; depois, tirar o cartucho
e introduzir o projétil até o estojo do cartucho, rasgar o invólucro exterior,
arrancando o estojo que era jogado fora; fazer com que o projétil descesse um
pouco por pressão do dedo indicador.
Isso feito, tirar a vareta do
canal e introduzi-la, na vertical e de cabeça para baixo, na boca da arma e,
pressionando a bala, fazê-la descer até assentar-se sobre a carga, dando, em
continuação, uma pequena pancada com a vareta sobre o projétil, para ajustá-lo
bem à carga; finalmente, retirar a vareta e colocá-la no respectivo canal, na
arma. (DUARTE, 1981)
[4] “A degüello”: procurando
causar o máximo de danos ou prejuízo à pessoa ou coisa sobre a que se realiza
determinada ação.
Bibliografia:
CERQUEIRA,
Dionísio. Reminiscências da Campanha do
Paraguai – Brasil – Rio de Janeiro, RJ – Biblioteca do Exército Editora,
1980.
DUARTE,
Paulo de Queiroz. Os Voluntários da
Pátria na Guerra do Paraguai – O Armamento da Infantaria – Brasil – Rio de
Janeiro, RJ – Biblioteca do Exército, 1981.
FAGUNDES,
Antônio Augusto. Com a Lua na Garupa:
Florisbela do Paraguai – Brasil – Porto Alegre, RS – Editora: Martins
Livreiro, 1981.
JOBIM,
Rubens Mário. Sargento Fortuna e Outros
Contos – Brasil – Rio de Janeiro, RJ – Biblioteca do Exército Editora,
1950.
PIMENTEL,
Joaquim Silvério de Azevedo. Episódios
Militares – Brasil – Rio de Janeiro, RJ – Editor Tipografia a Vapor A. dos
Santos, 1887.
Solicito
Publicação
(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de
Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor
e Colunista;
· Campeão do II
Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
· Ex-Professor
do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);
· Ex-Pesquisador
do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
· Ex-Presidente
do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
· Ex-Membro do
4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
· Presidente da
Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
· Membro da
Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
· Membro do
Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
· Membro da
Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
· Membro da
Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
· Comendador da
Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
· Colaborador
Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
· Colaborador
Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
E-mail: hiramrsilva@gmail.com
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – X
Bagé, 20.12.2024 Continuando engarupado na memória: Tribuna da Imprensa n° 3.184, Rio, RJSexta-feira, 25.10.1963 Sindicâncias do Sequestro dão e
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – VI
Silva, Bagé, 11.12.2024 Continuando engarupado na memória: Jornal do Brasil n° 224, Rio de Janeiro, RJ Quarta-feira, 25.09.1963 Lei das Selvas T
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – IV
Bagé, 06.12.2024 Continuando engarupado na memória: Jornal do Brasil n° 186, Rio de Janeiro, RJSábado, 10.08.1963 Lacerda diz na CPI que Pressõessã
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – III
Bagé, 02.12.2024 Continuando engarupado na memória: Jornal do Brasil n° 177, Rio de Janeiro, RJQuarta-feira, 31.07.1963 JB na Mira O jornalista H