Quinta-feira, 7 de maio de 2020 - 09h06
José Alves no seu livro
“Traços Biográficos da Heroína Brasileira
Jovita Alves Feitosa”, editado em 1865, nos apresenta a versão, um tanto
romanceada, mas bastante pormenorizada, da breve trajetória de vida desta jovem
que deixou profundas marcas nos corações e mentes de nossos patrícios de
outrora.
Antes de Começar
Levantem-se embora os “Espíritos Mofadores” condenando estas
páginas, inspiradas pelo sentimento nacional; nós unicamente nos contentamos de
ter seguido os grandes exemplos, e de não ter lançado no olvido o nome de uma
brasileira, cujo patriotismo espontaneamente gerado em seu peito, e amaldiçoado
pelos “Indiferentes”, foi
concentrar-se em sua alma para reviver em melhores tempos. A geração futura nos
fará justiça.
Do Autor
I
Ergueu-se o altar da
Pátria mais alto do que nunca. O sentimento nacional, ofendido pelos ultrajes
desse déspota do Paraguai, se manifestou de uma maneira estrondosa. Os lamentos
dolorosos dessas vítimas, sacrificadas às ambições de um povo estúpido e sanguinário,
fizeram reunir junto do Trono Imperial todos os corações verdadeiramente
brasileiros.
O espírito de
patriotismo, que parecia adormecido, levantou-se grande e sublime. Milhares de
voluntários moços, e de um futuro esperançoso surgiram como que por encanto de
todos os ângulos do Império. Operou-se um desses prodígios, que eternizam e
cobrem de glória os belos feitos de uma nacionalidade briosa. Todos se
apresentam trazendo suas oferendas, seu ouro, seus serviços, e mais que tudo ‒
seus próprios filhos!
Belas recordações dos
tempos idos! Exemplos sublimes para o futuro! O altar da Pátria, coberto de
prendas preciosas, ilustrado por atos de civismo, oferece um desses espetáculos
fascinadores, que esperta a imaginação, infundindo o gênio marcial no peito de
seus cidadãos. A indignação pública tendo se tornado extrema foi atingir
cruelmente o coração ardente de uma filha obscura do povo.
Uma menina de 18 anos
incompletos, tomando toda a coragem diante desses acontecimentos vertiginosos,
que iam arrastando os ânimos para um martírio, que já se prolongava,
apresentou-se pobre, e singela, tendo n’alma o sentimento generoso das mulheres
espartanas, ajoelhou-se ante o altar da Pátria, e ai prestou um juramento
solene de amor e dedicação eterna!
Tal era o
poder da vontade, que ela procurava sobrepujar o melindre da sua natureza
fraca, querendo atirar-se aos perigos da guerra entre os gritos dos
combatentes; e deste modo assistir ao derradeiro expirar de uma República
ingrata!
Fez votos de tomar as
armas para bater os inimigos, e de nunca abandoná-las senão nessa hora extrema
em que ela também soltasse o último alento de vida. E ela se compenetrou de
todo esse sentimento. Teve coragem bastante para o sacrifício!
II
Jovita Alves Feitosa!
Eis a heroína brasileira, segundo a consagração popular. Nasceu no dia
08.03.1848, debaixo da atmosfera puríssima desse lindo céu do Ceará, em
Inhamuns, numa casinha pobre, situada lá na povoação chamada “Brejo Seco”.
Ai se criou junto de
sua mãe D. Maria Rodrigues de Oliveira, e de seu Pai Simeão Bispo de Oliveira,
filho de Simões Dias, natural da Bahia ([1]).
Sua vida passou-se esquecida nesses brincos da infância junto dos sorrisos de
seus irmãos, dos quais conserva vivas saudades. Bem cedo essas alegrias da
infância foram perturbadas pelo pranto!
Em 1860, perdeu sua
mãe, morta pela “cholera morbus”; e
assim como Carlota – o Anjo da Revolução ([2]),
achou-se logo privada das carícias maternas. Havia portanto um vácuo no seu
coração, que mais tarde precisava ser preenchido.
Corriam os sucessos
nessa luta entre o Brasil e o Paraguai. Deixando o lar paterno veio para casa
de um tio, chamado Rogério, mestre de música, em Jaicós, com destino de se
dedicar a essa arte. A repercussão dos sofrimentos da Pátria foram despertá-la
nesse estreito horizonte, onde ela vivia longe do Sol da Corte.
O desespero público, a
narração triste e sanguinolenta das devastações, pilhagens, e atrocidades
cometidas pelas forças invasoras do Paraguai, impressionou-a fortemente.
Um dia ao cair do
crepúsculo pelo infinito, seu espírito magoado concentrou-se nesse quadro
elegíaco ([3]),
que mais se apura no silêncio dos sertões, e sua imaginação foi assaltada pelas
cenas de sangue e de miséria, infligidas pelo déspota do Paraguai. Nem as flores,
nem o romper das alvoradas, nem mesmo o sorriso da família, nada deleitava o
seu espírito. Era preciso abandonar a pobre cabana de seu velho pai, tesouro
precioso dos melhores tempos da vida. Era forçoso que ela se revestisse de toda
a coragem para deixar a doce habitação de seus dias de infância, esses sítios,
onde cada flor lhe marcava uma lembrança querida, e dizer adeus aos pássaros da
campina, aos crepúsculos da montanha, a tudo enfim dizer adeus! Decidiu-se
sempre e tomou uma resolução firme.
Tinha diante de si 70
léguas para caminhar! Era preciso muita coragem para afrontar os perigos dos
campos, o silêncio das estradas, o terror das noites, e garantir a sua
fragilidade de todos os ataques da torpeza, e do vício. Admirável sacrifício!
Não lhe faltaram as forças para realizar essa marcha tão tormentosa.
Logo que chegou a
Teresina, capital do Piauí, tomou trajes grosseiros de homem, cortou os cabelos
com uma faca, tomou um chapéu de couro, e assim vestida dirigiu-se ao Palácio
da Presidência, pedindo para ser alistada voluntário da Pátria. A este respeito
ouçamos o que diz “A Imprensa” de
Teresina ([4]):
[1] No interrogatório a que procedemos particularmente disse-nos que
era filha de Maximiano Bispo de Oliveira, e de D. Maria Alves Feitosa. Nós nos
cingimos ao depoimento feito perante o Dr. Chefe de Polícia do Piauí. (COARACY,
1865)
[2] Gonzaga ou a Revolução de Minas – peça teatral Castro Alves.
[3] Elegíaco: de profunda tristeza.
[4] A Imprensa n° 1
- Quinta –feira, 27.07.1865 – Teresina, Piauí.
A Imprensa n° 01
Teresina, Piauí – Quinta –feira, 27.07.1865
Voluntária da Pátria – Apresentou-se nesta cidade uma interessante rapariga de 17 anos de idade, de tipo índio, natural de Inhamuns, vinda de Jaicós, desta Província, trajando vestes de homem rude, e ofereceu-se ao Exm° Presidente como “Voluntário da Pátria”.
Aceito como tal, e pouco depois, na rua ou na casa do mercado, descoberto o seu sexo; é levado à polícia e interrogado. Confessa o seu disfarce, e envergonhada – chora, porque teme não poder mais seguir seu intento, e pede encarecidamente que a aceitem como “Voluntário”.
Seu maior desejo, diz ela, é bater-se com os monstros que tantas ofensas têm feito às suas irmãs de Mato Grosso; é vingar-lhes as injúrias ou morrer nas mãos desses tigres sedentos. Fazendo-se-lhe sentir a fraqueza de seu sexo, só lamenta hão ser aceita. S. Exª acedeu a tão ardentes desejos. Hoje a vimos de saiote e farda com as insígnias do 1° sargento. Mostra-se satisfeita e resoluta sempre. Não lhe causam emoção os perigos da guerra.
Talvez que a nossa voluntária faça atos de bravura, e qual outra Maria Quitéria de Jesus, da Guerra da Independência na Bahia, venha a merecer, como aquela mereceu do Primeiro Reinado, uma banda de oficial e a venera ([1]) de uma ordem honorífica. Sobre o mesmo assunto lê-se na “Liga e Progresso” da mesma cidade:
Liga e Progresso n° 10? ([2])
Teresina, Piauí – ??.07.1865
Voluntária da Pátria – Em um destes últimos dias apareceu no Palácio da Presidência, pedindo para ser alistado “Voluntário da Pátria”, um jovem de 17 anos de idade, pouco mais ou menos, estatura regular, vestido simplesmente de camisa e calça, e trazendo na mão um chapéu de couro, S. Exª o Sr. Dr. Francklin Dória, aceitando-o como tal, lhe ordenara que no dia seguinte se apresentasse para ser aquartelado. Algumas pessoas, porém, notaram e ficaram prevenidas sobre os sinais característicos desse jovem Voluntário, que mais lhes indicavam ser uma mulher do que um homem, e não o perderam mais de vista. Às 17:00 do dia designado para o aquartelamento do jovem Voluntário, uma multidão imensa o acompanhava para a casa do Sr. Dr. Chefe de Polícia, onde chegando declararam algumas pessoas que esse indivíduo, que se dizia “Voluntário da Pátria”, era uma mulher disfarçada em homem. O Sr. Dr. Freitas mandou entrar o suposto voluntário, e procedeu-lhe ao interrogatório que aqui damos publicidade.
« Interrogatório »
Auto de perguntas a um “Voluntário da Pátria”, que foi conhecido ser mulher. Aos nove dias do mês de julho do ano do nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo de mil oitocentos e sessenta e cinco, nesta cidade de Teresina em casa da morada do meritíssimo Dr. Chefe de Polícia José Manoel de Freitas, comigo escrivão do seu cargo, abaixo nomeado, ai achando-se presente Antônio Alves Feitosa, livre de ferro e sem coação, por ele Dr. Chefe de Polícia da Província, “ex officio” ([3]), lhe foram feitas as seguintes perguntas:
Perguntado qual o seu nome, idade, estado, naturalidade, filiação, meios de vida e residência.
Respondeu chamar-se Antônia Alves Feitosa, conhecida desde menina pelo apelido de Jovita com dezessete anos de idade, solteira, natural dos Inhamuns, da Província do Ceará, ser filha de Simeão Bispo de Oliveira e de Maria Rodrigues de Oliveira, viver de suas costuras, ser moradora no Brejo Seco, no Inhamuns, e somente de sete meses para cá na Vila de Jaicós, desta Província.
Perguntado quando saiu da Vila de Jaicós para esta capital, que destino tinha?
Respondeu que saiu a vinte do mês passado, diretamente para esta capital, com o único fim de ver se podia ser aceita para a guerra no Paraguai.
Perguntado em companhia de quem veio?
Respondeu que veio para aqui com os Voluntários que trouxe o Sr. Capitão Cordeiro, tendo declarado aos mesmos qual sua intenção.
Perguntado se não era amazia de algum dos voluntários com quem veio?
Respondeu que não tinha relações com esses homens, e que os acompanhou somente porque vinham também para a capital, tendo por muitas vezes declarado-lhes, quando indagaram da sua viagem ‒ que se ia apresentar como, “Voluntária da Pátria”.
Perguntado porque tomou, roupa de homem, mudando assim o seu traje natural?
Respondeu que tomou roupa de homem, porque as pessoas a quem declarava sua intenção, diziam-lhe ‒ que, como mulher, não poderia ser aceita no Exército. E então como fosse grande o desejo, que tem de seguir para a Guerra cortou seus cabelos com, uma faca, pedindo depois a uma mulher que os aparasse bem rente, e tomando roupas de homem; foi assim apresentar-se ao Exm° Sr. Presidente da Província, e rogou-lhe que a mandasse alistar como “Voluntária da Pátria”.
Perguntado como descobriu-se ser mulher?
Respondeu que estando na casa da feira, hoje pelas quatro horas da tarde, uma mulher vendo-a com as orelhas furadas, dirigiu-se a ela respondente ([4]) e a palpando-lhe os peitos, apesar de sua oposição, e de ter atados os seios com uma cinta, a referida mulher pôde conhecer o seu sexo, e imediatamente descobriu-a, dando parte ao inspetor do quarteirão, que mandou-a conduzir à polícia por dois soldados.
Perguntado porque chorava quando se viu na presença da autoridade?
Respondeu que chorava porque se via em trajes de homem em presença de muitas pessoas, e teve vergonha disso; e mais chorava também porque supunha que sendo descoberta não seria aceita para a guerra.
Perguntado se sabia atirar, e se tem disposição para sofrer os trabalhos da guerra? Respondeu que não sabia carregar a arma, mas que sabe atirar, e tinha disposição para aprender o necessário e também para suportar os trabalhos da Guerra, e até para matar o inimigo.
Perguntado se o governo a não aceitasse como soldado, se está disposta a seguir sempre para o Sul, afim de ocupar-se em trabalhos próprios do seu sexo?
Respondeu que em último caso aceitará isso, porém que o seu desejo era seguir como soldado, e tomar parte nos combates, como “Voluntária da Pátria”.
Perguntado se seus pais são vivos ou mortos, e se conhece alguns de seus parentes, e quem sejam eles?
Respondeu que não tem mais mãe; que seu irmão mais velho de nome Jesuíno Rodrigues da Silva já seguiu para o Sul; que seu pai ainda vive, tendo consigo irmãos menores dela respondente, no lugar Brejo Seco, já referido.
Perguntado se sabia ler e escrever? Respondeu que sabe, mas tudo mal.
E nada mais respondeu e nem lhe foi perguntado: deu-se por findo este auto de perguntas, depois de lido e o achando conforme, assina com o Juiz, e rubricado pelo mesmo; do que dou fé.
Eu Raymundo Dias de Macedo, escrivão, o escrevi
e assina ‒ Antônia Alves Feitosa.
É sobre modo notável que no sexo feminino, onde naturalmente se aninham o medo e o pavor, apareça esta exceção à regra geral, encarando com verdadeiro denodo e coragem os rigores de uma Guerra! Do interrogatório que se acaba de ver e diversas interpelações que particularmente se tem feito à esta brava jovem, ainda se não pôde coligir que outro desígnio, a não ser o nobre fim de pugnar pela defesa da pátria, a tivesse trazido da Vila de Jaicós a 70 léguas distantes desta cidade. É um heroísmo a toda aprova. (COARACY, 1865) – Continua --
Bibliografia:
ASSIS BRASIL. Francisco de Assis Almeida Brasil. Jovita: Missão Trágica no Paraguai – Brasil – Rio de Janeiro, RJ – Notrya Editora, 1993
COARACY, José Alves Visconti. Traços Biográficos da Heroína Brasileira Jovita Alves Feitosa – Brasil – Rio de Janeiro, RJ – Tipografia Imparcial de Brito & Irmão, 1865.
Solicito Publicação
(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;
· Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
· Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);
· Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
· Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
· Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
· Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
· Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
· Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
· Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
· Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
· Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
· Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
· Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
· E-mail: hiramrsilva@gmail.com.
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – X
Bagé, 20.12.2024 Continuando engarupado na memória: Tribuna da Imprensa n° 3.184, Rio, RJSexta-feira, 25.10.1963 Sindicâncias do Sequestro dão e
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Silva, Bagé, 11.12.2024 Continuando engarupado na memória: Jornal do Brasil n° 224, Rio de Janeiro, RJ Quarta-feira, 25.09.1963 Lei das Selvas T
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – IV
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Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – III
Bagé, 02.12.2024 Continuando engarupado na memória: Jornal do Brasil n° 177, Rio de Janeiro, RJQuarta-feira, 31.07.1963 JB na Mira O jornalista H