Domingo, 10 de maio de 2020 - 09h17
Bagé, 12.05.2020
Chama a atenção de como
a mídia pretérita e historiadores hodiernos enaltecem a coragem da suposta “heroína”, por ela simplesmente ter se
apresentado como “Voluntária da Pátria”,
sem jamais ter participado efetivamente de qualquer combate e deixa de dar a ênfase
adequada àquelas que partiram para a Guerra como enfermeiras e ou combatentes
de 1ª linha.
Voltemos, porém, a
outra versão, talvez um tanto romanceada, da nossa Jovita mas que talvez sirva
para elucidar o que se passava no íntimo desta conturbada criatura do agreste
nordestino.
O empresário, escritor
e dramaturgo Francisco Gaudêncio Sabbas da Costa, nasceu em São Luís (MA), em
25.11.1829, e faleceu na sua cidade natal nos idos de 1874. Sabbas da Costa
escreveu a novela Jovita, em homenagem à nossa “Voluntária da Pátria”, em três capítulos que reproduziremos, a
seguir:
Semanário Maranhense n° 20
São Luís, MA – Domingo, 12.01.1868
Jovita
(Páginas 06 e 07 )
I
À margem do rio
Parnaíba erguia-se uma choupana coberta de palha, triste habitação de uma
família pobre. Era a do Sr. Feitosa que se compunha de sua mulher, Luiza, e sua
filha, ainda menina, a quem deram educação parca, relativa aos seus minguados
recursos.
O Sr. Feitosa cultivava
a terra, e dela tirava os meios para a subsistência da família; e a Srª Luiza
vivia fazendo rendas e crivos ([1]),
com o que ganhava pouco, mas que sempre chegava para ajudar seu marido nas
despesas da casa.
A filha de Luiza e de
Feitosa coadjuvava seus pais no que podia, sendo ela a alegria da casa e as
esperanças paternas.
Por mais que trabalhassem,
pais e filha, os recursos de que contavam diminuíam muito, para acobertá-los
das calamidades da fortuna. Isto concorria para tirar a alegria dos habitantes
da choupana, e a pouca felicidade ali fruída não durou por muito tempo.
A desgraça que acenava
de perto invadir aquele recinto com seu cortejo de má catadura, parecia querer
aproximar-se mais e oferecer aos habitantes da choupana os seus terríveis,
efeitos!
Ela chegou enfim!
A morte arrebatara o
Sr. Feitosa e a Sr. Luiza enlouquecera! Sem pai e com a sua mãe inutilizada
pobre filha de tão desventurados pais, resistira aos fatais golpes com a alma
alquebrada pela dor...
Os olhos cansaram de
tanto chorar, pois parecia que todos os males caíram de uma só vez contra essa
débil criatura! Era uma tenra planta pendida à borda do abismo! Tão moça, o seu
coração infantil acostumou-se a sofrer as desgraças deste mundo e a perda de
ilusões e de quimeras!
Por muito tempo a
infeliz órfã tratou de sua mãe sem que lhe faltasse cousa alguma, necessária a
sustentar-lhe a vida, até que os escassos recursos legados por seu pai
exauriram-se todos, e nada mais restava de fortuna a essas desventuradas
esquecidas de Deus! Nada mais restava a filha do que mendigar para sua mãe, e
mesmo para salvar da fome e da morte inevitável a pobre moça já submergida em
tantas misérias! Não era a própria miséria que mais amedrontava a pobre órfã,
não; era o desgraçado estado de sua mãe o que mais a afligia.
Resoluta e arrastada
pela necessidade, saiu a pedir esmolas pelas portas da cidade. Nessa infeliz
peregrinação, encontrou a mísera órfã um rapaz elegante e bem parecido ([2]),
que a achando bonita dirigiu-lhe meigamente a palavra:
‒ Como sois bela, menina!
‒ O Sr. fala comigo?
‒ Como se chama?
‒ Jovita Feitosa, para o servir, respondeu a
filha de Luiza.
‒ Jovita! É um nome bonito como sua dona... Aonde
mora?
‒ Bem longe daqui... À margem do rio, em uma
choupana quase a cair... aqui todos o sabem...
‒ Ah! é a menina a filha da louca Luiza?
‒ Eu mesma, meu senhor.
O moço deu-lhe algumas
moedas de prata dizendo:
‒ Sei que necessita dar à sua mãe o alimento
preciso ao corpo e a vida. Aceite o que lhe ofereço com coração amigo, e se me
der licença levarei a sua casa com que a dispense de pedir de porta em porta o
pão de cada dia.
‒ Mas o Sr. não me conhece, e como se faz tão
generoso assim?
‒ Para fazer bem não carece de conhecimento entre
aquele que pratica e o que recebe o benefício. Demais, eu tenho minha condição
a lhe impor.
‒ Qual é?
‒ Me há de prometer não sair mais de casa... sem
necessidade.
‒ E minha mãe?
‒ Eu farei com que nada lhe falte... Agora está
contente comigo?
O moço já ameigava a
mão de Jovita, que envergonhada permaneceu calada.
‒ Olhe para mim, tornou o jovem sedutor,
apertando a mão da triste órfã, tem vergonha de me encarar?
Jovita ergueu o rosto,
encarou o mancebo, mas seus olhos tiveram de baixar, porque os do seu protetor
paresiam magnetiza-la a seu pesar.
‒ Responda, promete não sair mais de casa, sim?
‒ Sim, senhor, respondeu Jovita.
‒ Recolha-se a casa e espere-me hoje, à tarde,
que levarei a alegria à sua habitação. Não a quero ver assim tão bela e
maltratada pelo rigor da pobreza.
‒ Mas... porque se interessa tanto por mim? Eu
que nem ainda sei como o senhor se chama!...
‒ Isso que tem? Sois pobre e os pobres são todos
meus conhecidos, ainda que sejam encontrados por mim pela primeira vez.
‒ Então sois o anjo do bem?
‒ Ainda é cedo para os sinais de gratidão.
Recebei... é um amigo que oferece, e oxalá não o maldigais nunca.
O mancebo dera urnas
moedas de prata, e Jovita as recebeu como dadas pela verdadeira caridade.
Jovita seguiu caminho
da choupana, comprando de passagem o que carecia para sua mãe, e para si. Ia
calada, mas seu pensamento entretinha-se no protetor que lhe, parecera tão
extraordinário!
O moço filantropo viu
Jovita desaparecer pelas ruas guarnecidas de matagais e com o sorriso
triunfante disse consigo:
‒ É minha! Botão que o rocio ([3])
matutino deve borrifar para desabrochar aos primeiros raios do Sol! Vais
pertencer-me, Jovita, porque a necessidade é inimiga da virtude, e a
necessidade esmaga-te com suas garras infernais!
O mancebo recolheu-se à
sua casa, alegre e risonho calculava com a felicidade futura, que ele compraria
à poder do ouro. [Continua]
Sabbas da Costa.
(SEMANÁRIO MARANHENSE N° 20)
Semanário Maranhense n° 21
São Luís, MA – Domingo, 19.01.1868
Jovita
(Continuação do n° 20, Páginas 03 e 04 )
II
O moço que encontrou-se
com Jovita, era Alfredo d’Almada, filho de Roberto d’Almada rico fazendeiro de
gado no Piauí. Era filho único, e, contando com a riqueza paterna, divertia-se
em requestar, seduzir e desgraçar meninas órfãs. Pobres! À tarde, como
prometera a Jovita, apareceu na casa da sua protegida, tanta fartura deixou
sair da cornucópia da abundância, que a miséria fugiu espavorida!
..........................................................................
As visitas do mancebo
em casa da louca Luiza, eram constantes, e tornaram-se amiudadas. Jovita se
tinha deixado prender a esse homem, não pelos laços do amor, mas sim pelas
cadeias da gratidão. Não levou muito tempo para o libertino completar sua obra
de desgraça. O galã deste drama era tirano de tragédia, e Jovita se deixara
arrastar para a desonra, que a esperava no fim deste estado de coisas, que o
desejo de gozar e a falta do amor tornavam pouco duradouro.
Por algum tempo logrou
o libertino desses momentos de felicidade que Jovita lhe proporcionava à custa
de sua virgindade, sem que sentisse os doces, atrativos do amor; mas essa
ventura sem dificuldade gozada, pacífica e sem obstáculos cansou o homem afeito
às empresas difíceis e arriscadas.
O sedutor acabou por
abandonar sua vítima, à arremessando para a prostituição, maior de todos os
males que ela podia suportar ao mundo. Jovita debalde o esperou uma, duas e
três tardes: Alfredo d’Almada não apareceu! A desconfiança entrou no coração da
filha da louca! Ela chorava lágrimas de vergonha.
Quinze dias ainda a
desprezada teve esperanças de ver seu sedutor, e nunca mais o viu entrar em sua
casa, onde fora tão liberal e protetor, onde encontrara a probidade e a
virtude!
Jovita escreveu-lhe a
seguinte carta:
Sr. Alfredo. Quando o
encontrei pela primeira vez no meu caminho de miséria, julguei-o a Providência,
pelos socorros, que nessa ocasião dignou-se dispensar-me, mas muito inocente
era eu, que ignorava os meios usados pelos libertinos para abismarem na
prostituição as vítimas que pretendem imolar no altar dos prazeres mundanos!
Tive quem me avisasse
do laço que o senhor me armava, e que a gratidão me obrigou a não ver. O Sr.
iludia-me sorrindo, dourava-me o presente com uma felicidade efêmera para
legar-me um futuro amargo como as fezes do opróbrio ([4]).
Do que isso, antes a miséria em que me achava! Conseguiu o senhor aquilo que só
o amor sabe obter de um coração de mulher...
Se a gratidão cegou-me,
Deus perdoe-me. Não é a sua piedade que vou invocar, nem é a sensibilidade do
seu coração não, é o dever de pai, que reclamo, em favor de seu filho que deve
breve nascer. O senhor é rico e poderoso, não deixe que na miséria viva e
morra, como eu, o filho que é seu, em cujas veias corre o sangue de seus avós.
Nada quero, nada peço, nada exijo para mim do senhor a quem aborreço e detesto.
Os seus benefícios
paguei-os bem caros, estamos quites, mas seu filho não deve sofrer
infelicidades de sua desgraçada mãe. É só para seu filho, que imploro a sua
piedade, os seus benefícios. Aonde o devo esperar? Como obter a sua resposta?
Se não me quer ver mais na casa que desonrou para todo o sempre, marque o lugar
em que o devo encontrar. Jovita
Esta carta não teve
resposta alguma!
Assim como a semente dá
o arbusto, o arbusto deita a flor e a flor transforma-se em fruto, assim
Jovita, que recebera o germe de criação, no fim de nove meses teve de dar a luz
a uma criança, filha da mais negra traição. A moça inocente fizera-se mulher
culpada! A virgem de outrora tornara-se mãe!
Jovita metera o
recém-nascido em uma cesta de vime e escreveu o seguinte bilhete:
‒ Sr. Alfredo d’Almada, remeto-lhe o fruto de
sua caridade cristã. Jovita.
Este bilhete e a cesta
com a criança foram remetidos ao jovem libertino em casa do pai dele. Foi o
velho pai de Alfredo quem recebera o lindo mimo, que Jovita mandara a seu
filho, e lendo o bilhete acabou por amarrotá-lo. Olhando para a criança, que
dormia no seu berço de enjeitado, sentiu bater-lhe o coração já velho, e o
recebeu dizendo:
‒ Eis porque Alfredo esbanja-me tanto
ouro!... Mal sabe a mãe desta criança, que o seu sedutor castiguei-o, mandando
para a guerra a bater paraguaios. Ella e eu estamos vingados.
O velho Almada chamou
um escravo e entregando-lhe uma bolsa ordenou-lhe que fosse levar à infeliz
Jovita. O escravo saiu e voltou trazendo o mimo que seu senhor mandara à filha
de Luiza, e informando de que a mãe da criança tinha desaparecido, levando a
velha louca, e abandonando a choupana despida completamente.
Despertara o
recém-nascido, e seus primeiros risos foram para seu avô, que tratou de criar o
netinho, reconhecendo-o como filho do seu filho. [Continua] Sabbas da Costa.
(SEMANÁRIO MARANHENSE N° 21)
Bibliografia:
SEMANÁRIO
MARANHENSE N° 20. Jovita – I – Brasil – São Luís, MA – Semanário Maranhense n°
20, 12.01.1868.
SEMANÁRIO
MARANHENSE N° 21. Jovita – II – Brasil – São Luís, MA – Semanário Maranhense n°
21, 19.01.1868.
Solicito
Publicação
(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de
Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor
e Colunista;
· Campeão do II
Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
· Ex-Professor
do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);
· Ex-Pesquisador
do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
· Ex-Presidente
do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
· Ex-Membro do
4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
· Presidente da
Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
· Membro da
Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
· Membro do
Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
· Membro da
Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
· Membro da
Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
· Comendador da
Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
· Colaborador
Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
· Colaborador
Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
· E-mail: hiramrsilva@gmail.com.
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Bagé, 02.12.2024 Continuando engarupado na memória: Jornal do Brasil n° 177, Rio de Janeiro, RJQuarta-feira, 31.07.1963 JB na Mira O jornalista H