Terça-feira, 26 de novembro de 2019 - 09h57
Bagé, 25.11.2019
Zé Júlio
José Júlio de Andrade nasceu em, 1862, no Município de
São Francisco de Uruburetama, hoje Itapajé, CE. O Coronel José Júlio veio para
a Amazônia, em 1879, e com apenas 17 anos no apogeu do ciclo da borracha e
instalou-se na região do Jarí, em 1882, onde conseguiu, graças a tramoias
políticas, dominar o comércio extrativista da região e transformar-se em um
grande latifundiário tomando posse de uma área de aproximadamente 16.000 km2
que tinha como principal via de acesso o Rio Jari.
Revolta no Jari
(Compositores: Aureliano Neck e Nonato Soledade)
Às
margens do Rio
O
Beiradão surgiu
Era
gente de todo lugar
Querendo
explorar
Num
sistema de semiescravidão
Trabalhavam
sempre devendo ao patrão
Zé
Cesário vendo a situação
Liderou
a revolta da região
Os
índios com medo
Dos
novos habitantes
Fugiram
para matas distantes. [...]
Em 1928, os extrativistas revoltaram-se contra o
Coronel, tomaram um barco e foram até Belém denunciar as péssimas condições de
trabalho e os crimes praticados pelo Coronel José Júlio e seus capatazes.
Relata-nos o historiador Lúcio Flávio Pinto:
A população de Belém só tomou conhecimento do inferno
que era trabalhar no Jari quando dezenas de cearenses, liderados por Cesário
Medeiros, sublevaram-se, tomaram um navio e obrigaram o dono da propriedade a
aceitar a fuga em massa.
Chegaram a capital aliviados: haviam conseguido
abandonar o cativeiro disfarçado nas terras do Coronel José Júlio de Andrade.
(PINTO)
Estas denúncias só surtiram efeito quando, após a vitória
do movimento de 1930, o Governo Federal nomeou Joaquim de Magalhães Cardoso
Barata como interventor do Pará (novembro de 1930 a abril de 1934). O Tenente
Barata determinou a prisão do Cel José Júlio que resolveu refugiar-se no Rio de
Janeiro. Em 1948, Zé Júlio vendeu suas propriedades para um grupo de quatro
comerciantes portugueses e um brasileiro, que deram continuidade ao sistema de
extrativismo.
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O Ceará, n° 935
Fortaleza, CE –
Domingo, 22.07.1928
õõõõõõõ
² A Escravidão dos Cearenses na Amazônia ²
õõõõõõõ
Nas Senzalas do Senador José Júlio ‒ Os Horrores do Jari ‒ A Revolta
dos Escravos Brancos ‒ Um Escravo De Arumanduba Fala ao “O Ceará”
õõõõõõõ
Através de transcrições
dos nosso brilhante colega “O Estado do
Pará”, que tivemos a oportunidade de publicar em mais de uma edição do “O Ceará”, já se acha o público ao par da
revoltante escravidão em que viviam, no extremo norte, centenas de homens, em
sua grande maioria cearenses. O que é mais doloroso nisso tudo é que o traficante
de escravos nasceu no Ceará, terra da luz porque liderou com galhardia o
movimento libertador. É ele o senador José Júlio, filho da riquíssima zona
cearense de Uruburetama. Tendo partido muito moço para o Pará, ali fez grande
fortuna, hoje calculada em cerca de 30 mil contos de réis sendo possuidor de
numerosas propriedades em toda a região do Jari. Entre essas propriedades
destacam-se, pelo seu valor produtivo, as seguintes, localizadas no município
de Alenquer: Santa Isabel, [...]. Tendo conseguido esta fortuna à custa dos
mais condenáveis expedientes, fazendo escravos os conterrâneos que buscavam as
suas terras para ganhar a vida, o Senador José Júlio de Andrade tornou-se um
político influente naquele Estado. Já conhecem os nossos leitores a revolta dos
escravos do Jari, chefiado por José Cesário de Medeiros. Sabendo que chegara à
Fortaleza um dos escravos do senador José Júlio procuramos ouvi-lo. Trata-se do
sr. José Thomaz de Oliveira natural, de Mossoró, Rio Grande do Norte, com 37
anos de idade, solteiro, com a profissão de mecânico.
Estampamos, a seguir, a
narrativa que nos fez José Thomaz.
Em 1924, veio para Fortaleza, em busca de trabalho, o
que conseguiu e por isso demorou-se aqui até princípios do corrente ano, quando
a sua situação financeira piorou. Em virtude disso, resolveu embarcar para a
capital paraense, por saber que o norte ia nadar em ouro, em consequências dos
serviços a serem iniciados pela grande empresa Ford.
Confiante na sua capacidade de trabalho, José Thomaz
embarcou para Belém no dia 1° de fevereiro do corrente ano. Ali chegando foi
hospedar-se na “Pensão Colômbia”
tratando, desde logo, de obter informações sobre os serviços da empresa Ford.
No dia imediato a sua chegada à capital paraense, travou conhecimento com Sebastião
de tal, que lhe prometeu colocação na companhia Ford.
No dia 7 de fevereiro, juntamente com 36 cearenses,
embarcou num “gaiola” com destino a
Santarém, conforme as promessas de um tal Dudu, que era o contratante de homens
para os trabalhos da Ford, como informara Sebastião de tal.
Logo que o “gaiola”
começou a viagem, José Thomaz soube por um foguista que todos tinham sido
iludidos e seguiam para Arumanduba, propriedade do Senador José Júlio, como
escravos.
A começo não quis acreditar em se semelhante
informação, mas ao chegar o navio em Arumanduba, ficou convencido da veracidade
do que lhe haviam dito.
Naquela propriedade foram recebidos por Duca que, a
primeira vista, mostra ser um homem despido de qualquer sentimento bom.
O senador José Júlio encontrava-se em Arumanduba e
recebeu com alegria os seus novos escravos. Os cearenses foram enviados para
outras propriedades porque Duca, declarou preferi-los para serviços mais
pesados por serem mais trabalhadores.
José Thomaz ficou ali, como mecânico. Desde o começo,
teve ciência do sistema de escravidão adotado nas propriedades do ricaço
senador e viu logo que o regime da peia era um fato.
Poucos dias demorou José Thomaz nos serviços de
mecânica, executados, aliás, numa bem montada oficina. Duca retirou-o dali,
passando-o para o trabalho no trapiche, onde trabalhava de 3 horas da
madrugada, às 10 horas da noite, com meia hora para cada uma das refeições. Depois
de alguns dias desse exaustivo trabalho, José Thomaz reclamou a Duca contra
esse absurdo, sendo, então, ameaçado de peia.
No dia seguinte, como um aviso, assistiu formidáveis
surras aplicadas em dois homens, que ficaram no chão como mortos. Diante disso,
José Thomaz procurou o senador José Júlio, a quem comunicou o seu desejo de
regressar à Belém. O senador prometeu atende-lo, mas não deu o menor passo
nesse sentido.
A situação era essa, quando em companhia de outra
leva, passou em Arumanduba José Cesário de Medeiros, natural de Caicó, Rio
Grande do Norte, que se destinava ao Jari. José Thomaz, que já conhecia
Cesário, informou-o do que se passava. Cesário declarou que ia ver a coisa de
perto e que se não se modificasse a situação, tentaria dar um jeito para
melhorá-la. Nessa ocasião Cesário declarou que estava disposto a arriscar a
vida, para não ficar como escravo.
Cesário falava de modo tão enérgico, que José Thomaz
viu renascer a esperança de, dentro de pouco tempo, livrar-se, com os seus
companheiros, do cativeiro mais aviltante.
Em Arumanduba, como nas outras propriedades, onde o espírito
de revolta já dominava a todos, faltando apenas um homem que tivesse a coragem,
de chefiar o movimento, a situação piorou consideravelmente. Os dirigentes dos
serviços, notando o que se passava, pretenderam dominar o estado de coisas com maiores
violências. Os castigos corporais redobraram, as perseguições de toda sorte
amiudaram-se. Os homens eram separados das suas esposas, enviadas para lugares
ignorados, as mocinhas eram sequestradas pelos “ducas” e assim por diante.
Em Jari, depois de mil sofrimentos, Cesário,
arrostando contra todos os perigos, preparou a revolta, designando o dia 13 de
maio último para o levante geral.
Naquele dia, com meia dúzia de companheiros, Cesário
deu o brado de revolta e agiu com tanta energia, com tal desassombro que,
dentro de poucos momentos, contava com a adesão de 358 homens. Depois de haver
aprisionado os dirigentes do serviço no Jari, não consentindo que os mesmos
fossem violentados pelos amotinados, apoderou-se de um vapor.
Armou todo o pessoal e seguiu viagem com destino a
Belém, fazendo parada nas outras propriedades do senador José Júlio, nas quais
ia dando liberdade aos escravos.
O navio que conduzia os revoltosos chegou em
Arumanduba pelas 2 horas da madrugada, com luzes apagadas. Cesário desembarcou
à frente de 200 homens devidamente armados e cercou as casas do senador José
Júlio, de Duca e outros.
Todo o pessoal de Arumanduba saiu de suas barracas,
ouvindo, então, a palavra de Cesário, que oferecia a liberdade a todos. Não
houve empregado que não aderisse ao movimento. O barulho provocado pela
aglomeração de tanta gente acordou o senador, que se entendeu com Cesário,
tratando-o carinhosamente.
Com o fim de conquistar as simpatias do chefe do
movimento libertador, o senador José Júlio fez mil ofertas a Cesário, entre as
quais se destacavam a de dar-lhe 100 contos de réis em dinheiro e a direção
geral de todas as suas propriedades.
Cesário, com altivez e no meio dos aplausos de todos
os companheiros, repeliu energicamente as propostas, exigindo porém do senador
José Júlio a importância de 250 contos de réis, quantia que calculava
suficiente para indenizar o saldo de todos os trabalhadores.
O senador José Júlio, alegando não possuir aquela
importância em Arumanduba, pediu a Cesário que esperasse o amanhecer do dia.
O chefe da revolta acedeu a esse pedido, garantindo.
Também, que nenhuma danificação sofreriam as propriedades do algoz dos
revoltados. Apenas a estação radiográfica de Arumanduba seria destruída, a fim
de que o senador não pudesse armar uma cilada. Quase imediatamente, a referida
estação radiográfica foi totalmente arrasada.
Ao amanhecer o dia, o senador José Júlio comunicou a
Cesário que ia tomar as providências necessárias para os duzentos e cinquenta
contos serem pagos ao pessoal em Belém, visto não haver reunido aquela quantia
em Arumanduba. Em consequência disso, Cesário resolveu partir imediatamente,
levando Ducha prisioneiro, como garantia do pagamento.
Como o navio em que viera do Jari não comportava todas
as pessoas, homens, mulheres e crianças, que já se elevava a cerca de 900,
Cesário apoderou-se de um navio maior, o “Cidade
de Alenquer”, também de propriedade do senador José Júlio e que se achava
em Arumanduba.
Em seguida, depois de haver embarcado todo o pessoal
com a maior ordem, Cesário fez o “Cidade
de Alenquer” rumar para Belém.
Ao passar o navio em “Jararaca”, todos a bordo notaram
que o aviso de guerra “Ajuricaba”,
começara a segui-lo.
Sempre acompanhado pelo “Ajuricaba”, o “Cidade de
Alenquer” seguiu até Belém, onde, antes de entrar no porto, foi abordado
por uma lancha da Polícia Marítima.
As autoridades foram a bordo, ouvindo as explicações
de Cesário.
Depois de muitas delongas, foi ordenado o desembarque
do pessoal, sendo todas as pessoas abrigadas no prédio do antigo quartel de
polícia.
Durante alguns dias, o senador José Júlio mandou
fornecer parca alimentação aos escravos do Jari, mas depois suspendeu, passando
todos a serem socorridos pela caridade pública.
O senador José Júlio é político influente e, por isso,
o governo cruzou os braços diante de tão grave situação.
Mais de vinte advogados do Foro de Belém foram
procurados para defender a causa dos escravizados, visto como o senador José
Júlio recusou a pagar os 250 contos de saldo dos seus escravos.
Afinal, por intermédio da classe estudantil, o ilustre
advogado Dr. Pedro Guariba tomou a si a defesa daqueles infelizes. Muitos deles
já se retiraram de Belém, mas a ação de indenização no Foro da capital paraense
corre os tramites legais. (O CEARÁ, N° 935)
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Diário Carioca, n° 7
Rio de Janeiro,
RJ – Terça-feira, 24.07.1928
õõõõõõõ
² A Emigração Forçada dos Trabalhadores do Extremo Norte ²
õõõõõõõ
Um Libelo
Candente do Sr. Azevedo Lima, na Câmara, Contra o “Regimen” de Servidão nas Fazendas da Amazônia
õõõõõõõ
O deputado Azevedo Lima
comentou, ontem, o êxodo de trabalhadores, do extremo norte, revoltados contra
o “regimen” de exploração do
trabalho, ali dominante. Damos aqui as tópicos principais do veemente discurso
do deputado carioca:
Declara que tem
recebido, nestes últimos dias, do extremo norte, do País, simultaneamente,
cartas e jornais em que se, descrevem os horrores, verdadeiramente dantescos,
sofridos nos cafundós do Jari, de Arumanduba, no baixo Amazonas, Estado do
Pará, pelos trabalhadores dos feudos dos senadores estaduais José Júlio, José
Porphírio e coronel Pereira Brasil. Essas notícias, profundamente pungentes,
chegaram pelos últimos vapores do norte e deixam perceber que o desembarque dos
trabalhadores, a 5 de julho último, de bordo do “Cidade de Alenquer”, na capital do Pará, se realizou em condições
do tal modo impressionantes que provocou um arrepio de sensibilidade na
população de Belém.
Nada menos de 787 trabalhadores, com as suas famílias,
dirigidos por um caboclo do Rio Grande do Norte, cujo nome justo é um que fique
estampado nos anais da Câmara ‒ Cesário Medeiros, vieram corridos dos sertões
do Pará, das terras e latifúndios de políticos do Estado, onde se entregavam ao
penosa labor da extração da borracha e da colheita das castanhais, enxotados
pela necessidade, pela miséria, pela fome e pelo chicote dos feitores dos
políticos estaduais, que são, ao mesmo tempo, grandes proprietários de
latifúndios e exploradores desumanos do trabalho alheio. Transparece nos
depoimentos dos emigrados a súmula dos mais cruciantes sofrimentos que nem nos
séculos da escravidão suportaram os negros e silvícolas brasileiros.
O sr. Pedro Borges
aparteia, declarando que não conhece o senador José Júlio, mas que o sr. José
Porphyrio é um homem honesto, probo e trabalhador. Faz outros elogios a esse
político. Prossegue o sr. Azevedo Lima. Diz que não conhece as pessoas dos
caciques estaduais ou dos organizadores dessa verdadeira escravidão nacional,
aos quais se deve aquela cena tétrica da emigração forçada de trabalhadores
brasileiros.
O que sabe pelos jornais, principalmente pelo “Estado do Pará”, e por cartas
absolutamente fidedignas, que recebeu diretamente, é que esse espetáculo
produzido em Belém, pela deserção em massa de 787 trabalhadores, desnutridos,
envenenados pelos piuns, seviciados pelo tagante dos roedores ou dos capatazes,
combalidos pela enfermidade e pela miséria, não é espetáculo singular nas
regiões do nordeste ou do norte do Brasil. O que se verificou nestas legiões de
escravos em êxodo, é uma síntese, apenas, do trágico sofrimento de
trabalhadores nacionais ou estrangeiros, experimentados nos seringais, nos
castanhais, nas terras em que se explora o coco babaçu, nas zonas do cacau, nas
garimpos de Goiás, e, até mesmo, nas fazendas de café nos Estados de São Paulo
e das Minas Gerais. Ainda não há muito tempo...
Continua o sr. Azevedo
Lima.
Atendendo aos reclamos de vários trabalhadores de
fazendas do café, em S. Paulo, tive ensejo de exibir contas de pagamento e
cadernetas de colonos de Sertãozinho, onde se verificou que, ao cabo do 5 ou 6
longos anos de trabalho, os italianos, iludidos pela propaganda falaz da
lavoura brasileira nas metrópoles da Europa, ainda não haviam recebido um único
vintém do salário, pois tudo que deviam ter ganho à força de trabalho se tinha
consumido com a aquisição de víveres, de gêneros alimentícios e com a própria
instalação da família nas plagas brasileiras.
Os nacionalistas, os falsos patriotas, os que vivem
enganando a opinião pública, no Brasil e no estrangeiro, procurando fazer crer
que essa terra é edênica ou paradisíaca, se não cuidam, devidamente da
felicidade dos estrangeiros para aqui atraídos pela cobiça dos latifundiários,
deviam, ao menos, volver seus olhos piedosos para os pobres patrícios
nordestinos, que, tangidos pelas calamidades periódicas das secas, vão buscar a
desgraça irremediável nas novas senzalas da Amazônia, nas terras inóspitas do
Pará, do Amazonas e do Acre. A exploração crudelíssima do trabalho, de
conformidade com o “regimem” agrário
que frisa pela brutalidade horrorosa do feudalismo, desde o método de
recrutamento desses nossos patrícios nas cidades assoladas pelas secas até o
sistema de exploração de seu trabalho, em pleno sertão, onde domina o baraço ([1])
do senhor e onde se exerce a justiça senhorial, dá aos brasileiros cultos a
impressão de que o País ainda não atingiu o grau de civilização industrial
contra o qual já se queixam até os sociólogos e os filantropos da velha Europa.
Passa o deputado carioca
a criticar os parlamentares que tem negado a existência da questão social, da
luta de classes no Brasil:
Como se fosse possível banir do nosso movimento
político um fenômeno inerente a todas as formas de governo, a todos os estados
da civilização. O que nos depara, ao contrário, no Brasil, é a forma
rudimentar, primária, de exploração de trabalho; é a opressão sistemática, é o
desconhecimento completo dos direitos do cidadão, é o esquecimento, é a
relegação ao desprezo de todos os sentimentos de solidariedade humana.
Depois de outras
considerações, diz sr. Azevedo Lima fazer questão de que se consigne nos anais
da Câmara, pela sua voz:
Um protesto veemente contra a situação a que se
expuseram os trabalhadores nacionais e que se desminta peremptoriamente, de uma
vez por todas, o boato assoalhado por alguns membros, senão ingênuos, pelo
menos simplórios da Câmara dos Deputados, para os quais não existe a questão
social no Brasil, a cujo entender não passa a luta de classes de simples ficção
de demagogos e exploradores da opinião pública.
A fuga dos escravos do Jari é um paradigma da situação
social dos trabalhadores nacionais, tão torturados pelo agrarismo brasileiro
como os “coolies” chineses nas
feitoria do Imperialismo europeu. O Brasil precisa conhecê-lo. Enquanto os
deputados das zonas agrárias da Federação não se propuserem à benemérita missão
de revelar, também, os sofrimentos, a miséria, a penúria e a lazeira de seus
concidadãos explorados pela forma mais selvagem de um “regimem” agrário primitivo, ficará o fenômeno do Jari, figurando
nos “Anais” da Câmara, como atestado
vivo da nossa incapacidade administrativa, como prova completa da
impossibilidade de se conciliarem os interesses dos latifundiários feudais com
os elevados interesses da liberdade humana. E diga-se, pela voz dos sociólogos
de bobagem, que não existe a luta de classes entre a massa brutalizada dos
trabalhadores do sertão e os ricos senhores medievais dos cafundós do Amazonas!
(DIÁRIO CARIOCA, N° 7)
õõõõõõõ
A Manhã, n° 808
õõõõõõõ
Rio de Janeiro,
RS – Quarta-feira, 01.08.1928
õõõõõõõ
² O Inferno Verde do Rio Jari ²
Comprando
Jornais e Emprestando Dinheiro
ao Governo Paraense, o Senador José Júlio Obtém o Privilégio de Manter
a Escravidão em seus Domínios
õõõõõõõ
O gesto de independente
altivez daquele caboclo Cesário de Medeiros, arrancando, dos domínios do
senador José Júlio, 737 companheiros, e reconduzindo-os a liberdade, sem, ter,
nem consentir que qualquer desses homens tivesse, um movimento do vindita
contra seus antigos algozes, é do uma beleza moral absoluta. José Júlio e seu
estado-maior, acovardados ante o número dos sublevados, comandados pôr Cesário
Medeiros, rogaram que os não matassem, e, não obstante serem autores de um sem
número de assassínios, suas vidas foram poupadas. Logo, porém, que se viram
livres do risco próximo voltaram à pratica dos mesmos crimes, de sempre, em seu
vasto feudo doa rios Jari e Cajari, onde não entra ninguém de fora, e de onde
não sai ninguém que lá entra. Basta dizer-se que o serviço de capitania dos
portos fluviais desses dois rios é superintendido por um tal Raymundo Neno,
primo de “Duca”, o terrível
lugar-tenente de José Júlio. Simples aparelho nas mãos do Senador e de sua
gente, Raymundo Neno retira de bordo dos navios os homens com quem os capitães
dos navios não simpatizam, e manda-os para o cativeiro.
Mas, mais grave que tudo
isso, é o fato seguinte: o navio “Cidade
de Alenquer”, em que Cesário Medeiros e sua gente desceram para Belém, de
volta ao Jari, só pode subir até ao lugar chamado São Francisco da Jararaca,
sobre o Muauá. Ali, sem que a Capitania do Porto do Pará tivesse a mínima
audiência no caso, o comandante do “Cidade
de Alenquer” “cambou” ([2])
sua tripulação para o “Sobral”, que
ali se achava de descida, e inteiramente tripulado por escravos do senador José
Júlio.
A tripulação de escravos
foi por sua vez “cambada” para o “Cidade
de Alenquer”, e voltava aos domínios de seu amo, enquanto que o “Sobral”, tripulado pelo comandante Carmo
e pelos homens de sua equipagem, descia a Belém sem que a Capitania do Porto
procurasse, sequer, saber dessa irregularidade, e ainda menos puni-la. O
poderio do José Júlio no Estado é enorme. Com o dinheiro tirado do monopólio da
escravidão no Brasil, José Júlio tem enriquecido fabulosamente e enriquece cada
vez mais, sendo presentemente dono das seguintos propriedades, todas no
Município de Alenquer: Cajueiro, Arumanduba, Santa Isabel [...]. Com todo esse
dinheiro José Júlio compra jornais, como se deu com o “Correio do Pará”, que ele adquiriu para dar de presente ao partido
dominante, no Estado, e com a “Folha do
Norte”, a cujos diretores “empresta-deu”,
como se diz em gíria, duzentos contos do réis. Ao próprio Estado, o senador
escravocrata tem emprestado grandes fortunas, e graças a isso é tão governo como
o Sr. Dionysio Bentes, a cuja solidariedade deve todos os serviços de que
carece sua gente para praticar no Jari, os crimes que deseja sem sofrer
qualquer punição. E mais; é o próprio Cesário de Medeiros quem conta:
Chegamos a Arumanduba na madrugada do 3 do corrente.
Desembarquei com alguns homens, e com eles, tomei a povoação, cercando a casa
de “Duca”, a quem intimamos a
levar-nos à presença do senador. Uma vez na presença daquele senhor relatei-lhe
tudo o que se passava, contei-lhe os sofrimentos e os maus tratos que
sofríamos, aos quais, estou certo, não é estranho. Depois pedi-lhe 20 contos
para distribuir entre os retirantes. O senador lamentou que tivéssemos tomado
tal atitude e pediu que voltássemos ao trabalho, prometendo providenciar,
porém, diante das nossas afirmativas do propósito em que estávamos em vir para
Belém, ofereceu, 15 contos.
Entretanto não nos deu essa importância, entregando a
“Duca” uma quantia em moedas de
níquel e prata, que disse ser quinze contos. Desse dinheiro tirei 200$000' que
dei a uma viúva. Antes, porém, de entregar a “Duda” aquela importância pediu-me para que deixasse ali todos os
meus companheiros, oferecendo-me dinheiro, que eu pedisse e o lugar de gerente
dos negócios no Jari. Recusei a proposta e, dirigindo-me ao pessoal,
disse-lhes: Quem quiser ficar, desembarque. Porém ninguém quis faze-lo. Assim,
naquele dia, partimos para Belém no vapor. “Sobralense”
que nos foi oferecido pelo senador, por oferecer mais conforto que o “Almeirlin”, devido ao seu tamanho.
Pois bem, Dionysio Bentes, ao ver chegar ao Pará o
administrador “Duca”, que embarcou
como estava em Arumanduba, de chinelos, casaco do pijama e chapéu do
carnaubeira, não conseguiu que ele entregasse aos sublevados o dinheiro que
trazia para distribuir por eles, não obstante JÁ HAVEREM PERECIDO DE FOME, nas
ruas de Belém várias mulheres e crianças. E no dia da partida do “Duca”, levando de volta para o Jari os
quinze contos do senador José Júlio, Dionysio Bentes pôs na rua, sem lar e sem
pão, os poucos desgraçados que ainda tinham abrigo por conta do Estado. (A
MANHÃ, N° 808)
õõõõõõõ
O Combate, n° 1.024
São Luis, MA –
Sexta-feira, 03.08.1928
õõõõõõõ
² As Violências Políticas ²
“O Combate", Visitado Pelo sr. José
Cesário de Medeiros, Ouve a sua Narrativa Sobre as Violências de um Chefe
Político Paraense o Sobre o Povo da Comarca de seu Domínio
õõõõõõõ
Com a calma peculiar às
almas nobres, Cesário de Medeiros relatou-nos que, residindo no lugar
Cachoeira, sob o domínio da comarca de Almerim, revoltado com as violências e
os crimes do pessoal chefiado pelo senador José Júlio de Andrade, foi, a pouco
e pouco, levantando o espírito do povo daquela vila, até conseguir um número
regular de homens destemidos a fim de tentar uma justa revanche contra tão
absurdas arbitrariedades.
Ainda em Cachoeira,
prendeu quatro chefes obedientes ao famigerado senador, que ali executavam,
friamente, as violências e os crimes que se praticavam em toda a comarca. De
Cachoeira, acompanhado de quase toda a sua população, Cesário, seguiu, dias
depois, quando houve viagem para descer o rio Jari, rumo de Arumanduba,
quartel-general do senador José Júlio. Ai chegado, com o povo que levara e mais
as adesões inúmeras que foi merecendo, procurou um entendimento direto com o
algoz de toda aquela zona e seu alter-ego, um seu cunhado de nome Duca, homem
de péssimos instintos, que diretamente transmitia e fazia executar toda a série
de atos desumanos que escravizava o pobre povo de toda aquela zona.
Cesário intimou-os,
corajosamente, a deixarem de tais violências, que há muito vinham impondo à
população de toda Almerim. Disse-lhes mais que, testemunha ocular de tantos e
tão bárbaros crimes praticados, impunha, desde logo, o retroceder de tantas
ignominias. Ao mesmo tempo que assim exigia, prendeu, sem usar de violências,
todos os partidários de José Júlio, na vila da sua própria residencia e quartel
general, impondo a esse novo Nero, que, sem força e decerto acossado pela sua
própria consciência, não teve coragem para reagir, nem o seu cunhado Duca,
contra a atitude desassombrada daquele sertanejo altivo, corajoso e disposto a
vencer ou morrer, na defesa da liberdade de tantas centenas de patrícios seus,
vítimas de tantas violências e crimes. Conferenciando com o senador, este
prometeu a Cesário, considerável fortuna e posição de seu imediato, em toda a
Comarca, para isso abandonando, o nobre libertador, a sua atitude contra o seu
domínio. A despeito de tão grandes ofertas.
Cesário, de fronte
erguida, desprezou-as, dizendo que somente a liberdade do povo, de todos
aqueles lugarejos, ele almejava, no momento, custasse isso o sacrifício da sua
própria vida. O povo, que acompanhava o seu libertador, formava já uma legião
numerosa, investia, querendo, à viva força, castigar o Nero e seus comparsas. E
seria justo tal procedimento! Cesário, no entanto, diante da covardia
demonstrada pelo senador tirano, foi generoso e não deixou que lhe dessem a
lição tão merecida.
Por sua vez, o algoz de
tantas violências, apelou para os bons ofícios de Cesário, pedindo-lhe
garantias de vida. Suprema covardia! O destemido sertanejo, então, respondeu
que, apesar de todos os seus crimes, ele ficasse descansado, pois nenhum de sua
malta de criminosos, sofreria castigo, pois que ele e o povo ordeiro que o
acompanhava somente queriam a liberdade naquelas plagas, onde todos viviam sob
violências e sujeitos à crimes horríveis.
Continuando a sua
sublime cruzada, Cesário intimou o comandante do gaiola “Cidade de Alenquer”, a transportar ele e as vítimas do senador, assumindo,
assim, o comando de fato desse vapor. Rumou, então, até Belém, esse destemeroso
homem de tão nobres sentimentos, levando consigo, preso, o famoso Duca, o
cunhado e alter-ego do senador José Júlio e, também, todas aquelas vítimas
salvas pela sua indômita coragem, tantas quantas coube no gaiola em que
viajavam. Antes de sair de Arumanduba, o Nero da comarca de Almerim disse a
Cesário que, para pagar os males de que era acusado, seu cunhado Duca levaria
ordem franca para, em Belém, distribuir às suas vítimas, dinheiro necessário
para o seu sustento. Deslavada mentira, a do violento senador, pois nem um
real, em Belém, foi dispendido, sendo esse processo apenas um engodo do
momento, determinado pela sua covardia.
Antes de partir, Cesário
recebeu pedidos insistentes de José Júlio, no sentido de dar a liberdade ao
Duca, pelo que pagaria soma fabulosa. A resposta recebida foi a de que, com a
liberdade de Duca, seguiria consigo, então, o próprio José Júlio. Tanto bastou
para que o covarde chefe político de Almerim, recuasse da tentativa de salvar o
seu feroz ajudante de ordens.
Nos domínios do sr. José
Júlio, disse-nos Cesário, na sua atuação violenta, o povo de toda aquela zona
sofria, há dezenas de anos, os maiores rigores. A maioria da população, tão
miserável vivia, que nem ao menos conhecia o dinheiro do seu País; não o
conhecia porque jamais pode, com o trabalho, ganha-lo, pois a política de, José
Júlio a tudo monopolizara.
As violências, eram as
mais desumanas que que se possam conceber! E, no entanto, devido ao coração
generoso de um rústico, de alma grande e sentimentos nobres, esse Nero
falsificado não sofreu um castigo que bem merecera.
Cesário foi,
inegavelmente, um verdadeiro enviado do poder supremo, na salvação de um povo escravizado
e violentado pela política malsã e criminosa. E o que mais se admira nesse
intemerato sertanejo é o ter vencido situação tão perigosa, sem violência, só
pelo prestígio de sua coragem e valor da gente de que se soube cercar.
Chegando em Belém, Cesário
procurou as autoridades competentes, relatando todos os fatos. Nenhuma
providência legal contra os criminosos foi tomada, pois o senador José Júlio é
político de prestígio. Duca, foi posto em liberdade e voltou para os domínios
de seu feroz cunhado.
Felizmente, as inúmeras
vítimas levadas até Belém por Cesário conseguiram não voltar aos, domínios de
seu algoz, porque a isso se opuseram o próprio governador do Estado o seu chefe
de polícia e o digno Capitão dos Portos, no Pará.
Eis os fatos que nos
foram relatados por Cesário, homem honrado e pobre, que, para poder, agora, ir
até Natal visitar sua família, sem meios e sem esperanças, encontrou a mão
amiga e desinteressada do conceituado comerciante de Belém, sr. Francisco F.
Coelho, que lhe proporcionou, numa espontaneidade absoluta, os meios dessa
viagem e os recursos necessários para uma apresentação capaz, ao salvador da
população da comarca de Almerim.
Eis, em rápido resumo,
mais um atestado da política de violência que nos domina e nos faz relembrar os
crimes que, entre nós, nos tempos que hoje correm, se praticam canibalescamente
no nosso sertão, como os de Grajaú, Bacabal e outros. (O COMBATE, N° 1.024)
Fontes:
A MANHÃ, N°
808. O Inferno Verde do Rio Jari ‒
Brasil ‒ Rio de Janeiro, RJ ‒ A Manhã, n° 808, 01.08.1928.
DIÁRIO
CARIOCA, N° 7. A Emigração Forçada dos
Trabalhadores do Extremo Norte ‒ Brasil ‒ Rio de Janeiro, RJ ‒ Diário
Carioca, n° 7, 24.07.1928.
O CEARÁ, N° 935. A Escravidão dos Cearenses na Amazônia
‒ Brasil ‒ Fortaleza, CE ‒ O Ceará, n° 935, 22.07.1928.
O COMBATE,
N° 1.024. As Violências Políticas ‒
Brasil ‒ São Luís, MA ‒ O Combate, n° 1.024, 03.08.1928.
Solicito Publicação
(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel
de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador,
Escritor e Colunista;
·
Campeão do
II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
·
Ex-Professor
do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);
·
Ex-Pesquisador
do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
·
Ex-Presidente
do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
·
Ex-Membro
do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
·
Presidente
da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
·
Membro da Academia
de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
·
Membro do
Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
·
Membro da
Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
·
Membro da
Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
·
Comendador
da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
·
Colaborador
Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
·
Colaborador
Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
·
E-mail:
hiramrsilva@gmail.com.
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