Segunda-feira, 1 de dezembro de 2014 - 20h31
Hiram Reis e Silva (*), Porto Alegre, RS, 01 de dezembro de 2014.
Ontem como Hoje...
Ainda mais quando a calma revelada pelos náufragos levou-os a atirar para terra as cadernetas de levantamento, para que não se perdessem na corrente e com elas desaparecesse o resultado do trabalho até aí executado. (MAGALHÂES)
Pena que as autoridades tupiniquins não tenham tido a capacidade de aquilatar a relevância de nossa Descida pelo antigo Rio da Dúvida, hoje Rio Roosevelt, desde Rondônia, atravessando o Noroeste do Mato Grosso até o Amazonas, e da homenagem que seus expedicionários se propunham a prestar à memória de Cândido Mariano da Silva Rondon – o Marechal da Paz e à Theodore Roosevelt – o ex-Presidente dos EUA.
Há exatos cem anos estes dois grandes nomes da historiografia universal gravaram, para sempre, seus nomes no “pantheon” dos heróis da humanidade ao realizar a épica descida por um Rio totalmente desconhecido, permeado de diversos Saltos, Cachoeiras e Rápidos, desafiando a turbulência de suas águas e enfrentando as agruras de um ambiente hostil, sem poder contar com qualquer tipo de socorro externo.
Os séculos correm celeremente pela nossa querida e malfadada “Terra Brasilis” e continuamos eternamente, marcando o passo, estagnados moralmente, “in aeternum” citados como “o país do futuro”, um porvir que cada vez parece tornar-se mais e mais longínquo. Um povo que ignora o esforço titânico de seus antepassados, que é incapaz de cultuar seus valores mais caros não conseguirá, jamais, almejar um futuro pródigo para seus filhos. O Hino do Rio Grande do Sul traz na sua bela letra uma insofismável verdade: “Povo que não tem virtude / Acaba por ser escravo”.
O Coronel Amílcar A. Botelho de MAGALHÃES, há mais de setenta anos, já apontava esse equívoco cometido pelas autoridades republicanas em relação ao próprio Rondon:
O lado moral, o lado heroico, o prisma sob o qual pudesse a nação aquilatar das dificuldades vencidas e dos sacrifícios empregados para chegar a essa quilometragem aritmeticamente contada e reduzida a mapas e a esquemas, são faces da questão votadas ao silêncio, ao desprezo e quiçá mesmo ao ridículo dos homens de gabinete, incapazes de aguentar alguns meses de sertão...
Dos vastos e admiráveis relatórios, que andam por cinquenta volumes, apresentados pelo General Rondon ao Governo da República, vede o que transcrevem, sem cor e sem entusiasmo, quase todos os Excelentíssimos Srs. Ministros da Guerra e da Viação e Obras Públicas em seus relatórios anuais. Através dos Relatórios Ministeriais a obra de Rondon é quase uma obra de anão! (MAGALHÃES)
Heróis Anônimos
Da vontade fizeram renúncia como da vida... Seu nome é sacrifício. POR OFÍCIO DESPREZAM A MORTE E O SOFRIMENTO FÍSICO... A gente conhece-os por militares... por definição, o homem da guerra é nobre. E quando ele se põe em marcha, à sua esquerda vai CORAGEM, e à sua direita a disciplina.
(Guilherme Joaquim de Moniz Barreto – Carta a El-Rei de Portugal, 1893).
Evidentemente a modelar conduta de Rondon cooptou o coração e as mentes de seus jovens Oficiais que tão galhardamente seguiram seu exemplo e, algumas vezes, imolaram-se anonimamente a serviço da Pátria. Não atacaram o inimigo nem tomaram de assalto suas instalações – seu foco era a Missão, estendendo linhas telegráficas ou demarcando os sertões de “brasis ainda sem Brasil”; por vezes sacaram de suas armas atirando para o alto – morreriam, e alguns pereceram, se fosse preciso mas não matariam nunca nossos aborígenes; foram arrojados e indômitos – enfrentaram as vicissitudes da selva e de seus habitantes hostis; cumpriram bravamente o que lhes foi determinado sem jamais titubear ou contestar as ordens recebidas.
PARA MIM, ESTE HEROÍSMO É BEM MAIS NOBRE E BEM MAIS DIFÍCIL, DEMANDA MUITO MAIS ENERGIA E TENACIDADE, DO QUE O HEROÍSMO DO MOMENTO, DE DURAÇÃO EFÊMERA, COMO O QUE REQUER O ATAQUE DE UMA TRINCHEIRA INIMIGA: A PRIMEIRA É UMA TEMERIDADE REFLETIDA, A SEGUNDA, UMA TEMERIDADE QUE SE INCENDEIA COMO A PÓLVORA NEGRA, AO CALOR REPENTINO DO ENTUSIASMO CONTAGIOSO DAS MASSAS, QUE ARRASTAM O HOMEM ÀS MAIORES LOUCURAS. LÁ É O COMANDANTE QUE FASCINA A MASSA COM O SEU ENTUSIASMO VIRIL, AQUI A MASSA QUE ELETRIZA O COMANDANTE, ENVOLVENDO-O NA ONDA MAGNÉTICA DOS HURRAS COMUNICATIVOS... (MAGALHÃES, 1942)
Recorreremos a um capítulo do livro “Impressões da Comissão Rondon” do Coronel Amílcar Armando Botelho de Magalhães, para apresentar um destes homens de fibra inquebrantável prestando uma justa homenagem a todos os heróis esquecidos, militares e civis, que tombaram nos “ermos sem fim” dos sertões inóspitos lançando linhas telegráficas ou demarcando nossas fronteiras. O Tenente Lyra foi um desses heróis que nos idos de 1914 acompanhou Rondon na sua épica descida pelo Rio Roosevelt e que morreu afogado, em 1917, no Rio Sepotuba cumprindo seu dever.
UMA PÁGINA DE SAUDADE
Primeiro-Tenente JOÃO SALUSTIANO LYRA
De todos os vultos que desapareceram no decorrer dos trabalhos da Comissão Rondon, o primeiro nesta homenagem que lhes vou prestar, com pungente saudade, não só por justiça, como pelo grau afetivo particular que me ligava a cada um deles, cabe ao distinto companheiro Primeiro-Tenente João Salustiano Lyra, provecto engenheiro-militar tão cedo roubado ao nosso convívio. Vissem-no de perto como eu, robusto e jovial, modesto e sensato; cordial como todo o indivíduo dotado de espírito superior; enérgico nos momentos precisos, sem quixotadas, mas firme, resoluto, inabalável, orientado pela bússola invariável da dignidade e do dever, e certamente lamentariam do fundo da alma que uma juventude tão esperançosa fosse bruscamente suprimida pelo destino!
Da sua capacidade, sempre vitoriosa a cada prova a que fora submetida, de seu brilhante talento, de seu já vasto cabedal científico e prático, de suas elevadas virtudes, não só o Exército como o Brasil, e quiçá a humanidade, teriam colhido extraordinárias vantagens se bem longa houvesse sido a sua trajetória na vida.
Digno êmulo de Rondon nas grandes explorações do sertão, foi ele o único a quem o notável Chefe confiou o serviço da vanguarda, que é afinal, propriamente, toda a exploração, e requer qualidades raras de inteligência, golpe de vista, decisão, tato especial; bastava isto para o recomendar se ele não trouxesse, desde os bancos escolares, a tradição de um merecimento que se destaca do comum de uma geração.
Tomou parte com o General Rondon em quatro Expedições: as três grandes Expedições de reconhecimento e exploração de 1907, 1908 e 1909, de Mato Grosso ao Amazonas, e a Expedição Científica Roosevelt-Rondon em 1913-14. Em todas afrontara perigos e privações inenarráveis; por muitas vezes sentira a iminência de perder a vida!
Quis um destino caprichoso, imprevisto como todos os destinos, que fosse perder a vida num pequeno Rio (Sepotuba, afluente da margem direita do alto Paraguai) aos 03.04.1917, quando dirigia uma turma independente de serviço geográfico, em trabalhos de levantamento da carta de Mato Grosso.
Como a sua vida excepcional, excepcional foi também a sua morte, envolvida no mistério da ausência de testemunhas. Estas apenas assistiram à primeira fase do desastre que o vitimou; como desapareceu, e para sempre, o seu corpo na profundeza das águas, ninguém o sabe...
No cenário apenas quatro protagonistas, dois que pereceram e dois que se salvaram; uma corredeira impetuosa onde as águas borbulham e burburinham, espadanando sobre rochedos; em torno a floresta despovoada, silenciosa e indiferente como toda massa inerte da natureza... Nesse desvão sem glória, a mão do destino apaga facilmente uma existência gloriosa e uma juventude viril também preciosa - Lyra e Botelho.
Tem muita força a fatalidade: como conceber de outra forma que dois grandes nadadores, de fortes músculos, acostumados a esforços mais violentos, fossem vencidos nessa luta?! Ainda mais quando a calma revelada pelos náufragos levou-os a atirar para terra as cadernetas de levantamento, para que não se perdessem na corrente e com elas desaparecesse o resultado do trabalho até aí executado; quando espontaneamente atiram-se na água, na convicção de que tal iniciativa evitaria, como evitou, a submersão da pequena canoa (montaria) em que navegavam! Esta, flutuou realmente, depois de colher em seu bojo boa porção de líquido, e, arrastada pela correnteza só pôde ser atracada à margem 200 metros a jusante, apesar do esforço neste sentido empregado pelo piloto.
Fora lançado na água, ao primeiro desequilíbrio da canoa, o proeiro, que nadou para a margem e nada mais viu, porque tratara apenas de se salvar. O piloto, no último olhar que lançou para a retaguarda, viu ainda os dois oficiais à tona da água; quando saltou em terra e correu margem acima ao local do sinistro, nenhum vestígio mais deles encontrou: haviam desaparecido.
Aos gritos do piloto, na esperança de que os oficiais, arrastados pela velocidade das águas, pudessem ter saído mais abaixo, apenas o eco respondeu... Por terra, trilhando caminhos diferentes, a tropa diariamente vinha à beira do Rio, ao encontro da turma de levantamento, em pontos previamente determinados pelo Chefe da Expedição ‒ Tenente Lyra. E era essa justamente a última etapa a vencer, para amarrar o serviço a Tapirapoan, porto da margem esquerda do Sepotuba (hoje Rio Tenente Lyra) até onde, desde a foz, a Comissão havia já executado o levantamento desse curso de água. A última etapa correspondeu assim o último dia de vida dos dois distintos oficiais.
Os sobreviventes pediram socorro ao pessoal da tropa e todos reunidos porfiaram em encontrar os corpos dos malogrados exploradores. Ao terceiro dia de pesquisas infrutíferas, deram sepultura ao Tenente Eduardo de Abreu Botelho, mas não foram jamais encontrados os restos mortais do Primeiro-Tenente Lyra.
Estava em impressão nesse momento o último trabalho realizado pelo Primeiro-Tenente Lyra, correspondente ao serviço astronômico da Expedição Roosevelt e o Sr. General Rondon, em homenagem ao mérito e aos serviços desse dedicado ajudante, determinou a inclusão de seu último retrato nessa publicação (Publicação n° 52 da Comissão Rondon).
Muito teria eu a dizer se fosse possível estender mais as presentes apreciações sobre a inconfundível personalidade do Tenente Lyra; mas, seria descabido para o caráter deste modesto opúsculo, escrito nas horas vagas, durante as viagens de bonde e de trem, ou enquanto esperava ser despachado nos Ministérios e nas Repartições Públicas, onde me levavam constantemente as funções do cargo que exerço na Comissão (Chefe do Escritório Central).
Fonte: MAGALHÃES, Coronel Amílcar Armando Botelho de. Impressões da Comissão Rondon – Rio De Janeiro – Companhia Editora Nacional, 1942.
(*) Hiram Reis e Silva é Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;
Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);
Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM - RS);
Sócio Correspondente da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER)
Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS);
Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
E-mail: hiramrsilva@gmail.com;
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