Segunda-feira, 9 de janeiro de 2012 - 14h44
É muito melhor arriscar coisas grandiosas, alcançar triunfos e glórias,
mesmo expondo-se à derrota, do que formar fila com os pobres de espírito,
que nem gozam muito, nem sofrem muito,
porque vivem nessa penumbra cinzenta que não conhece vitória nem derrota.
(Theodore Roosevelt)
Nossa estada em Humaitá não podia ter sido mais decepcionante. Foi compensada, porém, pelo empenho da tripulação do Piquiatuba e de nossos novos amigos Khryslley Márcio Fonseca de Souza e Elizeu dos Santos Gonçalves, funcionários do grande Mestre José Holanda, que procuraram torná-la o mais agradável e produtiva possível. O irreverente Márcio apelidou meu filho de “Alto Relevo”, em virtude das tatuagens “Maori” que ele orgulhosamente ostenta no braço esquerdo.
-Partida de Humaitá, RO (28.12.2011)
A jornada programada até Manicoré previa sete dias de viagem numa média de cinquenta e cinco quilômetros por dia. Conversei com meu filho e acordamos tentar remar sessenta e quatro quilômetros diariamente o que permitiria alcançar nosso objetivo em apenas seis dias, para isso teríamos de iniciar os deslocamentos antes do sol nascer de maneira a fugir da canícula vespertina. Acordamos às 4h30, preparamos a tralha, coloquei minha lanterna de cabeça e partimos às 4h40. Cometi um erro fatal ao tentar passar entre o segundo e o terceiro flutuante do Porto Hidroviário, percebi, muito tarde, um grande tronco barrando nossa rota apoiado no segundo flutuador. A proa bateu no obstáculo e girou o caiaque deixando-me preso entre correnteza e o tronco. Não consegui avisar, a tempo, meu filho, que vinha logo atrás, e o caiaque dele, sem a mesma estabilidade do “Cabo Horn” da Opium Fiberglass, girou, da mesma forma, e virou. Felizmente o reflexo do “surfista” falou mais alto e ele rapidamente saiu do caiaque e se apoiou nos troncos tentando segurar o “indomável”, o caiaque cedido pelo mestre Holanda. Perguntei se ele estava bem e mandei que ele largasse o caiaque que eu cuidaria dele. Felizmente apenas pequenas contusões resultaram do choque dele com os troncos submersos. Começara mal nossa marcha para Manicoré.
Ainda deu tempo de salvar o quite que flutuava a mercê da corrente, este quite consta de um protetor solar (FPS 50), Salonpas para dores musculares, Andolba para pequenos cortes, repelente de insetos e cápsulas de guaraná. Estava conduzindo, com certa dificuldade o caiaque do João Paulo para a margem quando apareceram nossos anjos da guarda o Soldado Mário Elder Guimarães Marinho, do Piquiatuba, e o Márcio, da lancha Rosa Holanda, com uma “voadeira” para nos auxiliar. O Márcio ficara observando, do Porto do Caçote, nossa progressão e alertou a tripulação do Piquiatuba que desencadeou imediatamente uma operação de salvamento do “Alto Relevo” que caíra n’água. Encontraram o João Paulo se equilibrando nos troncos e ele lhes informou que estava bem e que eles me auxiliassem no resgate do caiaque. O João Paulo escalou, por um dos cabos de aço da ponte e veio até nós visivelmente aborrecido, não era para menos. O mais triste, porém, é que todos estes acontecimentos foram presenciados por diversas pessoas que aguardavam embarque no Porto Hidroviário de Humaitá e apenas uma delas, o vigia, se apresentou tentando nos ajudar. Já naveguei quase 4.000 km em águas amazônicas e sempre fui recebido com solidariedade e carinho em todas as comunidades pelas quais passei e pude sentir o coração generoso do nortista sempre pronto a estender a mão ao próximo. Humaitá foi, sem dúvida, uma melancólica e triste exceção à regra.
O João Paulo não se abalou e remou como nunca demonstrando a determinação e a tempera de um Guerreiro Maori. Fizemos a primeira parada, na Fazenda Santa Rosa que ostenta uma polêmica placa de exploração sustentável de madeira. A devastação da mata, sem qualquer tipo de critério científico, e o gado que perambula pelo local mostra que o Projeto não tem nada de sustentável. O Piquiatuba se aproximou para que pudéssemos drenar, adequadamente, o caiaque do João Paulo e providenciar um encosto para suas costas, que se perdera, também, no acidente. Estávamos envolvidos nesta operação quando se aproximaram dois esqueléticos e famélicos guaipecas (vira-latas). Eu e o meu filho dividimos o nosso estoque de bananas com eles e os animais devoraram nosso suprimento com casca e tudo. O Soldado Walter Vieira Lopes se compadeceu da drástica situação em que se encontravam os animais e resolveu, ali mesmo, adotar um deles enquanto o Soldado Marçal Washington Barbosa Santos foi até a cozinha trazer um considerável reforço de rancho para o outro animal. O novo membro da tripulação foi batizado com o nome de “Coxinha” e no final do dia já estava de banho tomado e totalmente integrado ao Grupo Fluvial do 8° BEC. Mais uma demonstração do grau de solidariedade e humanidade desta fantástica tripulação que tive a honra e o privilégio de conhecer no ano passado e que servem de exemplo a todos não só no que se refere ao incontestável aspecto profissional, mas, sobretudo, em relação ao espírito cristão.
Como não avistasse nenhuma praia para aportar alterei a rota e resolvi fazer a segunda parada, na altura da Lagoa Três Casas, na margem esquerda. A mudança de rota trouxe-nos uma agradável surpresa, estávamos partindo quando avistamos um canoísta que subia o Rio. Era o suíço Christian Bodegren que, em setembro, subira o Rio Orenoco, penetrara o Canal Cassiquiare, descera o Rio Negro, o Rio Amazonas até a foz do Rio Madeira e pretendia chegar à Bolívia. O João Paulo conversou em inglês com o simpático canoísta estrangeiro, informando que ele poderia deixar seu caiaque no Porto Graneleiro da Hermasa em Porto Velho e que nesta cidade ele deveria procurar o Comandante do 5° Batalhão de Engenharia de Construção (5° BEC), Tenente-Coronel da Arma de Engenharia Moacir Rangel Junior que, certamente, iria apoiá-lo no que fosse possível. Antes de nos despedir do Christian dei a ele meu repelente de insetos e um tubo de cápsulas de guaraná.
Avançamos 17 quilômetros além do programado e aportamos na primeira das três fozes do igarapé Três Casas depois de navegar 75 quilômetros. As águas do igarapé eram mais limpas que as do Madeira e paramos no encontro das águas onde grupos de botos tucuxis e vermelhos perseguiam suas presas. Contando com a colaboração dos botos pescamos o suficiente para nos abastecer até Manicoré. O igarapé Três Casas nasce no Lago de mesmo nome e depois de avançar sinuosamente em direção ao Rio Madeira muda de idéia e corre paralelamente a este. O Rio Madeira inconformado com a pretensão do birrento filete d’água que teima em retardar o pagamento de seu tributo (tributário) ao volumoso caudal rompeu o barranco que os separava e invadiu-lhe o canal com suas águas fortes e barrentas, golpeando-o covardemente contra a margem direita até que não restassem o menor vestígio das águas negras do Três Casas, transformando o igarapé num mero furo do grande manancial, mais adiante essas mesmas águas voltam-se sobre si mesmo tornando o Madeira em um afluente de si mesmo. À noite o higiênico “coxinha”, membro canino da tripulação, se lançou às águas e foi fazer suas necessidades equilibrando-se num tronco à flor d’água.
-Partida do Igarapé Três Casas (29.12.2011)
Partimos por volta das 5h30. Na altura de Bela Brisa, por volta das dez horas, três jovens garimpeiros vieram ao nosso encontro convidando-nos para almoçar. Agradecemos a gentileza e informamos que só fazíamos a refeição no final da jornada e ainda faltava muito para isso. Eles nos contaram que tinham apoiado o suíço Christian Bodegren na sua passagem por ali. Aportamos no Lago do Antônio ao meio-dia depois de remar 63 quilômetros. A maioria dos documentos consultados se refere erroneamente ao local como Lago Santo Antônio. Vamos reportar um pequeno histórico, por nós adaptado, relatado pelo Senhor Constantino Veiga, o Seu Tantra, colhido pelo João Paulo junto à Associação de Desenvolvimento Comunitário dos Produtores Rurais do Lago do Antônio (ADCPLA).
-História do Lago do Antônio
Fonte: Senhor Constantino Veiga, Seu Tantra.
O Lago era habitado pelos índios, seus primeiros moradores quando chegaram os brancos portugueses, mandando explorar a seringa, castanha e madeira de lei. Os índios não queriam “os invasores”, porque a região era muito farta de peixe, de caça e muito bicho de casco, tartaruga, tracajá e jabuti. O patrão contratou, então, um homem chamado Antônio que foi o primeiro civilizado a vir morar no Lago. Antônio transformou sua casa numa fortaleza para resistir aos ataques dos índios. Antônio falava a língua nativa e distribuía presentes, que o patrão mandava, aos índios. Antônio construiu um batelão para transportar os índios, já pacificados, do Lago do Antônio e do Igarapé Grande para pescarem, trabalharem na colheita da castanha, extração da seringa e da madeira de lei.
-Partida do Lago do Antônio (30.12.2011)
Partimos às 5h30 rumo à Boca do Cará, piscoso afluente do Madeira. A viagem transcorreu sem maiores novidades, apenas pudemos notar que a quantidade de balsas de garimpeiros diminuíra consideravelmente. Aportamos na Boca Cará às 11h45 depois de percorrer 65 km. Nos últimos quilômetros fomos acompanhados de perto por bandos de botos vermelhos e tucuxis. Embarcamos os caiaques no Piquiatuba e estávamos empenhados na nossa rotina diária quando, mais uma vez, o “coxinha” se lançou às águas e nadou até a margem. Parece que o cãozinho entendeu que não devia poluir a embarcação com seus dejetos e resolveu demarcar o território, várias vezes. Estava na quinta etapa de sua fétida demarcação quando apareceu um enorme cão que o nosso tripulante canino enfrentou e pôs para correr. O João Paulo e a tripulação foram fazer um reconhecimento do Rio Cará e no trajeto quase foram atropelados por um enorme jacaré-açu. Permaneci no Piquiatuba colocando minha documentação em dia e admirando as evoluções dos botos tucuxis e vermelhos cercando os cardumes que infestavam a Boca do Cará.
-Partida da Boca do Cará (31.12.2011)
Meu filho ficara até tarde ouvindo as estórias do dono de um mercado flutuante ancorado na Boca do Cará e, consequentemente, não conseguiu acordar de manhã cedo. Eu e a tripulação do Piquiatuba nos esquecemos de colocar os celulares para despertar e quando acordei às 5h22, já estava começando a clarear. Acionei o Mário e às 5h35 eu estava partindo, sozinho, rumo à Comunidade Bom Suspiro, na foz do Rio Marmelo.
Mapas do DNIT: as referências que eu colhera dos mapas do DNIT estavam completamente equivocadas. A verdadeira Laranjal estava a mais de dez quilômetros ao Sul da Laranjal do DNIT, a Comunidade Marmelos do DNIT é na verdade um belo Rio de águas negras, o local mais aprazível que encontrei no Madeira até agora. São inúmeros outros erros que poderiam ser corrigidos com uma pequena equipe dotada de GPS e computador embarcada em um barco regional, como o nosso, e uma voadeira. Garanto que em três meses seria possível levantar com precisão os dados de todo o Rio Madeira. O mesmo poderia ser feito nos demais rios, seria uma pesquisa importante e necessária já que os mapas atuais não retratam a realidade. O 8° BEC possui as embarcações e a melhor tripulação para desempenhar esta tarefa que qualquer oficial de engenharia do exército estaria em condições de assumir.
A velocidade do Rio era grande e consegui imprimir um ritmo forte (12,2 km/h) e sem paradas, me alimentando e hidratando embarcado, para ganhar tempo, chegando a meu destino exatamente às 11 horas depois de percorrer 66 quilômetros em 5h25. Para quem desce o Rio Madeira, Bom suspiro é a primeira Comunidade do Município de Manicoré, fronteira com Humaitá. Depois do almoço eu e meu filho acompanhamos o Mário numa visita ao Rio Marmelos. A beleza do local e a simpatia dos membros da Comunidade Bom Suspiro convenceram-nos a permanecer mais um dia na Comunidade. O Piquiatuba ficou estacionado na margem esquerda do Marmelos, em Humaitá, já que o mesmo faz a divisa entre este Município e Manicoré.
-Partida da Foz do Marmelo (01.01.2012)
Decidi percorrer a distância, de 90 quilômetros, que separa Bom Suspiro e Manicoré em apenas um dia para recuperar a parada no Marmelos. Acordamos antes de o sol nascer e ficamos esperando clarear um pouco para sair. O João Paulo resolveu não participar desta navegação. Quando fui embarcar, no caiaque, levei um tombo, o primeiro em quatro anos, e em mais de 30.000 km de navegação no caiaque oceânico “Cabo Horn”. Desvirei rapidamente o caiaque, o material estava todo amarrado, só tive de catar algumas bananas que caíram do caiaque. O percurso foi agradável, a chuva fina caia, minorando os efeitos da canícula amazônica e cheguei à 12h55 a Manicoré, navegara 90 km em apenas 7h15, a uma velocidade média de 12,4 km/h. Em Manicoré procurei os amigos da PM que me apresentaram o Jornalista Walter de Azevedo Filho. Walter marcou uma entrevista para o dia seguinte e ficou de agendar os contatos que solicitamos.
-Livro
O livro “Desafiando o Rio–Mar – Descendo o Solimões” está sendo comercializado, em Porto Alegre, na Livraria EDIPUCRS – PUCRS, na rede da Livraria Cultura (http://www.livrariacultura.com.br) e na Livraria Dinamic – Colégio Militar de Porto Alegre.
Para visualizar, parcialmente, o livro acesse o link:
http://books.google.com.br/books?id=6UV4DpCy_VYC&printsec=frontcover#v=onepage&q&f=false.
Fonte: Foronel de Engenharia Hiram Reis e Silva
Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);
Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
Vice- Presidente da Academia de História Militar Terrestre do Brasil - RS (AHIMTB - RS);
Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS);
Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional.
Site: http://www.amazoniaenossaselva.com.br
E-mail: hiramrs@terra.com.br
Blog: http://www.desafiandooriomar.blogspot.com
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