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Gente de Opinião

Hiram Reis e Silva

Raymundo Moraes – Amazônico Escritor


 

O Sr. Raymundo Moraes (...) conseguiu, de um ponto remoto da selva amazônica, impor-se ao país inteiro”.                     
                                                       (Humberto de Campos) 

O escritor Raymundo Moraes, filho de Miguel Quintiliano de Moraes e de Lucentina Martins Moraes, nasceu em Belém no dia 15 de setembro de 1872. Interrompeu cedo os estudos, havia concluído apenas o curso primário, para acompanhar Miguel Quintiliano, prático de navios no rio Madeira. O Fascínio e a magia de navegar pelas artérias vivas da hiléia fizeram-no seguir a carreira do pai chegando a comandante dos ‘gaiolas’. As infindas jornadas despertaram seu amor pela leitura. Autodidata de invulgar inteligência e sensibilidade aliou o conhecimento científico e literário adquirido com as experiências que recolhia e anotava nas suas viagens.

“Mas eu que falo, humilde, baxo e rudo,
De vós não conhecido nem sonhado?
Da boca dos pequenos sei, contudo,
Que o louvor sai às vezes acabado.
Tem me falta na vida honesto estudo,
Com longa experiência misturado,
Nem engenho, que aqui vereis presente,
Cousas que juntas se acham raramente”.
(Luís Vaz de Camões - Canto X, estância 154)

Seus líricos relatos, carregados de emoção, são flagrantes que vivenciou e paisagens que impregnaram sua alma durante quase trinta anos. São crônicas de quem apreendeu com as águas e as gentes, com os seres da floresta, os ventos e as chuvas. Vamos reproduzir alguns parágrafos, dos capítulos, de um de seus livros, ‘Na planície Amazônica’, cujo primor literário nos reportam a um Euclides da Cunha de quem era grande admirador e discípulo sem, contudo, se deixar influenciar ou perder seu modo próprio de dizer as coisas, de interpretar as matizes telúricas carregadas de amazônico nativismo.

- O Vale Raymundo Moraes – Amazônico Escritor - Gente de Opinião

“O vale do Amazonas, na transformação constante por quem vem passando, tem a forma de uma lira, como se algum deus pagão e autóctone, através da harmonia e da beleza, tentasse amenizar as arestas cortantes dessa natureza rude.

(...) Hégira líquida e quase fabulosa do Novo Mundo, ela marca um época em que as águas, ao fugir de um quadrante para outro, modificam pela colmatagem a fisionomia deste trato imenso do continente americano. E o vale do Amazonas que teve antes a forma de uma garrafa, segundo alguns geólogos, tem agora a forma de uma lira”.

- A Hidrografia

“A Amazônia é um inigualável repositário de águas doces, vivas, cantantes, que saltam e deslizam, sob a luz crua do Equador, desde as cachoeiras rugidoras nas escadas de pedra aos lagos serenos nas várzeas infindas. Com a bacia imensa retalhada de rios, recortada de angras, listradas de furos, os paranás, e os igapós se traçam, se ligam, se anastomosam no mais complicado e bizarro aranhol fluvial do planeta.

(...) A principal característica do Amazonas, no entanto, é a metamorfose. Para fixar suas linhas de drenagem, na construção das molduras que o apertam no ‘canon’, apaga de noite o que delineou de dia. Solapa, rói, gasta, para mais adiante restaurar, no tear potamológico, a topografia que sumira”.

- Geografia Botânica

“Quem vive no vale amazônico, adaptado por seleção natural ou identificado ao ambiente por afinidade de nativo, aprende, no contato diário com o reino vegetal, a definir a terra pela selva. Observa nos alagadiços, nos firmes, nos campos, à borda dos lagos e na orla dos rios, a qualidade da planta que vinga ali. Cada arbusto, cada árvore, cada liana, no plano topográfico da sua lembrança, conta a história do grão de areia e do sedimento, do plasma aluviônico e do bloco de pedra. Arruma, assim, na memória, os indivíduos e as famílias, de acordo com o solo em que florescem. A mnemônica dos aspectos telúricos faz-se então pelos aspectos da mata. A planta, improvisado aparelho registrador, transmite, das raízes para a franca, por sinais hieroglíficos da flora traçados nos troncos, nos galhos e no ramos, a ondulação do terreno, a sua conformação, a sua idade”.

- O Delta

“(...) Essa linha de ficção, de um território em marcha, sob impulso dinâmico das águas, fugindo do bloco ‘mater’ a que se achava aglutinado, ganhou foros de cidade e alguns patrícios nossos, entre os quais Euclides da Cunha e Carvalho de Mendonça, nas asas leves do lirismo e nas obras hermenêuticas do Direito, repetiram-na e arredondaram-na.

No planejamento fulgurante da assimilação, o autor do ‘À Margem da História’ insuflou-lhe o movimento e a beleza de seu verbalismo ático e bárbaro ao mesmo tempo, emprestando ao enunciado aquela vibração tão forte e coruscante que levou Joaquim Nabuco, quando o lia pela primeira vez, a exclamar: ‘Este moço escreve com o cipó!’ O Amazonas, segundo essa doutrina, não tem delta, ou, melhor, o seu delta, por motivos geográficos de ordem meteórica, telúrica e marinha, emigra Atlântico afora, buscando a nesga das ilhas e a chanfradura das costas longínquas para se agregar e se regenerar”.

- Os Furos de Breves

“Perdida na memória do canal que os navegantes do tempo da conquista singravam, de velas pandas, pavilhões gritantes do mar para o surgidouro do Amazonas, a rumo direto e desafogado, quem sobe hoje para Manaus, em curva obrigada pela metrópole paraense, tem, forçosamente, de atravessar os Furos de Breves.

Labirinto extraordinário de mil fios líquidos, entre um flanco de Marajó e as rechãs levantinas do continente, foi tecido pela ação ininterrupta das águas, pelo trabalho dinâmico do rio”.

- O Regatão

“(...) O bufarinheiro conhecido nas cidades por teque-teque chama-se, no interior, regatão; somente, em lugar de transportar nas costas – pitoresco atlas da quinquilharia – o mundo de miudezas, transporta-o no bojo de uma galeota que desloca duas, três, quatro toneladas, dividida em seções de secos e molhados e tiradas a remo de faia.

(...) Ninguém labuta mais arriscadamente do que ele no vale, rodeado de inimigos, cercado de perigos. Nada o faz, entretanto, esmorecer ou recuar, e, afrontando a própria morte, sobe aos últimos manadeiros para extorquir uma bola de borracha e vender algumas garrafas de cachaça”.

- As Cerrações

“(...) De novembro a abril, com a invernada, exerce-se em toda a bacia o fenômeno da cerração das chuvas, especialmente nas noites sem lua. Cordas d’água intermináveis, a recordar, numa recapitulação bíblica, as diluvianas cataratas celestes descem das alturas, alagando a planície. E tudo ao longe, das seis da tarde às seis da manhã, fica fora do raio visual, impenetrável à vista, restringindo no âmbito estreito duma redoma preta.

(...) Nestas condições, desde que as marcas do roteiro, distribuídas nos lindes litorâneos, sejam reconhecidas sob mau tempo, os navios trafegam. Os clarões das faíscas elétricas, num rápido lampejo, é verdade, deixam vislumbrar o cenário. (...) O fogo do céu serve, pois, de farol aos transportes que sulcam a grande artéria nessas noites negras”.

- As Lendas

“A teia aracnídea das lendas amazônicas, vasta e complicada, cômica e trágica, tanto mais extraordinária quanto envolta no mistério, é originária de todos quadrantes do globo. (...) Em cada ponto da planície equinocial, no ocidente ou no oriente, nas colinas do sul ou nas serras do norte, inventadas pelo aborígene, trazidas pelo africano, espalhadas pelo português, divulgadas pelo forasteiro, ingênuas, inverossímeis, risonhas, tenebrosas – as histórias dos animais e das sereias, dos gnomos e dos pajés empolgam a imaginação fecunda, plástica da gente que erra no Vale”

- A Inundação

“(...) Dias e dias antes que role do firmamento a primeira gota d’água, manifesta-se esse fenômeno meteorológico que precede as cheias. Pela manhã, no quadrante do nordeste, pela tarde, no quadrante do sueste, registrando a refração da luz nas nuvens, destaca-se o arco-íris, ponte luminosa e encantada, que liga, no espaço, o sistema planetário e projeta, na menina dos nossos olhos, as sete cores do espectro solar. Impelidas pelos alísios continuam vagando as nuvens até que se chocam com as baixas temperaturas dos picos andinos, blindados de gelo, encapotados de neve, forrados de bruma. Condensam-se e precipitam-se em chuvas leves, finas, refrangentes primeiro, mal ensopando o solo, para depois se despenharem pesadas, grossas, densas, em cataratas que alagam as rechãs, fazendo de cada dobra de chão, de cada sulco de pedra, de cada rego de encosta o leito íngreme dum riacho”.

- O Apuizeiro

“(...) O curumazeiro, dos mais vigorosos e dos mais altos, de maior porte, de maior resistência, âmago de ferro, que sacode a cabeleira revolta muito acima do oceano de franças verdejantes e perfuma com o aroma de suas sementes o ambiente úmido da mata, príncipe negro dos bosques – não lhe resiste ao ataque. Empolgado, comprimido, malhetado, espartilhado nas dobras do colete luciferiano, ou no laço carrasco do vegetal enforcante, o Hércules da selva, gigante entaniçado, estiola, fenece, seca, e mirra nos panos horripilantes daquele invólucro. Mortalha e ataúde, féretro e epiderme ao mesmo tempo, por ali a matéria do cadáver devorado palpita, floresce e frutifica na gloriosa verdade do enunciado de Lavoiser”.

- A Friagem

“(...) No fundo da planície, toda murada pelos Andes, em certos meses do ano, de maio a agosto, a esplanada se ressente com as alternativas barométricas, sensíveis para quem vive acostumado às médias de 25 graus. São os ventos que perturbam a regularidade atmosférica. De maneira que as correntes aéreas constituem a influência mais preponderante na climatologia amazônica. Quando sopram de baixo, refrigeram e abrandam os ardores; quando sopram de cima, modificam de tal forma o clima, baixando para 16 graus, para 12 graus, para 10 graus, que a população sofre muito”.

- Os Seringueiros

“(...) Filho da região, adaptado ao solo por hereditariedade, guarda um tom discreto, um ar resignado nos modos e na fala. Pode ser ingenuidade e pode ser desilusão. Humilde, desambicioso, alheio ao conforto, mora em palhoças sobre terrenos alagadiços. A estacada que as suspende lembra a palafita das habitações lacustres. Casado cedo, enche-se de filhos, que vivem nus pela beira d’água.

Seu labor, pautado ao arrepio de qualquer sentimento de grandeza, parece o labor de um cético, descrente da glória, da vaidade, da fortuna e da beleza. Não lhe vibram os músculos flácidos os impulsos que transformam os fracos e os simples em potentados e poderosos. Apático, não ri, sorria apenas. Com a energia embotada e o caráter frouxo, a condescendência e a tolerância fazem-no ridículo. Cortando seringuais esgotados, ganha pouco, o suficiente para não morrer de fome. Além disso, é fatalista. ‘Deus não falta a quem promete’, assegura supersticiosamente na conversa.” 

Fonte:http://www.brasiliana.com.br/obras/na-planicie amazonica/pagina/13/texto 

Coronel de Engenharia Hiram Reis e Silva
Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA)
Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS)
Acadêmico da Academia de História Militar Terrestre do Brasil (AHIMTB)
Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS)
Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional
Site: http://www.amazoniaenossaselva.com.br
E-mail: hiramrs@terra.com.br

* O conteúdo opinativo acima é de inteira responsabilidade do colaborador e titular desta coluna. O Portal Gente de Opinião não tem responsabilidade legal pela "OPINIÃO", que é exclusiva do autor.

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