Quarta-feira, 6 de maio de 2015 - 09h01
Hiram Reis e Silva (*), Porto Alegre, RS, 04 de maio de 2015
Falar de Rondon é abusar dos adjetivos, é falar no superlativo. Encontramos, na obra de Esther de Viveiros, relatos pessoais, ditados na primeira pessoa, que não nos cabe, como pesquisador, nada acrescentar, nada a retocar, pois foi o próprio Rondon que ditou à jornalista e escritora, pouco antes de falecer, sua história que foi consolidada, mais tarde, no livro Rondon conta sua vida. Apresentamos ao leitor brasileiro a vivência contagiante de brasilidade de um ícone tão magnífico que a nação resolveu materializar sua grandeza batizando um estado brasileiro com seu nome ‒ Rondônia.
Escola Superior de Guerra
Anchieta, Aspilcueta e Nóbrega ressurgem unificados nessa personalidade incomparável, única, abençoada, nesse homem que tão alto eleva a nossa raça, a nossa nacionalidade, desmentindo, pelo exemplo, por atos e palavras, o pessimismo ultramontano dos que descreem de nossos destinos... Rondon, ao lado das tarefas de técnico, desdobra, maravilhosamente, as energias de um Santo. E de tribo em tribo, de taba em taba, de maloca em maloca, vai esse homem admirável surgindo, de olhos brilhantes e sorriso nos lábios, estendendo ao silvícola, sobre a palma da mão leal, sementes de fraternidade, germes de progresso, de paz, de harmonia e confiança.
(Castro Menezes)
“Alferes-aluno” era um título acadêmico, prêmio concedido aos que no 1° e 2° anos não tivessem tido nota inferior a “plenamente” em nenhuma matéria ‒ do mesmo modo que só poderiam seguir o curso de Engenharia Militar os alunos que não tivessem nenhum “simplesmente” em sua vida escolar preparatória. “Alferes-aluno” era prêmio muito difícil de obter. Era eu o 1° na lista de 1886, para a promoção a “Alferes-aluno”. Em tão pequeno quadro havia, entretanto, pouquíssimas vagas. Não me resignava a essa indefinida expectativa. Dirigi um requerimento ao Comandante da Escola, pedindo que providenciasse para a promoção pela qual, 1° na lista, há dois anos eu esperava. O Comandante chamou-me ao seu gabinete e mostrou-me, com bondade, o quanto é a disciplina indispensável à vida militar ‒ de que é a base. Explicou que meu requerimento constituía grave ato de indisciplina, passível de prisão na Fortaleza de Santa Cruz, mas que, conhecendo-me, limitaria a afetuosa admoestação.
Ereto, firme, a olhar para o Comandante nos olhos, borbulharam-me ainda uma vez lágrimas grossas e silenciosas. Fui pouco depois promovido a “Alferes-aluno”, a 04.07.1888, passando meu soldo a 50$000 mensais ‒ uma fortuna naquela época, sobretudo para mim que me habituara a uma vida estoica. O primeiro posto de oficial me fora atribuído quando já tinha os cursos de Infantaria, Cavalaria, Artilharia e quase o de Estado Maior de 1ª classe, como simples soldado-aluno. Mas nesse mesmo ano, decisivo em minha vida, tirei o curso de Estado Maior de 1ª classe, tendo estudado astronomia com o Major Oliveira.
Ainda em 1888 criou o Governo a Escola Superior de Guerra, ficando na Praia Vermelha somente os alunos cadetes. Os oficiais foram transferidos para a nova Escola, com sede no Edifício do antigo Arquivo Militar. Na Escola Superior de Guerra, terminei o estudo de Matemática Superior ‒ cálculo das funções ‒ com Benjamin Constant. Criara o Governo a cadeira de Alemão, regendo-a um genro de Benjamin Constant, alemão, e nesse curso me matriculei também. Fui desligado da Escola Superior de Guerra a 8 de janeiro de 1890, 55 dias depois da Proclamação da República, recebendo então o título de Engenheiro Militar e o diploma de Bacharel em Matemática e Ciências Físicas e Naturais. (VIVEIROS)
A Abolição e a República I
O Coronel Rondon tem, como homem, todas as virtudes de um sacerdote, é um puritano de uma perfeição inimaginável na época moderna; e, como profissional, é tamanho cientista, tão grande é o seu conjunto de conhecimentos, que se pode considerar um sábio. Quanto mais eu o conhecia e o estudava, em meio da contemplação da grandeza do Brasil, mais me firmava na ideia de que essa grandeza não era maior do que a do filho ilustre desse recanto prodigioso da Natureza. (ROOSEVELT)
Tive a honra de participar de dois movimentos cívicos que, logicamente, se encadeiam: a Lei Áurea (libertação dos escravos) e a Proclamação da República. O ano 1888 foi de intensa preocupação social, reflexo da grande crise que abalara a França. Lá, movimento negativo, conduzido pela Metafísica ‒ fase iniciada em fins do século XIV ‒ oscilava entre a escola filosófica de Voltaire e a escola política de Rousseau, proclamando uma a liberdade, pretendendo outra a igualdade, incapazes ambas de construir. Mas no trinômio lendário da Revolução Francesa ‒ “Liberdade, Igualdade, Fraternidade” ‒ representava esta a parte construtiva, constituindo todo o programa de reorganização social. Sustentada pelos Enciclopedistas, com Diderot, Hume, d’Alembert, Condorcet, era defendida por Danton. A esta escola se ligaram os ardorosos moços da Escola Militar, orientados pelo Tenente Coronel Benjamin Constant Botelho de Magalhães, o Mestre Amado. Por ele esclarecidos, compreenderam que o caos tremendo, em que as cabeças de um Lavoisier e de um Condorcet tinham sido lançadas, sem hesitação, como alimento ao novo Moloch, não representava de modo algum as fraternais aspirações dos Enciclopedistas. Não mais confundiram os esforços construtores de Danton, Hoche, Carnot, com a fúria assassina e os processos sanguinários de Robespierre. Embeberam-se na essência regeneradora daquela explosão, cujos reflexos iluminavam novos horizontes. E foram abolicionistas e foram republicanos. Já era antigo o anseio de libertar os escravos. Mesmo antes do grande José Bonifácio, os conspiradores da “Inconfidência”, em 1789, os patriotas revolucionários pernambucanos de 1817 e os chefes de outros movimentos republicanos projetavam suprimir a escravidão, caso fossem vitoriosos.
Moloch: deus amonita para o qual eram realizados sacrifícios dos recém-nascidos. (Hiram Reis)
Por outro lado, a nacionalidade se viera formando e aspirava à independência sob a forma republicana: fora o patriota Bernardo Vieira de Melo, em 1710 (guerra dos Mascates), os conspiradores mineiros de 1789, as grandes revoluções de 1817 e 1824, a guerra civil dos Farrapos, no Rio Grande do Sul, além de outros movimentos de menor gravidade. Desde 1870, era a propaganda republicana feita com mais firmeza, formando-se clubes, combatendo-se a monarquia pelos jornais, em reuniões cívicas.
Os oficiais quase não permaneciam mais na Escola, empenhados em conferências políticas, sobretudo nas de Silva Jardim. Advertiu-os o Comandante da Escola de que se deveriam abster de comparecer a essas conferências.
‒ Pelo menos, acrescentou, não o fizessem fardados. É inútil dizer que eu me entregara de corpo e alma a essas aspirações renovadoras.
Ao ouvir a advertência do Comandante, levantei-me e declarei:
‒ Não posso ir a parte alguma sem ser fardado; o Senhor Comandante fará o que julgar de seu dever.
Principiou o Governo a se preocupar, sobretudo com o efeito dessa atitude dos oficiais no ânimo dos alunos. Daí a reorganização a que me referi: na Escola Militar da Praia Vermelha continuaram os Cadetes e passou a funcionar a Escola Superior de Guerra, para os oficiais, no edifício do antigo Arquivo Militar, defronte ao Quartel do 2° Regimento de Artilharia a Cavalo, à Avenida Pedro II, depois Pedro Ivo. Aí estudava eu Alemão e Matemática Superior ‒ cálculo das funções, mas o estudo caminhava paralelamente às preocupações sociais, ao entusiasmo com que prometera dar a vida pela organização de uma sociedade melhor, mais fraterna. A questão militar viria agravar a efervescência, questão esta, em parte, consequência do erro político da monarquia de manter a escravidão, deixando que o movimento abolicionista se fizesse à revelia do Governo, apesar do magistral projeto de José Bonifácio, concebido desde 1823, segundo o qual o tráfico seria extinto dentro de quatro a cinco anos, abolindo-se gradualmente o cativeiro. No regime antigo, em que a civilização era militar, compunha-se a sociedade de vencedores e vencidos, praticamente, de soldados e escravos. A estes cabiam as funções industriais, àqueles a profissão da guerra. As lutas quotidianas punham em evidência a superioridade dos chefes, dando-lhes inexcedível prestígio sobre as tropas que os seguiam como prediletos da vitória. A partilha do perigo e das privações, a ansiedade com que, temerariamente, buscavam as posições mais arriscadas, a imperturbabilidade com que arrostavam as mais duras provações, acendiam no ânimo dos soldados verdadeiro entusiasmo pelos seus chefes. A estes, por outro lado, a convicção de que eram seres superiores, de origem sobre-humana, pelo direito divino, a veneração extrema de que se viam cercados, davam uma dignidade de que debalde se procuraria hoje equivalente. Tudo concorria, pois, para a mais completa obediência dos subordinados, base de perfeita disciplina. Tal regime, porém, se foi diluindo e acabou por se esgotar em fins do século XIII, quando se iniciou a longa transição revolucionária que se agravava dia a dia, buscando, desordenadamente embora, atingir o regime pacífico-industrial.
Era o Imperador, pela sua origem, um Chefe militar ‒ nunca, porém, pelas suas tendências. A índole simpática do povo brasileiro, que leva os “próprios militares a se subordinarem à influência da opinião civil, garantiu-lhe a obediência de oficiais saídos de classes imbuídas de constitucionalismo e ligadas ao trono por interesses diversos. A disciplina foi fácil, também, por ser diminuta a força armada de terra e Mar, até a guerra do Paraguai. Passaram então as solicitudes para com o Exército e a Marinha a preponderar no Governo, pelo fato de o Príncipe consorte ter chefiado o desfecho da Guerra. Assim, o desenvolvimento do Espírito Militar depois desta e, paralelamente, a evolução de sentimentos e opiniões, que se vinha processando desde Tiradentes, tornaram precária a obediência ao Imperador e a direção política foi saindo das mãos dos civis para as das corporações militares. O dissídio se alargava”.
Em 1888, enviou o General Manoel Deodoro da Fonseca (Foto) uma representação à Princesa, para que“não obrigasse o Exército a colaborar na captura dos escravos”. Estava assim feita, de fato, a abolição, certos os fugitivos de que ficariam impunes, uma vez que o Exército não mais colaboraria nas batidas para capturá-los. Não tendo a Monarquia mais força para manter a escravidão, a abolição se fez “porque a Nação o quis e assim o quis” disse João Alfredo, o autor da “Lei Áurea”. A fraqueza da Monarquia não decorreu, pois, da abolição e, sim esta é que proveio daquela.
Eis um trecho da representação que o General Manoel Deodoro da Fonseca enviou à Princesa:
Diante de homens que fogem calmos, sem ruído, mais tranquilamente que o gado que se dispersa pelos campos, evitando tanto a escravidão como a luta, e dando, ao atravessar cidades inermes, exemplo de moralidade cujo esquecimento tem feito muitas vezes a desonra dos exércitos mais civilizados, o exército brasileiro espera que o Governo Imperial lhe concederá o que respeitosamente pede, em nome da honra da própria bandeira que defende.
Como castigo, e para afastá-lo da Capital, pelas suas atitudes nas questões militares, foi Deodoro, embora amigo pessoal da Família Imperial, destacado para Corumbá, como Comandante das Armas e das forças de observação na fronteira com a Bolívia. (VIVEIROS)
Fonte: VIVEIROS, Esther de. Rondon Conta sua Vida ‒ Brasil ‒ Rio de Janeiro ‒ Livraria São José, 1958.
(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;
Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);
Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM - RS);
Sócio Correspondente da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER)
Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS);
Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
E-mail: hiramrsilva@gmail.com;
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – X
Bagé, 20.12.2024 Continuando engarupado na memória: Tribuna da Imprensa n° 3.184, Rio, RJSexta-feira, 25.10.1963 Sindicâncias do Sequestro dão e
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – VI
Silva, Bagé, 11.12.2024 Continuando engarupado na memória: Jornal do Brasil n° 224, Rio de Janeiro, RJ Quarta-feira, 25.09.1963 Lei das Selvas T
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – IV
Bagé, 06.12.2024 Continuando engarupado na memória: Jornal do Brasil n° 186, Rio de Janeiro, RJSábado, 10.08.1963 Lacerda diz na CPI que Pressõessã
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – III
Bagé, 02.12.2024 Continuando engarupado na memória: Jornal do Brasil n° 177, Rio de Janeiro, RJQuarta-feira, 31.07.1963 JB na Mira O jornalista H