Sábado, 9 de maio de 2015 - 18h54
Hiram Reis e Silva (*),
Porto Alegre, RS, 08 de maio de 2015
Rondônia de Roquette-Pinto
Um civilizado a quem a civilização não faria falta, porque seria capaz de reconstituí-la dentro da mata, adaptando-se ao meio e extraindo dela valores culturais, sem perda do instinto nativo, ou por um refinamento prodigioso desse mesmo instinto.
(Carlos Drummond de Andrade)
Edgar Roquette-Pinto
Médico, antropólogo e educador brasileiro, filho de Manuel Menelio Pinto e Josefina Roquette-Pinto Carneiro de Mendonça, nascido no Rio de Janeiro, no Bairro de Botafogo, em 25.09.1884, Roquette-Pinto foi o precursor da radiodifusão brasileira, sempre com o objetivo de difundir cultura e educação. Graduou-se em Medicina, com especialização em Medicina Geral, mas logo rumou para a Antropologia, sendo nomeado Professor assistente de Antropologia do Museu Histórico Nacional em 1906. Conheceu então uma das figuras mais marcantes para sua biografia e para a História do Brasil, o Tenente Coronel Cândido Mariano da Silva Rondon. Roquette-Pinto acompanhou Rondon em uma de suas expedições à Serra do Norte, tendo contato com os índios Nhambiquaras e pioneiramente filmando uma civilização que ainda vivia na pré-história em plena alvorada do século XX. Filmava e tomava apontamentos a todo instante em seus cadernos de viagem.
Nessa Expedição ‒ e em toda a sua vida ‒ foi etnógrafo, sociólogo, geógrafo, arqueólogo, botânico, zoólogo, linguista, farmacêutico, legista, fotógrafo, cineasta e folclorista. Com todas as experiências e anotações que trouxe na bagagem, Roquette-Pinto passou os quatro anos seguintes escrevendo um dos marcos da Etnografia brasileira, o livro “Rondônia”, que o levaria posteriormente à Academia Brasileira de Letras. (Rádio FM 94,1 ‒ Roquette-Pinto)
Roquette, o Explorador
No monstruoso percurso pelas selvas do Mato Grosso e do Amazonas e pelas Bacias dos Rios Paraguai, Juruena e Ji-Paraná, a morte acompanhou cada passo de Rondon, Roquette e seus homens. Dias e dias de caminhada podiam ser feitos sem Sol visível, debaixo da espessa vegetação ‒ e se avançassem um quilômetro por dia isso era considerado ótimo. O princípio da Expedição era a pacificação dos Nhambiquaras, até então arredios a qualquer contato com o colonizador. Arredios e hostis. Os mateiros de Rondon eram flechados à distância por mãos invisíveis; outros eram capturados e devolvidos sem cabeças; e ainda outros se feriam nas armadilhas postas por eles. E havia as ameaças permanentes da selva, como os animais e as doenças ‒ varíola, beribéri, impaludismo. Burros, cavalos e bois iam morrendo e sendo deixados para trás. Os homens eram enterrados pelo caminho e Rondon batizava com seus nomes os acidentes geográficos do percurso. Mas, para o sacrifício de cada homem ou montaria, a Expedição garantia um pedaço de chão que se incorporava efetivamente ao Brasil. Para Roquette-Pinto, era tudo um milagre e esse milagre chamava-se Cândido Rondon. Sendo ele próprio mameluco por parte de avós indígenas, e falando os dialetos de várias tribos, Rondon conseguia repassar para os índios sua mensagem de paz ‒ em nenhuma outra época, na história da América, o choque entre o “selvagem” e o “civilizado” foi tão suave e humano. Para isso, seu famoso lema, “Morrer, se preciso for, matar, nunca”, teve de ser, primeiro, entendido pelos brancos que o seguiam. [...]
Os Nhambiquaras contatados por Rondon e Roquette viviam na Idade da Pedra em 1912. Seus machados eram de pedra mal polida. As facas eram lascas de madeira. Não conheciam a navegação, a cerâmica ou as redes de dormir ‒ donde atravessavam os Rios a nado, comiam de mão para mão e dormiam direto no chão. Eram cobertos de bernes, pulgas e piolhos. Nunca tinham visto um homem branco ou negro. E o mal que faziam era, muitas vezes, por ingenuidade: ao ouvir o zumbido dos fios telegráficos, pensavam que o poste ocultava uma colmeia e o derrubavam em busca do mel. Quando Rondon finalmente conseguiu que se aproximassem do acampamento (o que se deu a zero hora de uma noite memorável para Roquette), seus presentes para eles foram de um comovente simbolismo: machados de aço. Poucos anos depois, os Nhambiquaras, já “evoluídos”, iriam rir de seus velhos machados de pedra. (CASTRO)
Roquette e a Nova Raça
É preciso ir lá para retemperar a confiança nos destinos da raça, e voltar desmentindo os pregoeiros de sua decadência. Não é, nem pode ser nação involuída, a que tem meia dúzia de homens capazes de tal heroísmo. (Roquette-Pinto)
Ao contrário das racistas teorias esposadas por pseudocientistas da época, Roquette acreditava na miscigenação e na formação de uma nova e formidável raça na “Terra Brasilis”. Contestava, veementemente, as teses, vigentes, de cientistas como Louis Agassiz e sua esposa Elizabeth Cary Agassiz que afirmavam categoricamente que:
‒ Não se pode negar a deterioração causada pela mistura de raças, mais presente aqui do que em qualquer outro lugar do mundo. Ela está ceifando rapidamente as melhores qualidades do homem branco, do negro e do índio, deixando em seu lugar um tipo mestiço (mongrel) sem qualidades específicas, deficiente em suas energias físicas e mentais. (CASTRO)
Roquette e Rondônia
No futuro, mais precisamente em 1956, o crítico e ensaísta Álvaro Lins estabeleceria uma outra virtude de “Rondônia”: a literária. Segundo ele, era pela força estilista de seu Tratado Científico (e não pelos fracos contos e poemas que depois escreveria) que Roquette-Pinto fazia parte da literatura brasileira.
E Gilberto Freyre, outro exigente no seu julgamento dos colegas, nunca deixaria de elogiar, ao lado da exuberante escrita de “Rondônia”, a “segura base científica” de Roquette ‒ distinção que não conferia a mais ninguém daquele tempo. Em seu livro “Ordem e Progresso”, Gilberto Freyre menciona treze vezes a seriedade de Roquette, ao qual não importavam as loas (discursos), sempre foi modesto ao falar de sua obra-prima:
‒ É um instantâneo da situação social, antropológica e etnológica dos índios da Serra do Norte, antes que principiasse o trabalho de alteração que nossa cultura vai processando. É prova fotográfica ‒ um clichê cru.
Mas, naturalmente, era muito mais que isso. Suas experiências com os nativos e com os homens do Sertão deram a Roquette os instrumentos para desfechar uma campanha antirracista que atingiria em cheio o arianismo então vigente no Brasil. Para muitos naquela época (como para alguns ainda hoje), nossas mazelas seriam originárias da presença dos negros, mestiços e índios na composição racial brasileira.
A tese original era do diplomata francês Joseph Arthur, conde de Gobineau (1816-1882), autor de uma teoria racial da História e que um dia resultaria no nazismo. Uma visão “benigna” do problema, defendida pelo então Diretor do Museu Nacional, o antropólogo João Batista de Lacerda, apostava no “embranquecimento” do povo: em poucas décadas, os sucessivos cruzamentos extinguiriam a raça negra no Brasil [...] Mas Roquette, que via o Brasil como “um imenso laboratório de antropologia”, pensava diferente: “Nenhum dos tipos da população brasileira apresenta qualquer estigma de degeneração antropológica”, escreveu ele. “Ao contrário, as características de todos eles são as melhores que se poderiam desejar. [...] O número de indivíduos somaticamente deficientes em algumas regiões do país é considerável. Isso, porém, não corre por conta de qualquer fator de ordem racial; deriva de causas patológicas cuja remoção, na maioria dos casos, independe da antropologia. É questão de política sanitária e educativa. [...] A antropologia prova que o homem no Brasil precisa ser educado e não substituído”. (CASTRO)
Rondônia
O livro enaltecia, sobremaneira, a figura notável de Rondon e para que o Brasil tivesse noção do quanto essa região devia a ele, propôs que o território, compreendido entre os 8° e 14° de Latitude Sul e entre 12° e 20° de Longitude Oeste, do Meridiano do Observatório do Rio de Janeiro, viesse a se chamar Rondônia.
A essas terras, ele sempre se referiria como “terras da Rondônia”, tais e tão importantes eram os elementos geológicos, geográficos, botânicos, zoológicos e etnográficos dela provenientes, através das Expedições Científicas de Rondon. Embora justificasse plenamente, desde 1915, a criação dessa Província antropogeográfica, o nome de Rondônia só foi adotado para território brasileiro em 1956, quando o Congresso Nacional votou lei mudando o nome do Território do Guaporé, a fim de homenagear o Marechal Rondon.
Na ocasião, aliás, a Sociedade Brasileira de Geografia, em memorial dirigido ao Presidente da República, agradecia o gesto do Governo, mostrando, porém que, para manter a homenagem pretendida por Roquette-Pinto, seria preciso dividir a região em Rondônia Ocidental e Rondônia Oriental, a fim de que a denominação Rondônia pudesse alcançar águas do Juruena, onde foram notáveis as descobertas da Comissão Rondon.
A Rondônia Ocidental seria o atual território, outrora denominado do Guaporé, e a Rondônia Oriental seria a região semi-virgem que prolonga aquela para o lado Leste, dentro do Estado de Mato Grosso, entrando em águas do Juruena. O memorial interpretativo da Sociedade Brasileira de Geografia não foi, contudo, levado em conta [...] (COUTINHO)
Roquette-Pinto e a Antropologia Sul-Americana
Para Roquette-Pinto, a obra científica e social de Rondon não pode ser assaz admirada, conquistando milhares de quilômetros quadrados, fazendo de cada índio, cuja ferocidade não era lenda vã, e cuja animosidade sacrificou tantos homens, um amigo, abrindo à ciência um campo enorme de verificações e descobertas; à indústria, todas as riquezas de florestas seculares.
Assinala, ao voltar da sua Rondônia que, se como estudioso, as observações científicas que pôde realizar ‒ quase todas de grande alcance para o conhecimento da antropologia Sul-Americana ‒ o encheram de alegria; brasileiro, deu-se por bem pago daqueles dias de privações e perigos, porque voltou daquelas terras com a alma refeita, “confiante na sua gente, que alguns acreditam fraca e incapaz, porque é povo magro e feio”.
Diz Roquette-Pinto:
‒ São feios, efetivamente, aqueles sertanejos; muitos, além disso, vivem trabalhando, trabalhados pela doença. Pequenos e magros, enfermos e inestéticos, fortes, todavia, foram eles conquistando as terras ásperas por onde hoje se desdobra o caminho enorme que une o Norte ao Sul do Brasil, como um laço apocalíptico, amarrando os extremos da pátria. (COUTINHO)
Fontes:
CASTRO, Ruy. Roquette-Pinto: O Homem Multidão ‒ Brasil ‒ Rio de Janeiro ‒ Disponível em: www.radiomec.com.br/roquettepinto, 2004.
COUTINHO, Edilberto. Rondon ‒ o Civilizador da Última Fronteira ‒ Brasil ‒ Rio de Janeiro ‒ Olivé Editor, 1969.
(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;
Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);
Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM - RS);
Sócio Correspondente da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER)
Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS);
Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
E-mail: hiramrsilva@gmail.com;
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