Terça-feira, 21 de abril de 2020 - 10h23
Por Hiram Reis
e Silva (*), Bagé, 10.04.2020
A Obsessão do Sangue
(Augusto dos Anjos)
[...] No inferno da
visão alucinada,
Viu montanhas de
sangue enchendo a estrada,
Viu vísceras
vermelhas pelo chão ...
E amou, com um berro
bárbaro de gozo,
O monocromatismo
monstruoso
Daquela universal
vermelhidão!
A Federação n° 46
Porto Alegre, RS ‒ Sexta-feira,
23.02.1894
História do Sítio de
Bagé
Fatos e Documentos
E depois, quando o incêndio atingiu
o auge, os bandidos festejavam a sua obra de destruição com descargas de
fuzilaria e vivas estrepitosos, que iam perder-se no espaço assombrado e mudo
de terror! Foi um episódio da mais requintada selvageria aquele a que fomos
forçados a assistir, neste fim de século de ciência, civilização e humanidade;
foi um espetáculo medonhamente repugnante que exacerbou a santa indignação dos
heroicos defensores da praça.
No dia seguinte, dia de verão cálido
e pesado, entravam na praça senhoras espavoridas, das principais famílias,
acompanhadas de inocentes crianças, banhadas em lágrimas de terror, em busca de
seus esposos e pais, que estavam de armas em punho, batendo-se pela honra da Pátria,
em defesa de suas santas e fecundas instituições, e que, com súplicas, rogos,
lamentos, procuravam retirá-los daquele posto sagrado.
Diziam as pobres senhoras, repetindo
o que haviam ouvido dos infames assaltantes que se preparava inevitavelmente um
ataque à praça à viva força, ou que, pelo menos, ela seria forçada a render-se
pela fome, que a cidade seria completamente arrasada pelo fogo e seus
habitantes sem exceção passados pelas armas. A propagação dessas notícias monstruosamente
assustadoras era o expediente hábil que procuravam os assaltantes para tentar
enfraquecer o ânimo da guarnição e lançarem no seio das famílias o mais
angustioso terror, pensando talvez que as eloquentes lágrimas das esposas extremosas
pudessem afastar os republicanos do cumprimento de seu dever.
A distinta consorte do Dr. Vinhas,
desvairada pela dor, abraçava-se com seu esposo, implorando-lhe que se retirasse
da praça em nome de tudo o que possuiu de mais caro, que se lembrasse de seus
filhinhos inocentes, que procurasse a salvação na fuga. O heroico e valente médico
republicano, acariciando-a amorosamente, respondeu-lhe em tom que não admitia réplica:
Minha cara esposa, o que me propões seria a minha desonra,
e tu não hás de querer ter um marido desonrado e indigno. Fico!
Infelizmente nem todos mostraram
essa grandeza de alma: um de nossos companheiras, revestido das insígnias de Major
da Guarda Nacional, não pôde resistir às solicitações de sua esposa e
acompanhou-a para fora da praça, abandonando o seu posto, abandonando os seus
companheiros, abandonando o seu velho pai, que firme como um espartano apreciou
sem uma palavra a vergonhosa ação de seu filho. É verdade que já anteriormente dera
provas de sua debilidade, desmaiando como uma donzela em ocasião de tiroteios. Deixemo-lo
em paz, entregue à vergonha de seu triste procedimento e aos remorsos que logo
devem tê-lo assaltado. Durante o dia continuou vivíssimo o fogo de fora.
As senhoras a que acima nos referimos
e as outras que vieram à praça, noticiaram-nos que os sitiantes haviam varejado
casas, procurando petróleo para continuarem à noite a tarefa dos incêndios; de
fato, às 7 ½ horas tentaram lançar fogo à loja de chapéus do Sr. Manoel José
Rodrigues, à rua 7 de setembro e a uma quadra das trincheiras, e ao quartel do Major
Francisco Gonçalves Cassão, à rua 3 de Fevereiro.
Mas parece que os elementos indignados,
resolveram opor-se à obra de destruição dos malvados; formou-se subitamente um violentíssimo
temporal que veio impedir a consecução do premeditado incêndio. Repetidos relâmpagos
cortando o espaço em todas as direções, trovões atroadores e medonhos, uma
ventania desenfreada e por fim uma bátega d’água torrencial, tudo isto fez
abortar o plano sinistro dos incendiários.
No entanto aproveitando, a
escuridão pavorosa da noite, os assaltantes fizeram contra a praça uma vigorosa
investida, supondo talvez que nela reinasse a confusão. Todos, porém, estavam a
postos e o ataque foi brilhantemente repelido, casando-se a nossa indignação
com a cólera celeste. Diminuiu a ventania, cessaram os trovões, mas a noite
tornou-se de um negrume pavoroso, cortado frequentemente por fuzis rápidos e
cintilantes, que acendiam no ventre escuro do firmamento lívidos e lúgubres
clarões.
A chuva caia agora tranquilamente,
acariciando a face ressequida da terra, e trazendo ao espírito dos homens uma espécie
de bem estar aliviado.
Nas trincheiras nenhum rumor se ouvia.
Todos se conservaram firmes em seus postos à espera de uma segunda tentativa de
assalto que não se realizou.
Assim permaneceu a guarnição até a
madrugada de 28, sofrendo pela manhã vivíssimo fogo a que não respondeu.
Às 3 horas e 25 minutos da tarde, chegou à praça um parlamento do General Tavares que entregou ao Coronel Telles a seguinte missiva:
Quartel do Comando em chefe do Exército Libertador, 28
de dezembro de 1893.
Ao Sr. Comandante da Guarnição de Bagé.
Há 34 longos dias que com vossa guarnição vos achais
sitiado, sem que o vosso governo tenha podido mandar forças em vosso auxílio.
Como sabeis e vos garanto, a linha férrea está destruída até a estação de Cerro
Chato.
As forças ao mando do coronel Sampaio, compostas do
29° e 32° Batalhões de Infantaria, e uma ala do 30° Batalhão de Artilharia,
todos perfazendo mais ou menos seu total de 800 homens, o 2° e 5° Regimento de Cavalaria
de Linha com 350 homens mais ou menos e alguns grupos de populares, não tem podido
empreender marcha para vos trazer a proteção tão desejada, por insuficiência de
cavalaria.
O General Hyppolito Ribeiro, com 600 homens, mais ou
menos, a 18 do corrente chegou à cidade do Livramento e garanto-vos Coronel,
que a 25 ainda ali se achava, e apesar de sua boa vontade dificilmente vos
trará proteção, já porque em caso algum consentirei que se aproxime, e já
porque não conseguirá o grande número de veículos de que carece para a condução
do material bélico, munições de boca, etc., etc.
Se o General Hyppolito tivesse o propósito de vos
trazer proteção, não teria perdido tanto tempo em procura de veículos, o que
fez crer que o ponto a que se destina é muito oposto ao que supondes.
Existe, como sabeis, em Livramento, um milhão e
duzentos mil tiros, munição de artilharia, armas, equipamento etc. e que tudo o
General Hyppolito pensa e procura levar consigo, o que faz crer que o seu
destino é Cacequi.
O “Exército Libertador”,
dispondo de seis mil homens, nas cercanias de Bagé, bem armados o bem montados,
não consentirá que em caso algum se aproximem as proteções que esperais, pois
que em tempo e lugar oportuno as fará bater, para cujo fim tem forças avançadas
em Pedras Altas e D. Pedrito.
Vossos emissários e nomeadamente o Capitão Souza, que
com tanta generosidade foi acolhido pelo “Exército
Libertador”, já chegou ao ponto de seu destino e entretanto a esperada proteção
não veio nem virá, pelos, motivos que lealmente expus. Agora, que com a verdade
e simplicidade que me caracterizam expus vossa situação, convido-vos, em nome
da humanidade, a depor armas, reservando para vós e vossos comandados as
garantias que em tais casos soem conceder-se.
General Silva Tavares.
O Coronel Telles respondeu imediatamente pela forma seguinte:
Quartel do Comando da Guarnição e Fronteira de Bagé,
28 de dezembro de 1893.
Ao cidadão General Silva Tavares.
Em resposta ao vosso ofício desta data, cumpre-me
declarar-vos que nunca esperei e nem espero as proteções a que vos referis,
pois conto unicamente com as Forças sob o meu comando.
É em nome da humanidade, que devidamente invocais que
vos convido a depor armas, por isso que sois vós os rebeldes que vos armastes
para combater um governo legalmente constituído e que neste momento represento,
defendendo-o enquanto me restar alento.
É ainda em nome da humanidade que vos convido a não
continuardes a consentir que os vossos comandados procedam a saques, ateando o
incêndio a tantas propriedades, do cujo espetáculo tendes sido, como nós, presenciadores.
Carlos Telles, Coronel.
Enquanto esteve na praça o parlamento, ficaram suspensas as hostilidades. Retirado este, recomeçaram com vigor novo. [Continua] (A FEDERAÇÃO N° 46)
Bibliografia:
A FEDERAÇÃO
N° 46. História do Sítio de Bagé ‒
Brasil ‒ Porto Alegre, RS ‒ A Federação n° 46, 23.02.1894.
Solicito Publicação
(*) Hiram
Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas,
Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;
·
Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do
Sul (1989)
·
Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre
(CMPA);
·
Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura
do Exército (DECEx);
·
Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério
Militar – RS (IDMM – RS);
·
Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando
Militar do Sul (CMS)
·
Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia
Brasileira (SAMBRAS);
·
Membro da Academia de História Militar Terrestre do
Brasil – RS (AHIMTB – RS);
·
Membro do Instituto de História e Tradições do Rio
Grande do Sul (IHTRGS – RS);
·
Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia
(ACLER – RO)
·
Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
·
Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio
Grande do Sul (AMLERS)
·
Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da
Escola Superior de Guerra (ADESG).
·
Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
·
E-mail: hiramrsilva@gmail.com.
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – XXVIII
Bagé, 29.01.2025 Continuando engarupado na memória: Tribuna da Imprensa n° 4.281, Rio, RJQuinta-feira, 21.02.1964 Em Primeira Mão(Hélio Fernande
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Bagé, 24.01.2025 Continuando engarupado na memória: Tribuna da Imprensa n° 4.272, Rio, RJ Sábado e Domingo, 08 e 09.02.1964 Jango Atinge sua Maior M
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – XXV
Bagé, 22.01.2025 Continuando engarupado na memória: Tribuna da Imprensa n° 4.268, Rio, RJ Terça-feira, 04.02.1964 Em Primeira Mão(Hélio Fernandes)