Terça-feira, 18 de maio de 2010 - 11h55
“Por mais terras que eu percorra,
Não permita Deus que eu morra
Sem que volte para lá;
Sem que leve por divisa
Esse "V" que simboliza
A vitória que virá:
Nossa vitória final,
Que é a mira do meu fuzil,
A ração do meu bornal,
A água do meu cantil,
As asas do meu ideal,
A glória do meu Brasil”
(Guilherme de Almeida - Canção do Expedicionário)
Fui criado admirando, desde o berço e mais tarde nas lides castrenses, os Heróis pretéritos cujos feitos deveriam ser cultuados, admirados e servir de inspiração para a formação do verdadeiro cidadão. O Herói é aquele que, guiado por ideais nobres e altruístas, é capaz de superar, de forma extraordinária, um problema de dimensões épicas. Hoje, no entanto, o termo foi achincalhado, prostituído e se designam de ‘heróis’ criaturas que não se encaixam, definitivamente, nestes parâmetros. Este é apenas mais um sinal de como a sociedade está, pouco a pouco, perdendo de vista valores que deveriam ser eternamente perseguidos. Infelizmente, o heroísmo que fazia parte do dia a dia dos cidadãos de outrora está se transformando em atos raros e fortuitos nos dias de hoje.
Recebi de meu grande amigo Coronel Luiz Ernani Caminha Giorgis, Vice-Presidente da Academia de História Militar Terrestre do Brasil (AHIMTB) e do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS), a edição de nº 90 de “O Gaúcho” - órgão de divulgação das atividades do IHTRGS. Gostaria de compartilhar um de seus textos com os leitores que reporta a história do resgate de “Chico Paraíba” escrita pelo ex-governador de Goiás e Senador da República Irapuan da Costa Junior.
Chico Paraíba
Por Irapuan da Costa Junior – 10 de julho de 2009
-Tenente Ithamar! A Polícia do Exército americana veio aqui e prendeu o Chico Paraíba. Dizem que vai ser julgado pela corte marcial.
Quem falava era o sargento Arlindo, encarregado do alojamento de uma companhia do 11º Batalhão de Infantaria de Montanha, da FEB - Força Expedicionária Brasileira. Estavam próximos à cordilheira dos Apeninos, e era o inverno italiano, no começo de 1945. O Tenente Ithamar, com seu grupo de reconhecimento, estava chegando de uma missão noturna junto às linhas alemãs. Não tinha havido baixas, felizmente. Mas nem por isso o humor do tenente era dos melhores. Para a perigosa missão, em terreno desconhecido, e à noite, só contava com um guia italiano, em quem, aliás, não confiara muito, desde o início. Soldados em combate desenvolvem um sexto sentido, e o seu não falhara. O italiano era um covarde, que os abandonara na escuridão de uma encosta, em meios a restos de neve, quando uma sentinela alemã, percebendo os ruídos do grupo, rolara uma granada morro abaixo. Que felizmente não explodira muito perto. Escafedera-se o carcamano, e os brasileiros não mais haveriam de ouvir falar nele. Também pudera... Se o encontrassem depois daquilo, iriam moê-lo de pancada, no mínimo. O tenente, quando pensava nele, praguejava entre dentes. Sem orientação, tivera que arriscar uma retirada que só era segura morro abaixo. No sopé, sem direção, poderia cair numa trincheira inimiga e seria um desastre. O jeito fora esperar o inicio da manhã e se guiar, mal e mal, pela bússola. Foi o que fez, e conseguiram retornar, embora os alemães, como todos os combatentes veteranos, tendo desenvolvido uma visão mais acurada, os tivessem percebido, e enviado algumas rajadas de metralhadora, quando se deslocavam. Mas nessa altura já estavam fora de alcance. Era, pois, um tenente Ithamar tenso, sujo, com frio, fome e cansaço quem recebia a má notícia.
- O que o Chico fez para ser preso?
- Disse que estava cansado dessa ração americana e queria fazer uma sopa. Deu um tiro de fuzil numa galinha e fez a sopa. O italiano dono da galinha foi no quartel dos americanos e deu queixa. Eles vieram aqui e levaram o Chico. Tentei discutir com eles, mas não adiantou. Disseram que é crime e está previsto nos regulamentos.
- Mas também está nos regulamentos que quem julga nossos soldados somos nós mesmos. Você não disse isso a eles?
-Sim, disse, mas não quiseram ouvir. Eu não sabia o que fazer, eram muitos. Achei melhor esperar o Sr. chegar.
-Você, Arlindo, que fala inglês, venha comigo. Chame o Gaúcho, e pegue o jipe.
-Vamos só nós?
-Não é preciso mais ninguém.
- Vamos desarmados?
-Não, armamento completo.
No trajeto, Ithamar, também paraibano, ia pensando no seu subordinado e conterrâneo. Chico era um cidadão muito popular na tropa. Sem muita instrução, era, contudo um ás na musica nordestina, cantor, tocador de sanfona, dançarino, contador de causos e piadas. Seu sotaque carregado ajudava. Desinibido e folgazão. Sei que conhecem o tipo. Faz sucesso também em política. Chico era, além disso, bom soldado. Fazia-se respeitar no momento do combate.
-Arlindo, por que você não impediu o Chico de fazer essa besteira? Perguntou Ithamar.
-Quando vi, já tinha feito. Disse a ele que ia ter problema, mas ele disse que estávamos numa guerra de matar homens, e que problema ia ter matar uma galinha?
-Bem próprio da simplicidade do Chico, pensou Ithamar, quando já estavam chegando ao quartel americano.
- Arlindo, quero que você traduza exatamente o que eu disser, seja lá o que for. Entendido?
- Entendido, meu tenente.
O sentinela americano relutou em levar até o oficial de dia aquele tenente com o fardamento sujo e seus dois acompanhantes, mas não podia fazer diferente. Foram recebidos por um capitão americano com quase dois metros de altura, bem fardado, saudável, acompanhado de quatro outros ‘yanques’, que os olhou com certo enfado.
- Diga a ele que lamento aqui comparecer sem estar devidamente fardado, mas que acabo de chegar de missão recebida do comando conjunto e não tive tempo de me trocar. Arlindo traduziu, e o capitão mudou um pouco sua postura, ao notar o olhar cansado do tenente.
- Ele pergunta em que pode ajudar, meu tenente.
- Venho buscar um soldado meu comandado, indevidamente preso pela Policia do Exército americana, que segundo ela, cometeu transgressão disciplinar, e a parte correspondente, para que possamos julgá-lo e puni-lo, se for o caso, em corte brasileira, como manda o regulamento.
- Ele diz que o soldado preso já tem processo em andamento, e pode ser julgado pelos americanos, pois o chefe do comando conjunto é americano. Assim, não pode entregá-lo. -traduziu Arlindo a resposta.
- Diga a ele que não sairemos daqui sem meu soldado, pois não aceito a interpretação dele e sou inteiramente responsável por cada um dos meus.
O americano ouviu, esboçou um sorriso, olhou para os outros americanos e perguntou, logo traduzido por Arlindo:
- Só vocês três? E como vocês pensam em levá-lo?
- Arlindo, traduza exatamente, repetiu Ithamar: Eu não disse que iremos levá-lo. Disse que não sairemos daqui sem ele. Isso significa que, se preciso for, combateremos para levá-lo, embora sejamos minoria e provavelmente morramos aqui.
- O americano ouvia com espanto crescente a tradução. Já se preparava para o pior, quando olhou bem no fundo dos olhos do atarracado tenente brasileiro. O que viu lá não foi do seu agrado. Também não foi o que não viu. Não viu medo. Não viu raiva nem hesitação. Viu uma calma determinação que não deixava margem a dúvidas. Viu que a afirmação que ouvira com espanto era a pura expressão da verdade. Prova é que o tenente estava aferrado à sua Thompson, e por certo faria um estrago antes de morrer, se um tiroteio começasse ali. E ele estava diretamente na frente, enquadrado na linha de tiro. Ou então – quem sabe? – sentiu admiração por aquele tenente exausto, que como ele, lutava longe de casa pela liberdade, e não abandonava um dos seus nas mãos de estrangeiros, ainda que aliados.
O silencio era gritante. Dizia muitas coisas. Mas não durou muito, embora parecesse não acabar mais. Um minuto? Menos. O americano virou-se para um subordinado: - Busque aquele caipira e entregue a eles!
Ninguém falou mais nada. Nem quando Chico Ceará, risonho, sem saber da tragédia que quase tinha provocado, entrou na sala. Ithamar fez a continência de praxe, voltou-se e saiu, com seus soldados e um Chico já tagarelando de alegria. Ouviu o americano falar algo para seus companheiros. Mas nem perguntou a Arlindo o que era. Já não interessava mais. Se tivesse pedido a tradução, seria: “Esses brasileiros são loucos. Morreram às dúzias para tomar o Monte Castelo. Verdadeiros suicidas.”
(Essa crônica é uma homenagem ao Tenente Ithamar Viana da Silva, que recebeu várias condecorações por bravura na Itália. Na volta da guerra, fez o curso de engenharia no IME- Instituto Militar de Engenharia. Reformou-se como coronel, casou-se com uma goiana e aqui constituiu família. Foi professor universitário em Brasília e ocupou, com dedicação e honestidade exemplares, vários cargos públicos em Goiás. Faleceu em 1999).
Fonte: Hiram Reis e Silva
Coronel de Engenharia, professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA)
Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS)
Acadêmico da Academia de História Militar Terrestre do Brasil (AHIMTB)
Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS)
Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional.
Site: http://www.amazoniaenossaselva.com.br
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