Segunda-feira, 25 de março de 2024 - 08h10
Bagé,
25.03.2024
(Múcio Scervola Lopes Teixeira)
À Memória
dos 120 Náufragos do Paquete Rio Apa
Senhor Deus dos desgraçados!
Dizei-me vós, Senhor Deus,
Se é mentira... se é verdade
Tanto horror perante os céus?!...
(CASTRO ALVES)
Como ao rijo soprar das ventanias
Os mortos boiam sobre as águas frias!
(FAGUNDES VARELLA)
A
dúvida de Hamleto, a dúvida suprema
Dos que
tentam vencer esse fatal dilema
Do ser
e do não ser; ‒ a enervante ironia
Que às
gargalhadas ri, num choro de histeria;
A febre
que nos mina e que não tem remédio,
A
insônia, o desalento, o desespero, o tédio...
‒ Eis o
mal que lateja e cresce surdamente
No
aflito coração da inconsolável gente
Que
entregou as porções mais caras de sua vida
A esse
Navio-Esquife! ‒ a máquina homicida
Que
houve quem atirasse à solidão deserta
Do mar
‒ que não é mais do que uma cova aberta:
Onde o
mastro é a cruz, e os ventos os coveiros,
Que
passam, a cantar, por entre os derradeiros
Estertores
e ais dos náufragos: ‒ que rolam
Na
revolta extensão das vagas, que se empolam
E
saltam, rebentando... e fervem, marulhosas,
Espumando
e rugindo, em convulsões teimosas;
Ora
erguendo-se ao céu, em líquidas montanhas,
Ora se
retraindo ao fundo das entranhas
Do
imenso abismo em treva, escancarado, eterno,
Onde há
monstros! onde há vulcões! onde há o inferno!...
Eu
naufraguei: eu posso imaginar horrores l
Posso
pintar ao vivo as explosões de dores,
Os
presságios, o espanto, a rápida esperança
Que
surge, pra mais fundo ir enterrando a lança
Do
medo, do terror, ‒ d'essa mortal tristeza
Que nos
invade a alma em face da certeza
De um
perigo iminente, horrível, sobre-humano,
Vendo
tão longe o céu... e tão vasto o oceano!...
Estou
vendo a correr de um para o outro lado
Um
pequeno, que ri, vendo o pai espantado...
Outro,
que pede à Mãe um doce ‒ no momento
Em que
ela crava mais o olhar no firmamento!...
É
horrível de ver-se a nau desarvorada:
A corda,
que rebenta ao choque da lufada,
Sibila,
estala, zune... O pano, que se rasga,
Tem não
sei que da voz da fera que se engasga
Com os
ossos da presa, enquanto ruge, rouca,
Sentindo-a
espernear por lhe fugir da boca!...
Estoura
o raio! ... Estoura a embarcação! ... Estoura
A onda
‒ que de espuma o firmamento doura!...
‒ Em
pina-se o navio ‒ e range surdamente...
Cai o
mastro, esmagando uma porção de gente!
Uma
vaga, que lambe a proa, cospe n'água
O homem
do leme... uma outra inunda a viva frágua...
Oh! ...
Rebenta a caldeira em nuvem de estilhaços! ...
Uns ‒
nem soltam um ai... outros, ficam sem braços,
Sem
olhos, sem saber da esposa idolatrada,
Do
filhinho gentil, da Mãe ‒ que de assustada
Nem
podia rezar...
Já
ninguém mais se entende...
E um
coro sem igual de súplicas se estende
Da
vasta solidão dos implacáveis mares
À vasta
solidão dos insensíveis ares!...
Aonde
está Deus? ‒ Não sei...
Ah! mas
se Deus existe
Como é
que ele não vê aquele quadro triste,
Horrível,
monstruoso?! ... Esse naufrágio bruto
Que a
tantos leva a morte e a tantos traz o luto! ...
Como é
triste morrer de um modo tão pungente
‒ A
virtuosa Mãe, o filhinho inocente,
O
esposo honrado e bom, a esposa casta e bela,
E a
virginal irmã ‒ que a virginal capela
Ostentava,
gentil, tão cheia de esperanças!...
E os
bandos infantis das tímidas crianças,
Com
lágrimas na falia e súplicas nos olhos,
Que a
onda arrasta... atira, esmaga nos escolhos!
Há um
confuso lutar, como as visões de um sonho.
E tudo
se afundou n'um turbilhão medonho!...
Mas nem
todos aí morreram nesse instante;
Para
maior angústia e dor mais lacerante,
Dizem...
é espantoso! ‒ e dizem a verdade:
Que
rolaram do mar na imensa soledade,
Dia e
noite a lutar ‒ lutando tantos dias ‒
Uns
míseros, que após tão lentas agonias
Deram à
costa... e lá, de todo abandonados,
Uns
morreram à fome... outros — apunhalados!...
O cão,
que encontra o cão ferido em seu caminho,
Lambe-lhe
o ferimento e leva-o com carinho;
A
formiga, que vê as outras esmagadas,
Deita-lhes
terra em cima e toma outras estradas...
‒ Os
elefantes têm- necrópoles sombrias:
E só o
Homem deixa, assim, por tantos dias,
Tantos
homens, oh! Deus! naquelas águas frias!
Crepúsculo, n° 15
Desterro (Florianópolis), SC – 30.07.1888
Sobre o “Rio Apa”
(Carlos de Faria)
À Múcio Teixeira
(Brilhante Poesia – Naufrágio do “Rio Apa”)
Aquela abandonada e triste
caravana
De almas entre o furor dos
bravejantes mares
De certo que morreu bradando para
os ares:
– A humanidade já deixou de ser
humana!
Sim! Que o abutre espectral e negro
do abandono
Foi desta vez [que horror] a
bússola de morte
A tantos seres que hoje o
interminável sono
Dormem na solidão, em lúgubre
coorte!
Só de se imaginar nessa terrível
cena,
O coração se rasga e grita e se
espedaça;
E ainda se dizer que na amplidão
serena
Do calmo Azul existe um Deus para
a desgraça!
Tarde demais ergueu-se a santa
mão do Auxílio
Aos náufragos que, em ais foram
morrendo à toa
Do largo Oceano azul no
aprofundado exílio
Onde, assim como a vaga a nossa
esperança voa...
Eu, que adoro a tranquila e
alegre cor das ondas
Quando abre o céu da noite a
constelada umbela,
Doe-me essas narrações das
trágicas, hediondas
Lutas do braço hercúleo e doido
da procela. [...]
Laguna, 8 de
agosto de 1887. [Dos Meteoros]
Bibliografia
CREPÚSCULO, N° 15. Sobre
o “Rio Apa” – Brasil – Desterro (Florianópolis), SC – Crepúsculo, n° 15,
30.07.1888.
LOPES TEIXEIRA, Múcio Scervola. Poesias e Poemas de Mucio Teixeira (1886-1887) – Brasil – Rio de
Janeiro – Imprensa Nacional, 1888.
(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de
Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor
e Colunista;
Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do
Sul (1989)
Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre
(CMPA);
Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura
do Exército (DECEx);
Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério
Militar – RS (IDMM – RS);
Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando
Militar do Sul (CMS)
Ex-Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia
Brasileira (SAMBRAS);
Membro da Academia de História Militar Terrestre do
Brasil – RS (AHIMTB – RS);
Membro do Instituto de História e Tradições do Rio
Grande do Sul (IHTRGS – RS);
Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia
(ACLER – RO)
Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio
Grande do Sul (AMLERS)
Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da
Escola Superior de Guerra (ADESG).
Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
Membro do Instituto Histórico e Geográfico do Tapajós
(IHGTAP)E-mail: hiramrsilva@gmail.com.
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