Segunda-feira, 27 de maio de 2024 - 07h58
Bagé,
27.05.2024
Relato Pretérito ‒ Arroio São Miguel
Auguste de Saint-Hilaire (1820)
SÃO MIGUEL, 2 de
outubro (1820).
– Estive herborizando hoje, na Serra de São Miguel, e fiquei sobremaneira
satisfeito com essa excursão. Depois de São Paulo, ainda não havia feito tão
boa jornada.
Entre as plantas que encontrei,
um grande número pertence à flora europeia e, embora tenha eu percorrido
lugares secos e descobertos, as plantas recolhidas são, em geral, tenras e de
consistência mole.
Em torno do Fortim, onde o
terreno é um pouco úmido, a erva se mostra bem verde, e aí crescem muitos
arbustos. Mais longe, o terreno é seco; os arbustos rareiam e, por toda parte,
veem-se pedras volumosas. A serra é estreita; sua altura é a de uma colina
comum e apresenta cimos arredondados, interrompidos em muitos lugares. Fui
acompanhado, neste passeio, por Firmiano e de um homem a pé, por que não é
desta Capitania.
O morro da Vigia, aproximadamente
a uma légua do Fortim, considerado o ponto mais elevado da serra, foi o termo
de nosso passeio. Neste momento pode-se avistar o Fortim, as barracas, os
soldados, a estância de Ângelo Núnez, uma imensa extensão de campos e o Rio São
Miguel, que descreve mil voltas na planície.
Pelo que me disseram o Capitão
das guerrilhas e Ângelo Núñez, esse Rio [Arroio São Miguel] nasce no Lago dos
Oulmaês, perto de Angustura, que constitui os novos limites da Capitania.
Atravessa, primeiro, terrenos
pantanosos, desenha mil voltas, forma uma ilha, passa aqui e vai lançar-se na
Mirim, no Pontal de São Miguel, que fica à extremidade desse Lago, e onde
podem ancorar iates.
De São Miguel à Lagoa, contam-se
duas e meia léguas em linha reta. No inverno, os iates chegam até aqui, mas no
verão ficam retidos à embocadura do Rio, pelas areias e uma enorme quantidade
de aguapé [Pontedina]. Pescam-se, no Rio São Miguel, várias espécies de peixes,
tais como pintados, jundiás e traíras.
Deixando o morro da Vigia,
seguimos o caminho que vai de São Miguel à guarda de Canhada-Chica, onde estão
alguns homens. Chegados à altura da estância de Ângelo Núñez, recomeçamos a
atravessar os campos, e nos dirigimos para ela. Ângelo Núñez era, antes da
guerra, o proprietário mais rico da região, mas tendo sido igualmente
maltratado por espanhóis e portugueses, está atualmente quase arruinado.
Sob o pretexto de que tomara o
partido dos seus compatriotas, seus vizinhos portugueses caíram-lhe sobre as
terras, pilhando reses e até os móveis de sua casa. Uma das maiores injustiças
que cometeram os portugueses, nessa guerra, foi a de terem considerado como
crime de rebelião a resistência dos espanhóis. Os portugueses não agiam como
aliados do Rei de Espanha; apossavam-se por conta própria do território de seus
vizinhos e, consequentemente, era muito natural que estes se defendessem. Podiam
ser tratados como inimigos, mas como rebeldes nunca.
De qualquer sorte, o Conde de
Figueira veio ainda agravar a situação do infeliz Ângelo Núñez apoderando-se,
em nome do Rei, do terreno onde estava situada a estância do espanhol. A
intenção do Conde é de fundar, aí, uma Aldeia, e não se lhe pode negar que, sob
vários aspectos, o local foi bem escolhido.
Os agricultores dos arredores
daqui estão muito distantes de Capilha, para recorrerem ao Capelão que aí
reside e, por conseguinte, se torna necessário construir outra igreja na
península, se não se quiser ver grande parte da população perder toda a noção
de religião e moral.
É igualmente bom porque, sem precisar do Rio Grande, podem sortir-se de mercadorias que lhe são necessárias, e encontrar alguns trabalhadores na vizinhança.
Numa região onde há bastante dinheiro, é preciso, a bem do comércio, proporcionar aos habitantes o meio de gastá-lo. O lugar escolhido pelo Conde para formar uma Aldeia oferece aprazível planície, cercada de colinas. É protegido pelo Fortim; não dista mais do que meia légua do Rio São Miguel, onde os iates podem chegar na estação chuvosa, nem fica mais de duas léguas e meia do pontal de São Miguel, onde se lança este mesmo Rio, que forma a extremidade da Mirim.
A aldeia ficaria sem dúvida melhor, no próprio pontal, ou às margens dor Rio São Miguel, onde passei para chegar ao Fortim, mas não puderam pensar nesses dois pontos, porquanto no inverno as águas pluviais alagam os terrenos. O local preferido pelo Conde já apresentava o inconveniente da excessiva umidade, além de outros, tais como: as águas não são potáveis e na vizinhança não se encontram outros bosques senão os que margeiam o Rio São Miguel, cuja madeira não é aproveitável para construção; mas qualquer que fosse o lugar escolhido, de Capilha até aqui, é incontestável, careceria igualmente de madeira.
Os moradores da vizinhança dizem que esta região não é bastante povoada para que a aldeia possa constituir-se dentro de poucos anos, e acrescentam que as pessoas que já procuraram terras para aí construir suas casas, sendo extremamente pobres, só podem, realmente, ter intenção de revendê-las.
Entretanto, estou convencido de que, se for construída uma igreja nesse lugar e se trouxerem um Padre, os estancieiros dos arredores aí construirão, em breve, habitações, para poderem passar os domingos e os dias de festa e, portanto, aí, se estabelecerão, dentro de pouco tempo, tavernas e, em seguida, operários e mercadores. Pretendem dar à nova aldeia o nome de Castelo Branco, que é o sobrenome do Conde. (HILAIRE)
Bibliografia
HILAIRE, Auguste de Saint-. Viagem ao Rio Grande do Sul – Brasil ‒ Rio de Janeiro, RJ ‒ Companhia Editora Nacional, 1939.
(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;
Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989);
Ex-Vice-Presidente da Federação de Canoagem de Mato Grosso do Sul;
Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);
Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
Ex-Vice-Presidente da Federação de Canoagem de Mato Grosso do Sul;
Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS);
Ex-Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO);
Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS);
Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG);
Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN);
Membro do Instituto Histórico e Geográfico do Tapajós (IHGTAP)
E-mail: hiramrsilva@gmail.com.
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