Sexta-feira, 15 de março de 2024 - 08h05
Bagé,
15.03.2024
Jornal do Commércio, n° 231
Rio de Janeiro, RJ – Sexta-feira, 19.08.1887
O Naufrágio do “Rio Apa”
O Sr. Capitão de Fragata Carlos Frederico de
Noronha, digno comandante da praticagem da Barra, varreu já a sua testada ([1]),
e com ele todos os demais empregados daquela importante repartição marítima.
Damos, em secção especial, alguns importantes
documentos que restabelecem a verdade controvertida, isentando a praticagem da
Barra e as responsabilidades imaginárias que lhe forem assacadas ([2]).
Julgamos desnecessário recordar tudo quanto se
disse em desabono do Sr. Comandante da Barra; basta lembrar que se o expos à
execração dos povos jungido ao peso de acusações pela menor das quais mereceria
a pena capital, nada menos.
Quisemos, desde o princípio desta questão,
tomar a defesa do zeloso funcionário, por sabermos que na triste emergência do
dia 11 não discrepúra ([3])
um ápice da linha do dever; mas S. S. impediu-nos de o fazer alegando a
ponderosa ([4]) circunstância de que lhe
cumpria, antes de permitir qualquer justificação em público, dar conta aos
poderes competentes da sua conduta.
Os documentos que inserimos não constituem todo
o cabedal de provas; há ainda outras que verão à luz da publicidade e que
projetara a luz da evidência sobre amas quantas particularidades articuladas
pelos agressores de S. S.
Que o “Rio
Apa” não entrou na Barra, no dia 11, por motivos independentes da vontade
da praticagem, é um fato inquestionável; que a lancha “S. Leopoldo” tentou ir à fala com o Paquete, é indiscutível; que,
enfim, foram inutilmente envidados esforços para dar-lhe entrada, não padece,
dúvida.
A natureza opôs-se a todas as tentativas; e a
natureza é a maior de todas as forças maiores.
Porém, os que querem à todo o transe
responsabilizar a praticagem, ponderam do alto de sua sabedoria, que podia ter
sido mandado o “Lima Duarte”
desempenhar o serviço que a “S. Leopoldo”
não pode levar à cabo. Qual o motivo, porém, por que a “S. Leopoldo” não se fez aperceber de bordo do “Apa” ou não pode avistá-lo? Por motivo de ter sobrevindo uma carga
de cerração ou neblina. Cremos que o “Lima
Duarte” não possui a qualidade miraculosa de desfazer cerrações; logo
subsistiria para ele a mesma dificuldade, a mesma impossibilidade que a “S. Leopoldo” não conseguiu vencer.
Com o tempo que fazia o “Lima Duarte” era o navio menos próprio para aventurar-se ao Mar. De
calado superior à “S. Leopoldo”,
seria fácil que logo à saída as ondas o impelissem para cima do Banco. Conhecem
acaso os leitores as condições náuticas do “Lima
Duarte”?
É possível que não, e neste caso reproduziremos
aqui o que dela disse um digno oficial que esteve no Comando da Barra e que
realizou uma experiência com o navio em questão. Pode o “Lima Duarte” em circunstancias favoráveis rebocar e prestar bons
serviços nesta Barra, por ser de força e de calado apropriados:
Mas não poderá bem atingir os fins a que é
destinado, porque quando a Barra estiver agitada ou brava não a poderá transpor
para levar auxílio ou socorro a navios lá fora, como muitas vezes é preciso e
como acabo de verificar saindo hoje à Barra, que não estando brava, mas apenas
agitada, embarcou o navio mares que o assoberbaram, etc, etc.
Em período anterior o mesmo oficial escreve:
É o “Lima
Duarte” um rebocador de bastante força, tendo, a meu ver, excelente máquina
e caldeira e bom governo, mas muito raso e de baixa borda, tornando-se
enxovalhado com qualquer mar.
Cumpre notar que, então, o vapor era novo,
tinha há pouco entrado no serviço da praticagem.
Queriam os náuticos de terra firme que depois
da “S. Leopoldo” ter-se feito
apressadamente na volta de terra, [16h30] isto é, quando o mau tempo
recrudescia e a atmosfera era rapidamente toldada, pelas neblinas e pela
aproximação da noite, o céu abrisse clareiras que permitissem ver o “Apa”; que o vento, já então violento,
amainasse, e que o Mar enfurecido curvasse humildemente o dorso afim de que a “S. Leopoldo” se aventurasse de novo ao
Mar para servir de guia ao Paquete!
É fácil, longe do teatro do perigo, na
confortável comodidade do lar, sob a proteção dos telhados, imaginar que a
natureza está às ordens do homem, e que se pode fazer tudo contra ela, com o
auxílio da “boa vontade”.
Sem a menor consideração, já não diremos pela
reputação profissional daqueles a quem incumbe o serviço da praticagem, mas
pelo que neles há de humano e de instintivamente generoso, dizem com a maior
despreocupação os que estão aqui a discretear sobre a catástrofe:
– Bah! Foi uma de tantas facilidades... O Apa podia ter entrado se
tivesse havido um pouco de boa vontade.
Aí está: a “boa
vontade” tem, para esses, a incompreensível virtude de subjugar as
potentes forças da natureza em cólera. Com a boa vontade fora possível, depois
das 04h30 do fatal dia 11, despejar o horizonte, abater a irritação das vagas,
converter a “S. Leopoldo” num
audacioso albatroz, suprimir um ou dois palmos de quilha ao “Lima Duarte”, para vencer o Banco e
tornar a repô-los quando ele transpusesse a Barra!
Que há a objetar aos sábios? Só se for com a
frase que o honrado prático-mor Miguel Moreira proferiu debulhado em lágrimas,
quando lhe mostraram um artigo de jornal crivado de proposições impossíveis:
‒ Miseráveis! Quisera que estivessem cá e que tivessem saído comigo
ao mar!
Outro dia disse-nos um argumentador de esquina:
Pois o Comandante da Barra não viu, pelo barômetro, que estava iminente uma
tempestade? – Suponhamos que sim, lhe respondemos: porém dado que ele tivesse
consultado, em vez de um, mil barômetros, acaso essa circunstância mudaria a
face das coisas?
Faria rarear a cerração, amansar as ondas e dar
à “S. Leopoldo” ou ao “Lima Duarte” qualidades náuticas que não
possuem?
Quantas observações imbecis, quantos argumentos
parvos, quantos dislates, se há produzido por aí além? Houve até quem dissesse
que a obrigação do Comandante da Barra e dos práticos era irem morrer lá fora,
no seu posto de honra!
E com uma chapa destas decreta-se muito
simplesmente a “criminalidade” de
funcionários que não puderam sobrepor-se à miserável fragilidade humana,
tornar-se divinos para vencerem os elementos e o impossível.
Na manhã do dia 12 o “Apa” havia desaparecido da Barra, já lá não estava. O chefe da
praticagem fazia constar o fato pelos meios ao seu alcance. Tinha para ele
cessado a obrigação oficial de proceder, porquanto a sua jurisdição
circunscrever-se ao Distrito da Praticagem, fora da qual todos os procedimentos
incumbem à Capitania do Porto, cuja jurisdição abrange os Portos e Mares da
Costa da Província.
Pois não o entenderam assim os “náuticos de terra firme”; eles presumem que está dentro da esfera de
atribuições do Comandante da Barra providenciar sobre naufrágios e sobre
socorros no Mar fora das vistas da Barra.
E é tal a cegueira com que agridem o zeloso
funcionário, que nem se lembram de que, ainda quando por dever moral, por
humanidade, quisesse invadir as atribuições da Capitania do Porto, teria contra
si a mesma impossibilidade que tolheria o honrado e distinto Sr. Capitão de
Fragata João Gonçalves Duarte de dar as providências que o caso urgia, se
porventura estivesse presente.
Nem a praticagem nem a Capitania possuíam
embarcações capazes de saírem Barra fora nos primeiros dias que se seguiram ao
desaparecimento do “Apa”.
Em toda a atmosfera de indignação condensada em
torno do chefe da praticagem vê-se claramente a perversidade de uns, a
ignorância de outros e o pessimismo de muitos a empenharem forças em uma
propaganda que visa a dar, em holocausto à cólera popular, um homem que em
todos os tempos de sua vida pública tinha sabido honrar a farda de oficial de
marinha. Pois não o acusam outro dia por não ter encontrado cadáveres quando
saiu no “Lima Duarte” a percorrer a
Costa?
Uma folha conterrânea estranhou, com efeito,
que tendo o “Wiking” encontrado
destroços e o “Rio Negro” o cadáver
do 2° maquinista do “Apa”, só o “Lima Duarte” não encontrasse coisa
alguma...
É o cúmulo!
Os cadáveres deviam surgir à tona do Oceano ou
esperar que o “Lima Duarte” saísse
para lhe apresentarem pela proa, assim como quem diz:
‒ Aqui estamos nós: viemos ao seu encontro para que não se diga que
não encontrou nada.
Na dolorosa emergência que veio perturbar a
serena paz dos espíritos e intercalar uma página lúgubre na história dos
sinistros marítimos, o Comandante da Barra devia ser mais que um “factótum” ([5])
com atribuições de Ministro da Marinha, de Presidente de Província e de Capitão
do Porto; devia ser como aquela divindade mitológica a cujo aceno os ventos
recolhiam-se às suas misteriosas furnas e os Mares curvavam submissos o dorso;
devia ser mais: devia ser como o Nazareno nos Mares da Galileia, abrandando as
cóleras do Mar na frágil barca dos apóstolos...
Oh! senhores, que humanas forças podem contra
as grandes irritações do Oceano e dos ventos? Vós, os que não hesitais em
assacar a responsabilidade de uma hecatombe àquele, que antes de funcionário, é
um homem de coração, acabareis por compreender que ao naufrágio do “Apa” sucedeu na cidade do Rio Grande o
naufrágio do vosso bom senso.
A fatalidade representou um lúgubre papel na
tragédia da noite de 11, e a fatalidade não tem colaboradores; quando muito
aproveita circunstâncias, e essas, podemos assegurar que não foram criadas nem
pelo Comandante da Barra nem por funcionário algum dos que se acham sob suas
ordens e direção.
Termo de ter Sido Avistado, no dia 11.07.1887,
o Paquete Nacional “Rio Apa” e dos
Motivos
que Obstaram à sua Entrada no Mesmo dia.
Interrogados o prático-mor e mais empregados
sobre os motivos que obstaram a entrada do Paquete nacional “Rio Apa”, no dia 11 do corrente,
responderam:
Que às 14h00, a Atalaia fez sinal de vapor a Leste, seguindo a lancha “S. Leopoldo” já da amarração com sinais
içados para que o vapor se aproximasse da Barra: chegando na Ponta do Hospital
já não se avistava a Atalaia: a lancha seguiu para o Banco, avistando sempre as
boias. Chegando ao Banco reconheceu que a Barra estava brava, pairou por dentro
como uma hora, sem nunca poder avistar nada; seguindo de volta para o Canal de
Sueste, foi até onde pode.
Não sendo possível avistar nada, voltou para o
Porto às 16h00, continuando espessa cerração até à noite.
Se do estabelecimento, onde se achava o Sr.
Comandante, fez-se algum sinal chamando para o ancoradouro a lancha “S. Leopoldo”, ou se antes deu alguma
ordem em particular ao Sr. Prático-mor a esse respeito, responderam:
Que não foi feito sinal algum chamando a
lancha, nem lhe foi dada ordem alguma em particular a tal respeito.
Ilm° Sr. José Domingues Moreira, muito digno Comandante do
rebocador Manoel Diabo.
Apelando para a sua nunca desmentida lealdade e
para as habilitações e conhecimentos especiais que V. S. tem, por sua longa
prática e serviços na Barra desta Província, vou rogar a V. S. o favor de responder,
junto a esta carta, aos quesitos abaixo especificados, concedendo-me também
permissão para fazer de sua resposta o uso que me convier:
1. Nos
dias 11, 12, 13 e 14 do corrente, seria possível a algum navio sair à Barra
desta Província, atendendo ao estado do tempo e do mar?
2. Se
viu ou teve conhecimento de haver a praticagem desta Barra empregado todos os
esforços para a entrada do Paquete “Rio
Apa” na tarde de 11 do corrente, ou se por sua longa prática e experiência
V. S. observou alguma negligência da parte da mesma praticagem?
3. Se no
dia 12 pela manhã, não estando à vista o “Rio
Apa”, poder-se-ia dar alguma providência, no sentido de procurar-se o mesmo
navio fora da Barra?
Com sua resposta V. S. muito obrigará a quem é
de V. S. atento, venerador e obrigado criado – Carlos Frederico de Noronha.
Barra do Rio Grande do Sul, em 29.07.1887.
Em resposta ao que V. S. se digna pedir na
presente missiva, passo a responder pela maneira seguinte:
1.
Nos dias 13 e 14 podia sair navio de pouco calado, correndo muito
risco, por haver muito mar na Barra lá fora.
2.
Vi que no dia 11 de julho, às 14h00, pouco mais ou menos, fez a
Atalaia sinal de ter aparecido vapor fora e logo seguiu a lancha “S. Leopoldo” com os práticos Miguel
Moreira e Estevão João Lastrete, que estava de serviço no banco, para fora e
que regressaram, às 16h30, depois de estar tudo cerrado de neblina que nada
deixava ver para fora. O Paquete “Rio Apa”
foi visto por mim, mas por pouco tempo.
3.
No dia 12, não era possível sair navio algum a prestar qualquer
socorro fora da Barra, por estar impraticável e haver muito mar de arrebentação
mesmo fora.
Pode V. S. fazer o uso que quiser desta minha
opinião – Deste seu criado muito obrigado – José Domingues Moreira.
Mestre do vapor Manoel Diabo, na Barra
[Editorial do Echo do Sul de 02.08.1887]. (JDC, N° 231)
Bibliografia
JDC, N° 231. O Naufrágio do “Rio Apa” – Brasil – Rio de Janeiro, RJ – Jornal do
Comércio, n° 231, 19.08.1887.
(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de
Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor
e Colunista;
Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do
Sul (1989)
Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre
(CMPA);
Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura
do Exército (DECEx);
Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério
Militar – RS (IDMM – RS);
Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando
Militar do Sul (CMS)
Ex-Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia
Brasileira (SAMBRAS);
Membro da Academia de História Militar Terrestre do
Brasil – RS (AHIMTB – RS);
Membro do Instituto de História e Tradições do Rio
Grande do Sul (IHTRGS – RS);
Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia
(ACLER – RO)
Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio
Grande do Sul (AMLERS)
Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da
Escola Superior de Guerra (ADESG).
Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
Membro do Instituto Histórico e Geográfico do Tapajós
(IHGTAP)E-mail: hiramrsilva@gmail.com.
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – X
Bagé, 20.12.2024 Continuando engarupado na memória: Tribuna da Imprensa n° 3.184, Rio, RJSexta-feira, 25.10.1963 Sindicâncias do Sequestro dão e
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – VI
Silva, Bagé, 11.12.2024 Continuando engarupado na memória: Jornal do Brasil n° 224, Rio de Janeiro, RJ Quarta-feira, 25.09.1963 Lei das Selvas T
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – IV
Bagé, 06.12.2024 Continuando engarupado na memória: Jornal do Brasil n° 186, Rio de Janeiro, RJSábado, 10.08.1963 Lacerda diz na CPI que Pressõessã
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – III
Bagé, 02.12.2024 Continuando engarupado na memória: Jornal do Brasil n° 177, Rio de Janeiro, RJQuarta-feira, 31.07.1963 JB na Mira O jornalista H