Segunda-feira, 18 de março de 2024 - 08h10
Bagé,
18.03.2024
Revista Ilustrada, n° 463
Rio de Janeiro, RJ – Sexta-feira, 26.08.1887
O Naufrágio do “Rio Apa”
Os árabes dizem: “Bendita a desgraça, que vem só!”
É esta uma verdade, de que nestes, últimos
tempos, temos tido as mais pungentes e as mais inequívocas provas. Estava-nos
destinado, ter de substituir, num curto lapso de tempo, a trágica impressão do
naufrágio do Bahia, pelo pavoroso morticínio do “Rio Apa”!
Ao enfrentar com tal assunto, o coração
cobre-se de luto, a pena vacila, as palavras empalidecem... Só as lagrimas
poderiam ter alguma eloquência. Há, em todas as almas, um sulco de amarguras,
aberta pela narração, reconstituída aos poucos, d’esse drama atroz, que teve
por colaboradores, o mar possesso, o céu implacável e a indiferença criminosa
de alguns homens...
Jamais, no Brasil, se passou um fato tão
pungente e jamais tantas circunstâncias fatais se combinaram para arrancar a
vida, com um maior luxo de horrores, a centenas de vítimas, homens cheios de
esperanças, mulheres a quem a graça e a juventude sorriam, crianças em cujas
róseas bocas os risos encantadores foram trocados pelos gritos inconscientes
do pavor.
O “Rio
Apa”, a cujo bordo embarcaram esses predestinados da desgraça, era um vapor
mercante, de fundo chato, destinado à navegação mansa dos rios, cheio de obras
vivas sobre o convés, de marcha insignificante e inteiramente impróprio a
arrostar a navegação perigosa dos Mares do Sul.
Sobre o governo, que consentiu nessa viagem e
sobre a companhia que premeditou, quase, esse múltiplo atentado, caem neste
momento, as lágrimas do desespero, de todos em que ali perderam um ente
querido!
O “Rio
Apa” chegara à Barra do Rio Grande e fora avistado por outro vapor, que lhe
devia levar o prático.
Caindo, porém, uma forte tempestade,
acompanhada de cerração, fez-se ao largo, e só quando 8 dias depois, os
destroços e os cadáveres mutilados começaram a dar nas praias, é que um grito
de consternação se levantou em todo o Brasil, o governo pôs-se a dar leves
sinais de vida, e a fazer demorados preparativos de socorro, dizendo, também,
que “ele não mandara afundar o Apa”.
No momento em que escrevemos, ainda a tragédia
não está de todo reconstituída. O que se sabe, porém, é medonho!
A companhia, receosa das condições do Vapor,
escolheu para comandá-lo o seu mais intrépido e experimentado comandante,
recém chegado do uma outra viagem, o Capitão de Mar e Guerra Pereira Franco.
Em Santa Catarina, consta que esse valoroso
homem do mar, aconselhou alguns passageiros, entre eles o cônsul austríaco, a
que não seguissem, como que tomado por um pressentimento cruel. E acrescentou:
— Eu, como comandante não
posso deixar de embarcar, além de que, como Capitão de Mar e Guerra, tenho por
dever não manifestar medo!
A serena intrepidez dessas palavras, como que
animou a todos esses infelizes a confiarem-se à guarda de tão bravo oficial.
Desgraçados! A morte mais afrontosa esperava-os, daí a pouco!
O aparecimento de uma jangada, na praia e o
fato de apresentar uma das vítimas diversas punhaladas, provam-nos que o
suplício foi lento, que deu tempo a preparar-se aquele recurso de ocasião, e
que pronta a jangada, os lugares, dela, foram disputados, a punhaladas!
Outro fato, que enche a imaginação de horror, é
estarem todas as vítimas revestidas de salva-vidas, provando-se assim, que
boiaram longas horas ou longos dias, sempre à espera de um socorro, que se a
morte lhes levou, em meio de sofrimentos que ninguém pode calcular.
O desespero, a loucura, as maldições
casaram-se, por Logo tempo, com a fúria indômita do mar; a fome, a sede, o
frio, vieram, ainda, pungir mais os últimos alentos desses infelizes, para quem
Deus nitri existia e para quem humanidade era uma palavra vã.
Homens, mulheres e crianças morreram, após uma
cruciante expiação de faltas que não tinham, abandonados, em pleno Oceano, pela
misericórdia divina e pela solidariedade e humana.
Seus corpos mutilados, serviram de pasto à voracidade
dos peixes, nas águas, e à gula dos corvos, sobre a praia. Pode-se dizer, que,
com esse medonho acontecimento, o luto cobre todo o Brasil, porque contam-se
por centenas as famílias, que ali perderam algum, ente querido. Positivamente,
a palavra é glacial, em certos momentos, para exprimir as angustias, que
pungem o coração, como se um punhal o atravessasse.
Só o pensamento de cada um, evocando os
horríveis pormenores dessa tragédia, poderá, pela extensão da sua dor servir de
medida aproximada, da desgraça incomparável, que nos enluta, neste momento.
(REVISTA ILUSTRADA, N° 463)
Relatório Apresentado ao Exm° Sr. Dr. Joaquim Jacintho de
Mendonça, 3° Vice-Presidente,
Por S. Exª o Sr. Dr. Rodrigo de Azambuja Villanova, 2°
Vice-Presidente,
ao Passar-lhe a Administração
Da Província de S. Pedro do Rio Grande do Sul
Rio Grande do Sul – Quinta-feira, 27.10.1887
Naufrágios
Por telegrama de 14 de julho último
participou-me a Capitania do Porto o naufrágio na costa do vapor “Cavour”, escuna nacional “Evora” e um “lúgar” ([1])
inglês, cujas tripulações salvaram-se à exceção da deste, cujo destino
ignorava, bem assim que o Paquete nacional “Rio
Apa” que havia aparecido na barra na tarde de 11 do dito mês, fizera-se ao
mar e até aquela data não aparecera.
Ordenei então que o vapor “Lima Duarte” saísse a percorrer a costa. Daqueles naufrágios dei
imediatamente conhecimento ao Ministério da Marinha.
Por telegrama de 15 do mesmo mês participou-me
o administrador da Praticagem da Barra que o vapor “S. Leopoldo” percorrera a Costa do Norte e o “Lima Duarte”, sob seu comando, a do Sul, até vinte milhas da Barra,
nada encontrando, mas que davam à praia objetos que, com certeza, pertenciam ao
“Rio Apa”, pelo que era sua opinião
que este Paquete tinha soçobrado procurando vencer o mar e o vento que o
atiravam para a terra, corroborando isso o fato de ter-se avistado o navio
pouco antes das 14h00, desaparecendo logo depois em espessa cerração, que
obstou sua entrada, não tendo tempo de afastar-se da costa até às 21h00,
ocasião em que caiu forte temporal.
No dia 16, participou-me ainda o mesmo
administrador terem dado à costa volumes, beliches, portas de camarotes, que
presumia serem do “Rio Apa”, bem como
um volume rotulado para Corumbá, e que seguia a percorrer a Costa do Sul, tendo
no dia anterior seguido o “Lima Duarte”.
Na mesma, data me comunicou o cônsul brasileiro
em Montevidéu que o Paquete “Rio Jaguarão”,
que dali saíra à procura do Apa, perdera-se em ponta Este do Maldonado,
salvando-se a tripulação.
Constantemente recebia esta Presidência
notícias do aparecimento de malas, fardamento de oficiais, etc., o que tudo
fazia crer no naufrágio do “Rio Apa”,
até que finalmente deram à costa cadáveres da tripulação e passageiros do mesmo
Paquete. Tendo diversos cidadãos residentes na cidade do Rio Grande pedido
autorização para, por sua conta, fazerem sair o vapor “Jaguarão” à procura do “Rio
Apa”, telegrafei ao Capitão do Porto nesse sentido, e ele respondeu-me que
aquele vapor não estava em condições de sair.
Os vapores “Lima
Duarte” e “S. Leopoldo”
constantemente percorriam as Costas Sul e Norte da Barra e nada encontraram.
Tendo, por ordem do Governo, vindo até à Barra o cruzador “Almirante Barroso” que ali fundeou na noite de 2 de Agosto, nenhum
vestígio encontrou do “Apa”.
Por telegrama, de 2 do citado mês de agosto,
determinou o Exmº Sr. Conselheiro Presidente do Conselho que fosse aberto
minucioso inquérito sobre tudo quanto ocorrera com referência ao sinistro do “Rio Apa”.
Expedi ordem ao Capitão do Porto nesse sentido
e o resultado remeti ao Governo, ficando provado que o “Rio Apa” não entrou à Barra por motivo de força maior.
Logo que começaram a aparecer destroços do
navio que se supunha ser do “Rio Apa”,
o Inspetor da Alfândega do Rio Grande, mandou o guarda-mor Perry, com toda a
força disponível, percorrer a costa com ordem de requisitar força da guarnição.
Mandei a força policial estacionada nas Torres
percorrer também a costa, determinando igual serviço em Mostardas, onde o
respectivo delegado de polícia procedia a inquérito sobre roubos havidos nos
salvados.
A pedido do agente da Companhia Nacional no Rio
Grande, mandei pôr à sua disposição as praças de que precisasse para com elas
percorrer a costa, arrecadando o que fosse dando à praia.
Todas as providências possíveis foram dadas por
esta Presidência não só com referência à procura do “Rio Apa”, como também à guarda dos salvados, auxiliando-me as
autoridades competentes com dedicação e zelo.
A catástrofe do Paquete “Rio Apa”, que tanta consternação produziu, despertou os sentimentos
generosos de algumas associações, e é assim que a sociedade dramática
particular “Club União da Vila de Santa
Cruz” remeteu-me a quantia de 211$000, produto de um espetáculo, para ser
distribuído pelas famílias necessitadas das vítimas daquele naufrágio, quantia
essa que se acha em poder do Sr. Secretário do Governo para oportunamente ter o
conveniente destino; e a sociedade também particular “Progresso Dramático”, desta capital, participou-me haver recolhido
ao Banco da Província a de 1:127$000 do mesmo modo alcançado para igual fim.
Solicitei ao Governo Imperial uma relação das
famílias em condições de serem contempladas, a fim de ser realizada a
distribuição. Para mais esclarecimentos insiro o telegrama seguinte que em 9 de
agosto último dirigi ao Exm° Sr. Presidente do Conselho:
Respondo
telegrama de V. Exª de ontem. Apenas tive notícia naufrágio “Cavour” e
aparecimento destroços de outros navios, foram expedidas as devidas ordens às
autoridades policiais de Mostardas, Estreito e Torres para percorrerem Costa a
fim de impedirem pilhagem salvados, sepultarem cadáveres, fazerem inquérito e
prenderem ladrões.
Delegado
Polícia de Torres com força policial e auxiliado pelo comandante polícia Conceição
do Arroio, guarda mor da Alfândega com seus guardas têm exercido vigilância
constante naquela parte da Costa. Subdelegado de Mostardas e Estreito com a
seção policial de S. José do Norte e praças da do Rio Grande percorrem a Costa
Sul, fazendo aqueles serviços.
Estas
duas autoridades aproveitando a boa vontade dos moradores dos respectivos
distritos organizaram um grupo de Corre-Costas, isso é, de particulares
destinados a percorrer e policiar a Costa, tendo à sua testa o subdelegado
Idalino Silveira e merecendo todos gerais elogios pelo modo porque tal serviço
se tem desempenhado.
À um
preposto da companhia nacional de paquetes mandei pela, guarnição do Rio Grande
fornecer as praças de que necessitasse para efetuar a arrecadação dos salvados,
procedendo ele em tudo de acordo com a autoridade policial; esta força
comandada por um oficial ainda lá estacionado. Ao delegado de S. José do Norte
mandei também dar pela mesma guarnição as praças necessárias para coadjuvar a
polícia de Mostardas e Estreito.
O Dr.
Chefe de Polícia tem estado em ativa correspondência com todas as autoridades
policiais daquela localidade, recebendo comunicações e dando instruções para o
bom desempenho do serviço. Tem-se feito inquérito e autos de corpo de delito.
Costa
larga e inóspita torna impossível perfeita vigilância, pelo que pode-se ter
dado algum abuso.
Médico
que foi examinar cadáveres, nenhum resultado positivo pode obter sobre causa
imediata da morte, devido ao estado adiantado de decomposição; sendo,
entretanto, opinião de muitos habitantes da Costa, habituados a verem cadáveres
de náufragos, que a morte não se deu por efeito de frio ou fome, como a alguém
parecia, e sim da violência do temporal.
Também
mandei proceder a rigoroso inquérito sobre a pilhagem dos salvados e
aparecimento de jangadas, botes, etc... que denunciavam ter servido aos
náufragos do “Rio Apa”, e posso declarar que felizmente carece de fundamento a
opinião dos que afirmavam que aqueles infelizes morreram de fome e frio,
porquanto não apareceu jangada alguma, e sim dois botes e uma lancha, sendo o
mais obra de indivíduos que à verdade antepõem o gozo de dar ao público
notícias de sensação, se bem que inexatas.
(RDP, 27.10.1887)
Bibliografia
RDP, 27.10.1887. Naufrágios – Brasil – Porto Alegre, RS – Relatório do Presidente,
27.10.1887.
REVISTA ILUSTRADA, N° 463. O Naufrágio do “Rio Apa” – Brasil – Rio de Janeiro, RJ – Revista
Ilustrada, n° 463, 26.08.1887.
(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de
Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor
e Colunista;
Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do
Sul (1989)
Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre
(CMPA);
Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura
do Exército (DECEx);
Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério
Militar – RS (IDMM – RS);
Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando
Militar do Sul (CMS)
Ex-Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia
Brasileira (SAMBRAS);
Membro da Academia de História Militar Terrestre do
Brasil – RS (AHIMTB – RS);
Membro do Instituto de História e Tradições do Rio
Grande do Sul (IHTRGS – RS);
Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia
(ACLER – RO)
Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio
Grande do Sul (AMLERS)
Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da
Escola Superior de Guerra (ADESG).
Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
Membro do Instituto Histórico e Geográfico do Tapajós
(IHGTAP)E-mail: hiramrsilva@gmail.com.
[1] Navio a vela
cuja mastreação era constituída de gurupés e três mastros de lúgar. Etimologia
inglesa: lugger
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