Quarta-feira, 20 de março de 2024 - 07h40
Bagé,
20.03.2024
Relatos
Pretéritos – Naufrágio do “Rio Apa”
Múcio
Scervola Lopes Teixeira (1888)
TRAGÉDIA NO OCEANO
Não há
notícia de sinistro mais horroroso, em mares brasileiros, do que a monstruosa
hecatombe dos passageiros do paquete Rio Apa. O “Paiz”, encarando friamente os fatos que se relacionam com esse
naufrágio nas costas do Rio-Grande do Sul, diz no seu n° de 29 de Julho do
corrente ano (1887):
Os telegramas que hoje publicamos ainda concernentes
ao naufrágio do Rio Apa, vem aumentar a consternação causada por esse terrível
desastre e pôr em relevo a negligência das autoridades e da companhia a qual pertencia
o vapor.
Pelo exame dos cadáveres, que chegam às praias
do Norte e do Sul da Barra do Rio Grande, se verifica:
1° que todos estão revestidos de coletes ou cintas
salva-vidas.
2° que as vítimas do naufrágio rolaram com vida,
durante alguns dias, na solidão do Oceano.
3° que, pela conservação da existência, posta em
risco, ou pela concorrência aos meios da salvação, ou talvez pela fome, houve
luta sinistra e desesperada, apresentando alguns cadáveres ferimentos de
punhaladas.
4° que, à vista da conservação dos corpos, após
tantos dias depois do naufrágio, e pelo exame dos mesmos é evidente que muitos
pereceram por inanição.
Todas estas
circunstâncias, profundamente lamentáveis, eram previstas ou supostas, muito
antes que nos chegassem, como agora chegam, os horrorosos pormenores dessa
imensa catástrofe. O próprio fato de não aparecer um só cadáver, logo após o
naufrágio quando já davam à costa alguns destroços do navio, malas e volumes de
mercadorias, era indício suficiente para se presumir que nem todos haviam
perecido instantaneamente e que, portanto, vagavam sobre as ondas, na
esperança, infelizmente malograda, de encontrar algum socorro.
Pelo que se
sabe, os rebocadores que saíram a Barra limitaram-se a percorrer a costa,
poucas milhas ao Sul e ao Norte da mesma Barra. Não se mandou, porém, um só
vapor fazer a exploração do oceano, quando, entretanto, era sabido e patente
que o “Rio Apa” não tivera tempo e
nem tinha força para amarar-se muito, visto que a sua velocidade era apenas de
10 milhas por hora.
Os
caracteres que apresentam os cadáveres que agora são encontrados, denunciam
eloquentemente a grandeza do sinistro e a incúria, a negligência, a
desumanidade com que o governo e a companhia proprietária do Rio Apa se
houveram nessa desgraçada emergência. (LOPES TEIXEIRA)
Arthur
de Azevedo (1903)
PAULINO E ROBERTO
O Paulino
toda a vida remou contra a maré! Para cúmulo da desgraça, o destino atirou-lhe
nos braços uma esposa que não era precisamente o sonhado modelo de meiguice e dedicação.
Adelaide não lhe perdoava o ser pobre, o ganhar apenas o necessário para viver.
O seu desejo
era ter um vestido por semana e um chapéu de quinze em quinze dias, – possuir
um escrínio de magníficas joias, – deslumbrar a Rua do Ouvidor, – frequentar
bailes e espetáculos, – tornar-se a rainha da moda. Não se podia conformar com
aquela vida de privação e trabalho. O Paulino, que era a bondade em pessoa,
afligia-se muito por não poder proporcionar à sua mulher a existência que ela
ambicionava.
Fazendo um
exame de consciência, o mísero acusava-se de haver sacrificado a pobre moça,
que, bonita e espirituosa como Deus a fizera, teria facilmente encontrado um
marido com recursos bastantes para satisfazer todos os seus caprichos de “Frou-frou” sem dote.
Ele só tinha
um amigo, um amigo íntimo, seu companheiro de infância, o Vespasiano, que um
dia lhe disse com toda a brutalidade:
– Tua mulher é
insuportável! Eu, no teu caso, mandava–a para o pasto!
– Oh! Vespasiano! não
digas isso!
– Digo, sim! Senhor! digo
e redigo... – Vocês não têm filhos; portanto, não há consideração nenhuma que
te obrigue a aturar um diabo de mulher que todos os dias te lança em rosto a
tua pobreza, como se ela te houvesse trazido algum dinheiro, e o esbanjasses!
– Isso não é conselho
que se dê a um amigo, nem eu tenho razões para me separar de Adelaide.
– Pois não te parece
razão suficiente essa eterna humilhação a que ela te condena?
– Pois sim, mas quem me
manda ser tão caipora?
– Não creias que, se
melhorasses de posição, ela melhoraria de gênio. Aquela é das tais que nunca
estão contentes com a sorte, nem se lembram de que Deus dá o frio conforme a
roupa. Se algum dia chegasses a ministro, ela não te perdoaria não seres
presidente da República!
– Exageras.
– Pode ser; mas
afianço–te que mulher assim não a quisera eu nem pesada a ouro! Prefiro ficar
solteiro.
Efetivamente,
Vespasiano, apesar de ser muito amigo de Paulino, não o frequentava, tal era a
aversão que lhe causava a presença de Adelaide. Não a podia ver.
Paulino em
vão procurava por todos os meios e modos melhorar de vida, aumentando o parco
rendimento, quando um comerciante, seu conhecido, lhe propôs uma pequena viagem
ao Rio Grande do Sul, para a liquidação de certo negócio. Era empresa que lhe
poderia deixar um par de contos de réis, se fosse bem sucedida. Instigado pela
mulher, a quem sorria a perspectiva de alguns vestidos novos, Paulino partiu
para o Rio Grande a bordo do “Rio Apa”;
tendo, porém, desembarcado em Santa Catarina, perdeu, não sei como, o paquete,
e foi obrigado a esperar por outro. Antes que esse outro chegasse, recebeu a
notícia de que o “Rio Apa”
naufragara, não escapando nenhum homem da tripulação, nem passageiro algum. Do
próprio paquete não havia o menor vestígio. Sabia-se que naufragara porque
desaparecera. Paulino agradeceu a Deus o ter escapado milagrosamente ao
naufrágio.
Ao ver o seu
nome impresso nos jornais, entre os das vítimas, atravessou-lhe o espírito a
ideia de calar-se, fazendo-se passar por morto. Não sei se ele teria lido o
Jacques Amour, de Zola, ou a Viuvinha, do nosso Alencar.
– Em vez de me livrar da Adelaide,
como aconselhava o Vespasiano, livrá-la-ei de mim. Ora está dito! Seremos ambos
assim mais felizes...
Ninguém o
conhecia em Santa Catarina, e ele, de ordinário taciturno e reservado, a
ninguém se queixara de haver perdido a viagem, de modo que pôde executar
perfeitamente o seu plano. Calou-se, muito caladinho, e deixou que a notícia da
sua morte circulasse livremente, como a dos demais passageiros do “Rio Apa”. Escusado é dizer que mudou de
nome. Tendo feito conhecimento com um rico industrial teuto-brasileiro,
ex-colono de Blumenau, foi com este para o interior da Província, e, como era
inteligente e trabalhador, não tendo mulher que o “encabulasse”, arranjou muito bem a vida, conseguindo até pôr de
parte algum pecúlio ([1]).
Passaram-se
anos sem que Roberto, o ex-Paulino, tivesse notícias de Adelaide. Resolveu um
dia ir ao Rio de Janeiro, a passeio, convencido de que ninguém mais se lembrava
dele, nem o reconheceria, pois deixara crescer a barba, engordara
extraordinariamente, e tinha um tipo muito diverso do de outrora. O seu
primeiro cuidado foi passar pela casinha de porta e janela onde morava, na Rua
do Alcântara, quando embarcou para o Sul. Não a encontrou: tinham erguido um
prédio no local outrora ocupado pelo ninho dos seus amores sem ventura.
Informou-se
na venda próxima que fim levara a viúva de um tal Paulino, morador naquela rua,
náufrago do “Rio Apa”; ninguém se
lembrava dessa família, e ele teve a sensação de que era realmente um defunto.
Procurou ver Vespasiano, e viu-o, quando saía da Alfândega, onde era empregado.
O seu movimento foi correr para o amigo e dizer-lhe:
– Olha! sou eu! não morri! venha de
lá um abraço! – mas conteve-se, e deixou-o passar, saboreando um cigarro.
– Como está velho! pensou Paulino; eu
decerto não o reconheceria, se o supusesse tão morto como ele me supõe a mim!
Deixá-lo! Eu morri deveras, e nada lucraria em ressuscitar, mesmo para ele, que
era o meu único amigo.
Bem
inspirado andou o morto em não se dar a conhecer, porque, alguns dias depois,
achando-se num bondinho da Praça Onze, atravessando a Rua do Riachuelo, viu
entrar no carro o Vespasiano, acompanhado por uma senhora que era Adelaide sem
tirar nem por.
Paulino
conteve o natural sobressalto que lhe causou aquela aparição. Ela vinha muito
irritada. Logo que se sentou, voltou-se com mau modo para Vespasiano, e
disse-lhe:
– Eu logo vi que você me dizia que
não!
Paulino
reconheceu a voz da sua viúva.
– Mas, reflete bem, Adelaide; aquele
dinheiro está destinado para o aluguel da casa, e tu não tens assim tanta
necessidade de uma capa de seda!
Adelaide soltou um longo suspiro, e expectorou esta queixa bem alto para
que todos a ouvissem:
– Meu Deus! que sina a minha de ter
maridos pingas! Você ainda é pior que o outro!
– Ah! se ele pudesse ver-nos lá do
outro mundo, murmurou entre os dentes Vespasiano, como se riria de mim!
Roberto
ficou muito sério, olhando com indiferença para a rua, mas Paulino riu-se,
efetivamente, no fundo do oceano. (AZEVEDO)
Bibliografia
AZEVEDO, Arthur de. Paulino e Roberto – Brasil – Rio de Janeiro, RJ – Correio da Manhã,
05.04.1903.
LOPES TEIXEIRA, Múcio Scervola. Poesias e Poemas de Mucio Teixeira
(1886-1887) – Brasil – Rio de Janeiro, RJ – Imprensa Nacional, 1888.
(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de
Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor
e Colunista;
Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do
Sul (1989)
Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre
(CMPA);
Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura
do Exército (DECEx);
Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério
Militar – RS (IDMM – RS);
Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando
Militar do Sul (CMS)
Ex-Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia
Brasileira (SAMBRAS);
Membro da Academia de História Militar Terrestre do
Brasil – RS (AHIMTB – RS);
Membro do Instituto de História e Tradições do Rio
Grande do Sul (IHTRGS – RS);
Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia
(ACLER – RO)
Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio
Grande do Sul (AMLERS)
Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da
Escola Superior de Guerra (ADESG).
Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
Membro do Instituto Histórico e Geográfico do Tapajós
(IHGTAP)E-mail: hiramrsilva@gmail.com.
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