Segunda-feira, 1 de abril de 2024 - 17h34
Bagé,
01.04.2024
Defesa Feita Pelo Sr. Dr. Pereira da Silva ao
Brigue Brasileiro “Nova
Aurora” – Apresado
na Bahia Pela Corveta Inglesa “Rose”
Joaquim José dos Santos Malhado
e Irmãos, súditos brasileiros, negociantes muito conhecidos e reputados da
cidade da Bahia, não só por sua fortuna, honra e probidade, como também pelos
relevantes serviços que tem prestado ao trono imperial do Senhor D. Pedro II e
à integridade do Império, serviços de natureza e de transcendência tal, que o
governo do Brasil tem altamente considerado, são senhores e possuidores, por
herança de seu pai Manoel José dos Santos, além de outros bens, do brigue
nacional “Nova Aurora”, como se prova
pelo documento do apenso de fls. 13, sob n° 1.
Pretendendo eles mandar o
brigue para a Costa de África a negócio licito, abriram-lhe carga na praça, e
com efeito a conseguiram obter, como se evidencia do manifesto de fls. 15 do
apenso, com o qual harmonizam os diversos conhecimentos unidos aos autos, o
livro da carga de fls. 27, e várias faturas que decorrem de fls. 41 a 61, sendo
que todo esse carregamento, em vista do documento da alfandega de fls. 37, foi
legalmente despachado, seguiu todos os tramites da lei, e pagou os competentes
direitos à nação brasileira. Com efeito, alcançando os despachos necessários
que lhe permitiam o seguimento de sua viagem, o seu passaporte, a matrícula e
manifesto da carga, o documento do correio, o certificado da inspeção da saúde
pública, a conta da ancoragem, a certidão da polícia, a carta de ordens, a
declaração autentica de estar em ordem subscrita pelas autoridades legais, e o
rol da equipagem, que tudo se encontrou a seu bordo, e existe ligado aos autos,
e que para maior legalidade fizeram eles rubricar no consulado inglês naquela
cidade; prestando enfim a fiança ou termo de responsabilidade exigido pelo
Governo da Província de se não empregar em comércio ilícito, como se prova pelo
mesmo apenso, pode o brigue, capitaneado pelo cidadão brasileiro João José
Peixoto, sair da Bahia em 22 de fevereiro do corrente ano, depois de se
sujeitar aos registos das autoridades do mar, e em tudo e por tudo conformar-se
com a lei.
Eis que no dia 27 porém, em vez
de continuar sua viagem, entra de novo o brigue no porto de onde saíra,
pendendo do penol ([1]) de sua mezena ([2]),
em vez das armas brasileiras com que se cobria, as cores da Grã-Bretanha.
A corveta de guerra inglesa “Rose”, de que é comandante P. Christie,
saindo da Bahia a 2, e no seguinte dia avistando o brigue, deu-lhe caça,
deteve-o, e o fizera regressar. Apenas ancorado, o captor tirou de bordo do
brigue toda a tripulação e passageiros, e os passou para a corveta de seu
comando, como se prova das declarações do apenso já mencionado, de propósito
talvez para não assistirem ao exame e averiguações a que pretendia proceder, e
sem mostrar ao menos ao seu Capitão as instruções de que se achasse munido, e
que o autorizassem a cruzar e deter, instruções exigidas pela Convenção
adicional de 1817, e que nem a este tribunal da comissão mista foram presentes,
apesar de serem exigidas pelo membro juiz brasileiro, que teve por resposta do
encarregado da presa, Edwin Morgan, que cuidava que o comandante Christie as tinha.
Então, em desrespeito às
representações do Exm° Sr. Presidente da Província da Bahia, representações
que, por muito valiosas e legais, se unem a estas razões, mandou o captor
descarregar o brigue, em procura, como dizia, de indícios de seu emprego em
comércio ilícito, e para proceder a um minucioso exame, passando parte do
carregamento para a corveta, e parte depositando no convés do mesmo brigue, com
grave prejuízo tanto dos gêneros que levava, e que consistiam em fumos,
fazendas, aguardente, &c., como do próprio casco. Note-se que a ato nenhum
deste exame assistiu o Capitão Peixoto, ou quem quer que fosse de bordo do
brigue; e depois dele feito, ordenou o comandante Christie se repusesse de novo
e em ordem o carregamento, o que também se fez pelo mesmo modo.
No dia 4 de Março, quando era
opinião corrente na Bahia, pelas vozes escapadas de bordo, apesar da
incomunicabilidade com que se achavam presos a tripulação e os passageiros, e
do sigilo e mistério que por ordem ali reinavam, que, não se havendo encontrado
no brigue nenhuns indícios dos que procurava com tanto cuidado e afã o
comandante captor, deveria ele ser relaxado, e continuar sua viagem. Com grande
espanto de todos os habitantes e das autoridades brasileiras, principalmente do
Exm° Presidente, que a esse respeito representou ao Governo de S.M. o
Imperador; depois de mandar o captor soltar todos os passageiros e tripulação,
à exceção do capitão, piloto, contramestre e cozinheiro, fez levantar o ferro
ao brigue, e, embarcando um encarregado de sua guarda, seguir para o Rio de
Janeiro, aonde, chegando no dia 18, foi submetido ao julgamento do tribunal da
Comissão Mista Brasileira e Inglesa, perante quem, e com todo o respeito
devido, passamos a desenvolver nossas razões.
Cumpre, antes de tudo, discutir
a legalidade não só da visita, como da detenção do brigue, encarada debaixo do
ponto de vista geral, em relação aos tratados estipulados entre a Coroa
brasileira, a quem pertence o navio apresado, e a nação britânica, a cuja
armada pertence a corveta captora. Os fatos que deixamos referidos com toda a
fidelidade, e comprovados pelos documentos entranhados no processo, nos
serviram de base, sem que por agora nos diga respeito o motivo porque o
comandante Christie cometeu o ato de detenção, e que mais abaixo discutiremos
em lugar competente.
Pelo Tratado de 23.11.1826 se
estipulou que, para findar o tráfico de escravos entre o Brasil e os portos
d’Arica, as duas nações convinham em aceitar, como próprios, o Tratado
existente entre Portugal e a Grã-Bretanha, de 22.01.1815, e a Convenção
adicional de 28.07.1817. Ora, no artigo 5 dessa Convenção lê-se o seguinte:
Os navios de guerra de ambas as marinhas reais,
que para esse fim se acharem munidos das instruções especiais anexas a esta
Convenção, podem visitar os navios mercantes de ambas as nações em que houver
motivo razoável de se suspeitar terem a bordo escravos adquiridos por um
comércio ilícito: os mesmos navios de guerra poderão, mas somente no caso em
que de fato se acharem escravos a bordo, deter e levar os ditos navios, a fim
de os julgar.
Lê-se também no artigo 1° das
instruções anexas a essa Convenção, e dirigidas aos comandantes dos navios de
guerra:
Todo o navio de
guerra, &c., terá o direito de visitar os navios mercantes de uma e outra potência
que fizerem realmente, ou forem suspeitos de fazer o comércio de negros,
&c.
Tendo no entretanto saído da
Bahia no dia 22 de fevereiro o brigue em questão, tendo sido visto a carregar
naquele porto, tendo-se despachado legalmente, e tendo de mais a mais, para
maior prova, sido seus despachos presentes ao consulado inglês, e logo no dia
24, saindo, ao que parece de propósito a corveta, e detendo-o no dia 26, é fora
de toda a dúvida que não podia haver motivo razoável de suspeita de fazer ele o
comércio de escravos, sendo tão curto esse prazo de 3 dias, e conseguintemente
é evidentíssimo que o comandante Christie, visitando-o, violara o Tratado nos
artigos que deixamos acima transcritos; e não se pode chamar à ignorância, em
presença do artigo 7 da mencionada Convenção, que ordena sejam os cruzadores
munidos pelo seu próprio governo de uma cópia das instruções de que citamos
também o artigo 1°, que fora pelo mesmo fato infringido.
E note-se aqui que este motivo
razoável de suspeita, de que fala o Tratado, não pode aparecer e ter lugar
senão em um navio que venha dos portos d’África para o Brasil, por que são os
únicos que podem ter feito ou fazer o tráfico, e de nenhum modo em um navio que
sai com carga lícita e despachos legais, ainda que se dirija para a Costa
d’África, ou para outra qualquer parte. Se esse direito de visita fosse
discricionário dos cruzadores, graves danos poderiam resultar ao comércio
lícito, e tal não podia ser jamais a mente dos autores do Tratado. Além desta
ilegal visita, outros atos foram também praticados em contravenção ao mesmo
Tratado, e que são de mais grave consequência e de maior importância.
Havendo o comandante Christie
visitado o brigue, 62 não tendo encontrado a seu bordo escravos para o tráfico,
como, com que direito o deteve? Já transcreveu-se o final do artigo 5 da
Convenção, agora transcreveremos outros a tal respeito.
Art. 1° das
instruções aos cruzadores. – Os navios a bordo dos quais “se não acharem
escravos destinados para o tráfico não poderão ser detidos debaixo de nenhum
pretexto, ou motivo qualquer”.
Art. 6° Os
cruzadores, &c., não poderão deter navio algum de escravatura em que
“atualmente se não acharem escravos a bordo”; será preciso para legalizar a
detenção de qualquer navio que os escravos que se acharem a seu bordo sejam
efetivamente conduzidos para o tráfico, &c.
Claro e evidente se torna, pela
leitura destes artigos, que o ato da detenção foi arbitrário inteiramente, e, o
que é mais, ofensivo ao direito das gentes, que cumpre respeitar, e à letra dos
Tratados existentes entre S.M.I. e S.M.B., que são obrigados a cumprir e a
fazer cumprir estritamente não só ambos os governos, como também os comandantes
de navios de guerra, quer brasileiros, quer ingleses, como expressamente
determina o artigo 5° quando diz:
Deverão observar
estrita e exatamente as instruções que acompanham a Convenção.
Observe-se também que, ainda
depois dos atos ilegais de visita e detenção, violou o comandante captor o
artigo 2° dessas mesmas instruções de que ele devia estar munido: aí se
recomenda que:
Apenas detidos os
navios, deverá conduzi-los o mais prontamente que for possível, para serem
julgados pela Comissão Mista. [...] (REGNAULT)
Bibliografia
REGNAULT, Elias. História Criminal do Governo Inglês Desde as Primeiras Matanças da
Irlanda até o Envenenamento dos Chinas... – Brasil – Rio de Janeiro, RJ –
Typ. Universal de Laemmert, 1842.
(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de
Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor
e Colunista;
Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do
Sul (1989)
Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre
(CMPA);
Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura
do Exército (DECEx);
Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério
Militar – RS (IDMM – RS);
Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando
Militar do Sul (CMS)
Ex-Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia
Brasileira (SAMBRAS);
Membro da Academia de História Militar Terrestre do
Brasil – RS (AHIMTB – RS);
Membro do Instituto de História e Tradições do Rio
Grande do Sul (IHTRGS – RS);
Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia
(ACLER – RO)
Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio
Grande do Sul (AMLERS)
Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da
Escola Superior de Guerra (ADESG).
Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
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