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Hiram Reis e Silva

Terceira Margem – Parte DCCXXIII - O Imbróglio do “Prince of Wales” – Parte IV


Terceira Margem – Parte DCCXXIII - O Imbróglio do “Prince of Wales” – Parte IV - Gente de Opinião

Bagé, 03.04.2024 

 

 

Defesa Feita Pelo Sr. Dr. Pereira da Silva ao

Brigue Brasileiro “Nova Aurora” – Apresado

na Bahia Pela Corveta Inglesa “Rose

 

[...] Entretanto, o que fez depois da detenção o comandante captor? Levou-o de novo para a Bahia, aonde, debaixo do pretexto de proceder a um “exame mais minucioso”, demorou-se 5 dias, e note-se que o fez em ausência do Capitão, tripulação e mais passageiros do navio, os quais transferiu para bordo da corveta.

 

Como poder-se-ia acreditar verídico um semelhante exame, uma igual busca, não se achando presente senão o captor, isto é, uma das partes interessadas? Não poder-se-ia suspeitar que, de posse do brigue, e longe dos olhos expiadores e cautelosos dos prisioneiros, procurasse o captor meter a bordo quaisquer gêneros de comprometimento para o navio detido, ainda mesmo não para perde-lo, mas unicamente para ressalvar-se, para justificar-se do ato da detenção que tão pouco refletidamente havia praticado?

 

Além ainda da ilegalidade de semelhante exame, da sua nenhuma validade em direito, do pouco ou nenhum crédito que se poderia inferir dele, quando mesmo declarasse o comandante captor haver achado a bordo do brigue gêneros de comprometimento, o que felizmente não declarou, não podia ter ele lugar em virtude do artigo citado no parágrafo antecedente, porquanto o que deverá fazer o comandante Christie, logo que deteve o navio, era seguir imediatamente com ele para o Rio de Janeiro, afim de submetê-lo ao julgamento da Comissão Mista Brasileira e Inglesa; e quando por um acontecimento inesperado e superior fosse obrigado a ir à Bahia, deveria então sujeitar-se à disposição dos artigos 2° e 3° das instruções, que mandam que, dado o caso de cumprir-se fazerem-se as visitas estando o navio dentro do porto ou ao alcance das baterias de qualquer das duas nações, se represente convenientemente às autoridades locais, como muito bem o exigiu o Exm° Presidente da Província na sua nota ao cônsul de S.M.B., com data de 3 de março, que se junta sob n° 2.

 

Entretanto, só depois de haver praticado todos estes fatos, como de propósito para menosprezo do Tratado, é que o comandante da “Rose” decidiu-se a remeter para o Rio de Janeiro o brigue “Nova Aurora”.

 

E como na Bahia afirmara que tinha encontrado a seu bordo indícios tais que “no seu ânimo” não havia dúvida de se empregar ele no tráfico de escravos, aqui, perante a Comissão Mista, diante deste respeitável tribunal, no momento de fazer entrega por mão do indivíduo Edwin Morgan, a quem ele encarregara o governo do brigue, dos documentos e papeis encontrados a seu bordo, declarou que no dia 25 de fevereiro, pelo meio dia, avistara o brigue, e, dando-lhe caça, o deteve no dia seguinte, na Lat. 13°07’57”, e Long. de Greenwich 37°50’; e não podendo ali examiná-lo, o levara de novo para a Bahia, aonde do exame e visita a que procedeu resultando indícios de seu emprego no tráfico, o fizera vir à Comissão, fundando-se nos seguintes motivos:

 

Por ter encontrado 1 bacamarte, 15 espingardas, 3 pistolas e algumas espadas, armas estas não mencionadas nem no manifesto nem no despacho, e portanto em contravenção das instruções do Governo Imperial de 25 de novembro de 1839, achando-se o brigue incompetentemente armado;

 

Por ter encontrado uma estiva ou correnteza de 14 vasilhas ou pipas para água por baixo da coberta de proa, além de 9 mais pequenas;

 

Por achar um número de cascos ou vasilhas com uma espécie de aguardente ordinária, os quais desconfia serem para água na volta;

 

Por encontrar uma porção de farinha a granel, na quantidade de 11 sacos ou 2.000 libras, e algum arroz, que não estando declarado no manifesto, e havendo, de mais a mais, galinhas, porcos e vários mantimentos, não podia crer que fosse para sustento da tripulação, e sim para escravos que trouxesse de volta;

 

Por achar uma porção de chupetas, que somente em navios de escravos se usa;

 

Por estar o brigue arranjado para uma segunda coberta ou bailéu ([1]), toda em roda do porão;

 

Enfim, por haver-lhe declarado o preto João Pereira que vira de bordo do brigue na ocasião da caça deitar-se ao mar ferros e papeis.

 

Se não fora deferência para com o tribunal, a quem devemos consideração e respeito, de certo que prescindiríamos neste lugar de discutir o merecimento dos indícios apresentados pelo captor, não só porque ainda mesmo quando eles fossem valiosos, não necessitaríamos levar com eles tempo, em razão das provas que já apresentamos em vista do Tratado existente entre o Brasil e a Grã-Bretanha que somente autoriza detenções no caso de se encontrar a bordo escravos para o tráfico, o qual Tratado é o único que nos rege, o único que tem de decidir esta questão, senão também porque na realidade esses indícios apresentados pelo comandante captor são os mais insignificantes, os mais miseráveis que se possam imaginar.

 

São tais, que nem merecerão as honras de figurar no número dos que foram apontados por Lord Palmerston no “Bill” que propôs ao parlamento inglês, e que por ele foi, em 1839, adaptado, e sancionado pelo governo de S.M.B., além de que esse “Bill”, sobre o parecer viola os mais óbvios princípios do direito das gentes, e as garantias de uma nação independente, não é aplicável de modo algum aos navios mercantes brasileiros, e unicamente aos navios portugueses, contra quem especial e declaradamente ele se dirige, como a sua própria letra o patenteia.

 

O primeiro dos motivos apontados, conquanto essas armas existissem a bordo, não pode de maneira nenhuma prevalecer, pois que, em primeiro lugar, às autoridades brasileiras é que cumpre velar sobre a execução de suas leis, e não deu ainda o governo brasileiro aos comandantes de navios de guerra ingleses autorização para fazerem cumprir o que se tem disposto por lei para segurança pública e interna do País, não sendo da competência do comandante Christie o saber se se achava ou não o brigue incurso na sanção penal das instruções de 25.11.1839.

 

Em segundo lugar, cumpre notar que essas armas estavam a granel, sem pedra, incapazes algumas de armar, outras de fazer fogo, já velhas e gastas, de modo que se não pode dizer de boa-fé incompetentemente armado o navio, tanto que nenhuma pólvora havia a bordo, o que demonstra suficientemente que aquelas armas não eram de uso.

Tudo isto está provado documental e testemunhalmente. Outro fundamento cifra-se na achada de água a bordo, cuja quantidade parece, no entender do comandante Christie, superior à exigência do navio.

 

Note-se que a tripulação e passageiros montavam a 33 pessoas, como o asseverou na sua parte o captor, e para uma viagem de longo curso, o número de 15 pipas e meia d’água, que é a porção encontrada a bordo, e que foi verificada, assim como a quantidade de 11 sacos de farinha, 6 alqueires de arroz e o rancho [que por constituírem mantimento é de uso não se declararem no manifesto], não podem parecer demasiadas, atendendo-se mesmo aos animais de que fala o captor, e que se tinha necessidade de sustentar.

 

Quanto à qualidade da aguardente, era de 18 a 20 graus, e não se pode conceber a suposição do comandante de que as pipas cheias de tal aguardente fossem próprias para água de retorno, suposição tão infundada quanto gratuita.

 

As chupetas, a que prestou tanto cuidado o captor, eram quatro unicamente, e esse número tão pequeno foi capaz de tanto aterrar o comandante Christie, que logo supôs que eram destinadas ao uso dos escravos quando voltassem.

 

Não deixaremos também de notar aqui a existência suspeitosa do seu sexto fundamento. Os dormentes do navio, feitos conforme a construção brasileira, pois que ele foi fabricado em Camamú, pareceram-lhe bailéus ou preparos de segunda coberta, e desde logo atribui um fato natural e usado a um fim sinistro e reprovado. O fato que em último lugar alega o captor, de lhe haver comunicado o passageiro João Pereira que no momento da caça se lançaram de bordo do brigue ferros e papeis ao mar, é inteiramente falso. Esse passageiro foi um dos que se soltaram na Bahia; ele jurou, no apenso de que já temos falado, e ali assevera que fora convidado para dizer esse e outros fatos iguais, a fim de justificar o comandante captor, recebendo muitas insinuações e promessas de ser solto e receber tudo quanto possuía, e que a tudo resistiu.

 

Eis provada a falsidade da alegação do captor; e note-se que, se essa alegação fosse verdadeira, sem dúvida nenhuma, e até mesmo seria de obrigação do comandante Christie trazer para a Comissão Mista esse João Pereira, para ali depor sobre isso; e como entretanto por seu próprio ato o soltou? Certamente porque lhe não convinha seu depoimento, que provaria de falsa a alegação arranjada pelo captor.

 

Acrescente-se a estas observações aquelas que nos pode ministrar a justificação de f. 8 do documento sob n° 2°, justificação legal, feita perante o juízo da Conservatória Inglesa na Bahia, com previa citação do cônsul de S.M.B., com sua audiência, seguida do depoimento de 8 testemunhas concordes, que foram os passageiros e equipagem soltos pelo comandante Christie, justificação julgada por sentença de magistrado competente com força de lei, pois que transitou sem embargos na chancelaria.

 

Leiam-se as queixas desses pobres e desgraçados homens, as perseguições que se lhes fizeram, os insultos que lhes dirigiram, pancadas mesmo que alguns levaram, o que é horroroso, não só em atenção ao sentimento da humanidade que em todos os corações bem formados deve existir. Senão também em vista do artigo 7° das instruções aos cruzadores ingleses, o qual manda que eles se “comportem com toda a moderação, e com todas as atenções devidas entre nações amigas e aliadas”.

 

Quem com sangue frio poderá ler a narração juramentada, o depoimento inteiro de cada um desses prisioneiros, a quem no princípio se fez mil promessas, se dirigiu seduções, para declararem que o navio ia para o tráfico de escravos, e como eles o não quisessem declarar, por ser contra sua consciência, arrombaram-lhes as caixas, roubou-se-lhes o dinheiro, furtou-se-lhes a roupa, e depois se os largou ao desamparo nas praias da cidade da Bahia?

 

Nós quiséramos não falar nestes fatos, quiséramos cobri-los com um eterno véu, desgraçadamente porém eles estão provados e julgados por sentença passada até em julgado! Não, não duvidamos que o captor fora no princípio levado pelo espírito de cumprimento de suas ordens, mas ele excedeu todas as regras que pela lei natural, pelas leis do seu próprio País, pelas ordens e instruções do seu mesmo Governo lhe estão estritamente marcadas. E em vista de semelhantes acontecimentos, com a prática de atos iguais, pode-se legalizar uma presa, pode-se considera-la boa? De certo que não.

 

E nem mesmo quando os indícios fossem os mais poderosos; quando tantas suspeitas não resultassem do comportamento do captor, que tirão a suas alegações toda a força moral; quando se pudesse colher dos objetos encontrados a bordo do brigue a plena presunção de se dirigir ele para o tráfico, além dos indícios não produzirem nunca uma prova, na expressão de jurisprudência, nem o Tratado autorizava a sua detenção, nem o “Bill” de Lord Palmerston lhe era aplicável, nem as leis criminais do império lhe diziam respeito por ora, porquanto esse fato provava apenas que haviam indícios de tentativa de se cometer um crime, faltando, porém, ainda, pela ausência de escravos a bordo, e sua pretensão de descarrega-los nas costas do Brasil, o princípio de execução, para se classificar por esse modo, na conformidade da doutrina do artigo 2°, &2°, do código penal do império.

 

Em presença pois destas razões, em cumprimento dos Tratados, que se devem religiosamente respeitar a bem da justiça, que releva em tudo consagrar; em nome da dignidade deste respeitável tribunal, que com a demora do navio na Bahia foi de alguma sorte desconhecida; em nome da honra do Governo de S.M.B., que necessariamente há de reprovar atos tão horrorosos e excessivos, que se não podem considerar por ele autorizados; em nome do Governo de S.M. o Imperador do Brasil, que foi de frente atacado pela visita e prolongada detenção de um brigue pertencente a súbitos seus respeitosos e fieis, nós PEDIMOS aos membros da Comissão Mista Brasileira e Inglesa se dignem de dar com a maior brevidade uma sentença de absolvição para o brigue brasileiro “Nova Aurora”, a fim de que, obrigando o captor a desistir de suas pretensões, seja ele relaxado da detenção que tem sofrido, e entregue logo a seus proprietários, e o Governo de S.M.B. obrigado a pagar, na forma dos artigos 1° e 8° do regulamento das comissões mistas, e dentro do prazo de um ano, na conformidade do artigo 6° do mesmo regulamento, uma justa e completa indenidade ([2]) pelas perdas suportadas, lucros cessantes, prejuízos devidos, e juros legais, porque tudo se protestou na cidade da Bahia, e porque tudo agora ratificamos o protesto, em observância e uso do nosso direito.

 

Rio de Janeiro, 10 de abril de 1841.

Dr. João Manoel Pereira da Silva. (REGNAULT)

 

Bibliografia

 

REGNAULT, Elias. História Criminal do Governo Inglês Desde as Primeiras Matanças da Irlanda até o Envenenamento dos Chinas... – Brasil – Rio de Janeiro, RJ – Typ. Universal de Laemmert, 1842.


 

(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;

 

Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)

Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);

Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);

Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);

Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)

Ex-Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);

Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);

Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);

Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)

Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);

Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)

Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).

Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).



[1]   Bailéu: plataforma construída no porão de alguns navios, onde ficam paióis ou outros compartimentos semelhantes.

[2]   Indenidade: Indenização.

* O conteúdo opinativo acima é de inteira responsabilidade do colaborador e titular desta coluna. O Portal Gente de Opinião não tem responsabilidade legal pela "OPINIÃO", que é exclusiva do autor.

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