Quarta-feira, 3 de abril de 2024 - 08h05
Bagé, 03.04.2024
Defesa Feita Pelo Sr. Dr. Pereira da Silva ao
Brigue Brasileiro “Nova
Aurora” – Apresado
na Bahia Pela Corveta Inglesa “Rose”
[...] Entretanto, o que fez
depois da detenção o comandante captor? Levou-o de novo para a Bahia, aonde,
debaixo do pretexto de proceder a um “exame
mais minucioso”, demorou-se 5 dias, e note-se que o fez em ausência do
Capitão, tripulação e mais passageiros do navio, os quais transferiu para bordo
da corveta.
Como poder-se-ia acreditar verídico um semelhante exame, uma
igual busca, não se achando presente senão o captor, isto é, uma das partes
interessadas? Não
poder-se-ia suspeitar que, de posse do brigue, e longe dos olhos expiadores e
cautelosos dos prisioneiros, procurasse o captor meter a bordo quaisquer
gêneros de comprometimento para o navio detido, ainda mesmo não para perde-lo,
mas unicamente para ressalvar-se, para justificar-se do ato da detenção que tão
pouco refletidamente havia praticado?
Além ainda da ilegalidade de
semelhante exame, da sua nenhuma validade em direito, do pouco ou nenhum
crédito que se poderia inferir dele, quando mesmo declarasse o comandante
captor haver achado a bordo do brigue gêneros de comprometimento, o que
felizmente não declarou, não podia ter ele lugar em virtude do artigo citado no
parágrafo antecedente, porquanto o que deverá fazer o comandante Christie, logo
que deteve o navio, era seguir imediatamente com ele para o Rio de Janeiro,
afim de submetê-lo ao julgamento da Comissão Mista Brasileira e Inglesa; e
quando por um acontecimento inesperado e superior fosse obrigado a ir à Bahia,
deveria então sujeitar-se à disposição dos artigos 2° e 3° das instruções, que
mandam que, dado o caso de cumprir-se fazerem-se as visitas estando o navio
dentro do porto ou ao alcance das baterias de qualquer das duas nações, se
represente convenientemente às autoridades locais, como muito bem o exigiu o
Exm° Presidente da Província na sua nota ao cônsul de S.M.B., com data de 3 de
março, que se junta sob n° 2.
Entretanto, só depois de haver
praticado todos estes fatos, como de propósito para menosprezo do Tratado, é
que o comandante da “Rose” decidiu-se
a remeter para o Rio de Janeiro o brigue “Nova
Aurora”.
E como na Bahia afirmara que
tinha encontrado a seu bordo indícios tais que “no seu ânimo” não havia dúvida de se empregar ele no tráfico de
escravos, aqui, perante a Comissão Mista, diante deste respeitável tribunal, no
momento de fazer entrega por mão do indivíduo Edwin Morgan, a quem ele
encarregara o governo do brigue, dos documentos e papeis encontrados a seu
bordo, declarou que no dia 25 de fevereiro, pelo meio dia, avistara o brigue,
e, dando-lhe caça, o deteve no dia seguinte, na Lat. 13°07’57”, e Long. de
Greenwich 37°50’; e não podendo ali examiná-lo, o levara de novo para a Bahia,
aonde do exame e visita a que procedeu resultando indícios de seu emprego no
tráfico, o fizera vir à Comissão, fundando-se nos seguintes motivos:
1° Por ter encontrado 1 bacamarte, 15 espingardas, 3 pistolas
e algumas espadas, armas estas não mencionadas nem no manifesto nem no
despacho, e portanto em contravenção das instruções do Governo Imperial de 25
de novembro de 1839, achando-se o brigue incompetentemente armado;
2° Por ter encontrado uma estiva ou correnteza de 14 vasilhas
ou pipas para água por baixo da coberta de proa, além de 9 mais pequenas;
3° Por achar um número de cascos ou vasilhas com
uma espécie de aguardente ordinária, os quais desconfia serem para água na
volta;
4° Por encontrar uma porção de farinha a granel,
na quantidade de 11 sacos ou 2.000 libras, e algum arroz, que não estando
declarado no manifesto, e havendo, de mais a mais, galinhas, porcos e vários
mantimentos, não podia crer que fosse para sustento da tripulação, e sim para
escravos que trouxesse de volta;
5° Por achar uma porção de chupetas, que somente em navios de
escravos se usa;
6° Por estar o brigue arranjado para uma segunda coberta ou
bailéu ([1]), toda em roda do
porão;
7° Enfim, por haver-lhe declarado o preto João Pereira que
vira de bordo do brigue na ocasião da caça deitar-se ao mar ferros e papeis.
Se não fora deferência para com
o tribunal, a quem devemos consideração e respeito, de certo que
prescindiríamos neste lugar de discutir o merecimento dos indícios apresentados
pelo captor, não só porque ainda mesmo quando eles fossem valiosos, não
necessitaríamos levar com eles tempo, em razão das provas que já apresentamos
em vista do Tratado existente entre o Brasil e a Grã-Bretanha que somente
autoriza detenções no caso de se encontrar a bordo escravos para o tráfico, o
qual Tratado é o único que nos rege, o único que tem de decidir esta questão,
senão também porque na realidade esses indícios apresentados pelo comandante
captor são os mais insignificantes, os mais miseráveis que se possam imaginar.
São tais, que nem merecerão as
honras de figurar no número dos que foram apontados por Lord Palmerston no “Bill” que propôs ao parlamento inglês, e
que por ele foi, em 1839, adaptado, e sancionado pelo governo de S.M.B., além
de que esse “Bill”, sobre o parecer
viola os mais óbvios princípios do direito das gentes, e as garantias de uma
nação independente, não é aplicável de modo algum aos navios mercantes
brasileiros, e unicamente aos navios portugueses, contra quem especial e
declaradamente ele se dirige, como a sua própria letra o patenteia.
O primeiro dos motivos
apontados, conquanto essas armas existissem a bordo, não pode de maneira
nenhuma prevalecer, pois que, em primeiro lugar, às autoridades brasileiras é
que cumpre velar sobre a execução de suas leis, e não deu ainda o governo
brasileiro aos comandantes de navios de guerra ingleses autorização para
fazerem cumprir o que se tem disposto por lei para segurança pública e interna
do País, não sendo da competência do comandante Christie o saber se se achava
ou não o brigue incurso na sanção penal das instruções de 25.11.1839.
Em segundo lugar, cumpre notar
que essas armas estavam a granel, sem pedra, incapazes algumas de armar, outras
de fazer fogo, já velhas e gastas, de modo que se não pode dizer de boa-fé
incompetentemente armado o navio, tanto que nenhuma pólvora havia a bordo, o
que demonstra suficientemente que aquelas armas não eram de uso.
Tudo isto está provado
documental e testemunhalmente. Outro fundamento cifra-se na achada de água a
bordo, cuja quantidade parece, no entender do comandante Christie, superior à
exigência do navio.
Note-se que a tripulação e
passageiros montavam a 33 pessoas, como o asseverou na sua parte o captor, e
para uma viagem de longo curso, o número de 15 pipas e meia d’água, que é a
porção encontrada a bordo, e que foi verificada, assim como a quantidade de 11
sacos de farinha, 6 alqueires de arroz e o rancho [que por constituírem
mantimento é de uso não se declararem no manifesto], não podem parecer
demasiadas, atendendo-se mesmo aos animais de que fala o captor, e que se tinha
necessidade de sustentar.
Quanto à qualidade da
aguardente, era de 18 a 20 graus, e não se pode conceber a suposição do
comandante de que as pipas cheias de tal aguardente fossem próprias para água
de retorno, suposição tão infundada quanto gratuita.
As chupetas, a que prestou
tanto cuidado o captor, eram quatro unicamente, e esse número tão pequeno foi
capaz de tanto aterrar o comandante Christie, que logo supôs que eram
destinadas ao uso dos escravos quando voltassem.
Não deixaremos também de notar
aqui a existência suspeitosa do seu sexto fundamento. Os dormentes do navio,
feitos conforme a construção brasileira, pois que ele foi fabricado em Camamú,
pareceram-lhe bailéus ou preparos de segunda coberta, e desde logo atribui um
fato natural e usado a um fim sinistro e reprovado. O fato que em último lugar
alega o captor, de lhe haver comunicado o passageiro João Pereira que no
momento da caça se lançaram de bordo do brigue ferros e papeis ao mar, é
inteiramente falso. Esse passageiro foi um dos que se soltaram na Bahia; ele
jurou, no apenso de que já temos falado, e ali assevera que fora convidado para
dizer esse e outros fatos iguais, a fim de justificar o comandante captor,
recebendo muitas insinuações e promessas de ser solto e receber tudo quanto
possuía, e que a tudo resistiu.
Eis provada a falsidade da
alegação do captor; e note-se que, se essa alegação fosse verdadeira, sem
dúvida nenhuma, e até mesmo seria de obrigação do comandante Christie trazer
para a Comissão Mista esse João Pereira, para ali depor sobre isso; e como
entretanto por seu próprio ato o soltou? Certamente porque lhe não convinha seu
depoimento, que provaria de falsa a alegação arranjada pelo captor.
Acrescente-se a estas
observações aquelas que nos pode ministrar a justificação de f. 8 do documento
sob n° 2°, justificação legal, feita perante o juízo da Conservatória Inglesa
na Bahia, com previa citação do cônsul de S.M.B., com sua audiência, seguida do
depoimento de 8 testemunhas concordes, que foram os passageiros e equipagem
soltos pelo comandante Christie, justificação julgada por sentença de
magistrado competente com força de lei, pois que transitou sem embargos na
chancelaria.
Leiam-se as queixas desses
pobres e desgraçados homens, as perseguições que se lhes fizeram, os insultos
que lhes dirigiram, pancadas mesmo que alguns levaram, o que é horroroso, não
só em atenção ao sentimento da humanidade que em todos os corações bem formados
deve existir. Senão também em vista do artigo 7° das instruções aos cruzadores
ingleses, o qual manda que eles se “comportem
com toda a moderação, e com todas as atenções devidas entre nações amigas e
aliadas”.
Quem com sangue frio poderá ler
a narração juramentada, o depoimento inteiro de cada um desses prisioneiros, a
quem no princípio se fez mil promessas, se dirigiu seduções, para declararem
que o navio ia para o tráfico de escravos, e como eles o não quisessem
declarar, por ser contra sua consciência, arrombaram-lhes as caixas,
roubou-se-lhes o dinheiro, furtou-se-lhes a roupa, e depois se os largou ao
desamparo nas praias da cidade da Bahia?
Nós quiséramos não falar nestes
fatos, quiséramos cobri-los com um eterno véu, desgraçadamente porém eles estão
provados e julgados por sentença passada até em julgado! Não, não duvidamos que
o captor fora no princípio levado pelo espírito de cumprimento de suas ordens,
mas ele excedeu todas as regras que pela lei natural, pelas leis do seu próprio
País, pelas ordens e instruções do seu mesmo Governo lhe estão estritamente
marcadas. E em vista de semelhantes acontecimentos, com a prática de atos
iguais, pode-se legalizar uma presa, pode-se considera-la boa? De certo que
não.
E nem mesmo quando os indícios
fossem os mais poderosos; quando tantas suspeitas não resultassem do
comportamento do captor, que tirão a suas alegações toda a força moral; quando
se pudesse colher dos objetos encontrados a bordo do brigue a plena presunção
de se dirigir ele para o tráfico, além dos indícios não produzirem nunca uma
prova, na expressão de jurisprudência, nem o Tratado autorizava a sua detenção,
nem o “Bill” de Lord Palmerston lhe
era aplicável, nem as leis criminais do império lhe diziam respeito por ora,
porquanto esse fato provava apenas que haviam indícios de tentativa de
se cometer um crime, faltando, porém, ainda, pela ausência de escravos a bordo,
e sua pretensão de descarrega-los nas costas do Brasil, o princípio de
execução, para se classificar por esse modo, na conformidade da doutrina do
artigo 2°, &2°, do código penal do império.
Em presença pois destas razões,
em cumprimento dos Tratados, que se devem religiosamente respeitar a bem da
justiça, que releva em tudo consagrar; em nome da dignidade deste respeitável
tribunal, que com a demora do navio na Bahia foi de alguma sorte desconhecida;
em nome da honra do Governo de S.M.B., que necessariamente há de reprovar atos
tão horrorosos e excessivos, que se não podem considerar por ele autorizados;
em nome do Governo de S.M. o Imperador do Brasil, que foi de frente atacado
pela visita e prolongada detenção de um brigue pertencente a súbitos seus
respeitosos e fieis, nós PEDIMOS aos membros da Comissão Mista Brasileira e
Inglesa se dignem de dar com a maior brevidade uma sentença de absolvição para
o brigue brasileiro “Nova Aurora”, a
fim de que, obrigando o captor a desistir de suas pretensões, seja ele relaxado
da detenção que tem sofrido, e entregue logo a seus proprietários, e o Governo
de S.M.B. obrigado a pagar, na forma dos artigos 1° e 8° do regulamento das
comissões mistas, e dentro do prazo de um ano, na conformidade do artigo 6° do
mesmo regulamento, uma justa e completa indenidade ([2])
pelas perdas suportadas, lucros cessantes, prejuízos devidos, e juros legais,
porque tudo se protestou na cidade da Bahia, e porque tudo agora ratificamos o
protesto, em observância e uso do nosso direito.
Rio de Janeiro, 10 de abril de 1841.
Dr. João Manoel Pereira da Silva. (REGNAULT)
Bibliografia
REGNAULT, Elias. História Criminal do Governo Inglês Desde as Primeiras Matanças da
Irlanda até o Envenenamento dos Chinas... – Brasil – Rio de Janeiro, RJ –
Typ. Universal de Laemmert, 1842.
(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de
Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor
e Colunista;
Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do
Sul (1989)
Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre
(CMPA);
Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura
do Exército (DECEx);
Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério
Militar – RS (IDMM – RS);
Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando
Militar do Sul (CMS)
Ex-Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia
Brasileira (SAMBRAS);
Membro da Academia de História Militar Terrestre do
Brasil – RS (AHIMTB – RS);
Membro do Instituto de História e Tradições do Rio
Grande do Sul (IHTRGS – RS);
Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia
(ACLER – RO)
Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio
Grande do Sul (AMLERS)
Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da
Escola Superior de Guerra (ADESG).
Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
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