Quarta-feira, 21 de junho de 2023 - 06h05
Bagé, 21.06.2023
Valquírias
Americanas
Antônia (Jovita) Alves Feitosa – Parte II
Sobre o mesmo assunto lê-se na “Liga e Progresso” da mesma cidade:
Liga e Progresso n° 10? ([1])
Teresina, Piauí – ??.07.1865
Voluntária da Pátria
– Em um destes últimos dias apareceu no Palácio da Presidência, pedindo para
ser alistado “Voluntário da Pátria”,
um jovem de 17 anos de idade, pouco mais ou menos, estatura regular, vestido
simplesmente de camisa e calça, e trazendo na mão um chapéu de couro, S. Exª o
Sr. Dr. Francklin Dória, aceitando-o como tal, lhe ordenara que no dia seguinte
se apresentasse para ser aquartelado.
Algumas pessoas, porém, notaram e ficaram prevenidas sobre
os sinais característicos desse jovem Voluntário, que mais lhes indicavam ser
uma mulher do que um homem, e não o perderam mais de vista.
Às 5 horas da tarde do dia designado para o aquartelamento do jovem Voluntário,
uma multidão imensa o acompanhava para a casa do Sr. Dr. Chefe de Polícia, onde
chegando declararam algumas pessoas que esse indivíduo, que se dizia “Voluntário da Pátria”, era uma mulher
disfarçada em homem. O Sr. Dr. Freitas mandou entrar o suposto voluntário, e
procedeu-lhe ao interrogatório que aqui damos publicidade.
« Interrogatório »
Auto de perguntas a um “Voluntário da Pátria”, que foi conhecido
ser mulher.
Aos nove dias do mês de julho
do ano do nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo de mil oitocentos e sessenta
e cinco, nesta cidade de Teresina em casa da morada do meritíssimo Dr. Chefe de
Polícia José Manoel de Freitas, comigo escrivão do seu cargo, abaixo nomeado,
ai achando-se presente Antônio Alves Feitosa, livre de ferro e sem coação, por
ele Dr. Chefe de Polícia da Província, “ex
officio” ([2]),
lhe foram feitas as seguintes perguntas:
Perguntado qual o seu nome,
idade, estado, naturalidade, filiação, meios de vida e residência.
Respondeu chamar-se Antônia
Alves Feitosa, conhecida desde menina pelo apelido de Jovita com dezessete anos
de idade, solteira, natural dos Inhamuns, da Província do Ceará, ser filha de
Simeão Bispo de Oliveira e de Maria Rodrigues de Oliveira, viver de suas
costuras, ser moradora no Brejo Seco, no Inhamuns, e somente de sete meses para
cá na Vila de Jaicós, desta Província.
Perguntado quando saiu da Vila
de Jaicós para esta capital, que destino tinha?
Respondeu que saiu a vinte do
mês passado, diretamente para esta capital, com o único fim de ver se podia ser
aceita para a guerra no Paraguai.
Perguntado em companhia de quem
veio?
Respondeu que veio para aqui
com os Voluntários que trouxe o Sr. Capitão Cordeiro, tendo declarado aos
mesmos qual sua intenção.
Perguntado se não era amazia de
algum dos voluntários com quem veio?
Respondeu que não tinha
relações com esses homens, e que os acompanhou somente porque vinham também
para a capital, tendo por muitas vezes declarado-lhes, quando indagaram da sua
viagem ‒ que se ia apresentar como, “Voluntária
da Pátria”.
Perguntado porque tomou, roupa
de homem, mudando assim o seu traje natural?
Respondeu que tomou roupa de
homem, porque as pessoas a quem declarava sua intenção, diziam-lhe ‒ que, como
mulher, não poderia ser aceita no Exército. E então como fosse grande o desejo,
que tem de seguir para a Guerra cortou seus cabelos com, uma faca, pedindo
depois a uma mulher que os aparasse bem rente, e tomando roupas de homem; foi
assim apresentar-se ao Exm° Sr. Presidente da Província, e rogou-lhe que a
mandasse alistar como “Voluntária da
Pátria”.
Perguntado como descobriu-se
ser mulher?
Respondeu que estando na casa da
feira, hoje pelas quatro horas da tarde, uma mulher vendo-a com as orelhas
furadas, dirigiu-se a ela respondente ([3])
e a palpando-lhe os peitos, apesar de sua oposição, e de ter atados os seios
com uma cinta, a referida mulher pôde conhecer o seu sexo, e imediatamente
descobriu-a, dando parte ao inspetor do quarteirão, que mandou-a conduzir à
polícia por dois soldados.
Perguntado porque chorava quando se viu na presença da
autoridade?
Respondeu que chorava porque se via em trajes de homem em
presença de muitas pessoas, e teve vergonha disso; e mais chorava também porque
supunha que sendo descoberta não seria aceita para a guerra.
Perguntado se sabia atirar, e se tem disposição para sofrer
os trabalhos da guerra? Respondeu que não sabia carregar a arma, mas que sabe
atirar, e tinha disposição para aprender o necessário e também para suportar os
trabalhos da Guerra, e até para matar o inimigo.
Perguntado se o governo a não aceitasse como soldado, se
está disposta a seguir sempre para o Sul, afim de ocupar-se em trabalhos
próprios do seu sexo?
Respondeu que em último caso aceitará isso, porém que o seu
desejo era seguir como soldado, e tomar parte nos combates, como “Voluntária da Pátria”.
Perguntado se seus pais são vivos ou mortos, e se conhece
alguns de seus parentes, e quem sejam eles?
Respondeu que não tem mais mãe; que seu irmão mais velho de
nome Jesuíno Rodrigues da Silva já seguiu para o Sul; que seu pai ainda vive,
tendo consigo irmãos menores dela respondente, no lugar Brejo Seco, já
referido.
Perguntado se sabia ler e escrever? Respondeu que sabe, mas
tudo mal.
E nada mais respondeu e nem lhe
foi perguntado: deu-se por findo este auto de perguntas, depois de lido e o
achando conforme, assina com o Juiz, e rubricado pelo mesmo; do que dou fé.
Eu Raymundo Dias de Macedo, escrivão, o escrevi e assina ‒ Antônia Alves
Feitosa.
É sobre modo notável que no sexo
feminino, onde naturalmente se aninham o medo e o pavor, apareça esta exceção à
regra geral, encarando com verdadeiro denodo e coragem os rigores de uma
Guerra! Do interrogatório que se acaba de ver e diversas interpelações que
particularmente se tem feito à esta brava jovem, ainda se não pôde coligir que
outro desígnio, a não ser o nobre fim de pugnar pela defesa da pátria, a
tivesse trazido da Vila de Jaicós a 70 léguas distantes desta cidade. É um
heroísmo a toda aprova.
Este mesmo depoimento nos foi
feito por Jovita em uma das salas do Quartel do Campo da Aclamação, no Rio de
Janeiro, onde ela se achava. Só um devotamento supremo podia ter tocado o
coração desta mulher cuja resolução inabalável perde-se nos véus de um mistério,
que não nos é dado perscrutar, e que só o futuro nos poderá esclarecer.
Na frase de um grande escritor,
talvez que o demônio da solidão a inspirasse!
III
Aí em Teresina encontrou-se com seu pai, que vinha de
Caxias, o qual, com dificuldade aquiescendo aos desejos patrióticos de sua
filha, deitou-lhe sua benção, e seguiu...
Jovita já
não era uma mulher! Era um “Voluntário da
Pátria”, graduado com o posto de Sargento! No dia 10 de agosto embarcou
Jovita com 460 praças com destino a Parnaíba. Daí embarcou no Gurupi para o
Maranhão, e do Maranhão veio no Tocantins para o Rio de Janeiro, onde chegou no
dia 9 de setembro.
Imediatamente
despertou-se a curiosidade pública. Todos corriam para vê-la. As fotografias se
reproduziam todos os dias, e é raro quem não possua um retrato da voluntária
do Piauí.
Vimo-la
também: ‒ É um tipo índio. Tem uma estatura mediana, maneiras simples, e sem
afetação, despida daquela gravidade, que impõe um respeito profundo, bem
proporcionada, rosto redondo, uma cútis amarelada, cabelos curtos, crespos, e
de um negro acaboclado, mãos de homem e secas, pés grandes.
Seus olhos
negros, cheios de luz, tornam-na simpática, seus lábios fechados com alguma
graça ocultam dentes alvos, limados e pontiagudos.
Uma
serenidade d’alma estende-se pelo seu todo, e mesmo lhe assegura uma confiança,
que a tranquiliza. De onde se vê que devia zombar das seduções que a rodeiam.
Sua voz cantada e de um timbre agradável conserva sempre uma firmeza
imperturbável.
Procurando-a
no seu aquartelamento tivemos por fim estudá-la, e mesmo ver se conseguíamos o
segredo que a moveu nessa resolução inabalável. Surpreendeu-nos a sua
singeleza e a tranquilidade que conservava vivendo entre soldados.
Nessa ocasião trajava calças
brancas, com uma blusa de chita mal afogada, num desalinho desgostoso, deixando
ver, através do colarinho de homem, um rosário de contas escuras, e uma
corrente de ouro, cingidos ao pescoço.
Encostada a uma mesa com a
cabeça apoiada sobre a mão esquerda, respondia-nos, brincando com bonecas, e
uma caixinha de brinquedos de criança. Como se conciliar esta natureza
enigmática? Enigma talvez para ela mesmo, enigma ficou para nós! Seria
fraqueza? ‒ Não! ‒ O Heliotropo ([4])
também se volta para o Sol. Entre as muitas perguntas que lhe fizemos respondeu-nos
contrariada do seguinte modo:
‒ Eu
tenho muita raiva dos Paraguaios, queria ir para a guerra para matar essa
gente; mas não me querem, enjeitaram-me.
Como assim? retorquimos nós.
‒ O
governo não permite que eu siga. Já me destituirão do posto.
Mas, dissemos nós, a Sr.ª mesmo
não podia ir por ser mulher; porque razão não segue prestando os serviços
próprios do seu sexo?
‒ Não,
nesse caso não vinha, podia ficar na minha terra, onde faria tudo isso, e de
mais,
Continuou ela num tom
apaixonado...
‒ O
Imperador também já foi para a guerra...
A Sr.ª estima o nosso Monarca!
‒ Se
eu não estimá-lo, a quem mais devo estimar?
Respondeu-nos com uma inflexão de voz decisiva. De fato,
notava-se que um sentimento de contrariedade dominava toda a sua figura. Já não
possuía aquela majestade dos seus dias de triunfo popular. Tinha no olhar uma
indiferença sarcástica para todos que se aproximavam.
Havia seu
fundamento: Jovita, uma vez prestado o juramento de fidelidade à sua Pátria, e
depois alistada no Exército com as honras de 2° Sargento de Voluntários, nunca
suspeitou que mais tarde a destituíssem do seu posto. Uma ordem, porém, baixou
da Secretaria de Estado dos Negócios da Guerra, em data de 16 de setembro,
concebida nestes termos:
Ilm° Sr.
Não havendo disposição alguma nas
Leis e Regulamentos Militares que permitia à mulheres terem praça nos Corpos do
Exército, nem nos da Guarda Nacional, ou de Voluntários da Pátria; não pode
acompanhar o Corpo sob o comando de V.S. com o qual veio da Província da Piauí
a Voluntária Jovita Alves Feitosa na qualidade de praça do mesmo Corpo, mas sim
como qualquer outra mulher das que se admitem a prestar junto aos Corpos em
Campanha os serviços compatíveis com a natureza do seu sexo, serviços cuja
importância podem tornar a referida Voluntária tão digna de consideração, como
de louvores o tem sido: pelo seu patriótico oferecimento: a que declaro a V.S.
para seu conhecimento, e governo.
Deus
guarde a V.S.
Jovita, entretanto, apelou para os sentimentos generosos do
nobre Ministro da Guerra, solicitando para que revogasse a ordem do Quartel
General. Era bem difícil o que ela pedia. O Exm° Ministro, cujos desejos eram
ardentes em conferir-lhe essa graça, de modo nenhum podia aquiescer, visto como
a lei é muito expressa a tal respeito.
Não obstante, dignou-se responder-lhe em uma carta que lhe
dirigiu, concebida nos termos os mais dóceis e convincentes, mostrando-lhe o
preceito da lei. Aí revelou o seu pesar, manifestando que a sua compleição e o
seu sexo era razão para não poder suportar as fadigas de uma campanha, e que o
seu sacrifício em bem do País seria inútil, visto haverem numerosos defensores.
Com tudo, não deixava de apreciar e louvar a viva prova que dava do seu
patriotismo, oferecendo-lhe os meios de que necessitasse para que,
recolhendo-se a sua família, tivesse a felicidade de que é digna. (COARACY)
(Continua...)
Bibliografia
COARACY, José Alves
Visconti. Traços Biográficos da Heroína
Brasileira Jovita Alves Feitosa – Brasil – Rio de Janeiro, RJ – Tipografia
Imparcial de Brito & Irmão, 1865.
(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de
Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor
e Colunista;
Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do
Sul (1989)
Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre
(CMPA);
Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura
do Exército (DECEx);
Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério
Militar – RS (IDMM – RS);
Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando
Militar do Sul (CMS)
Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia
Brasileira (SAMBRAS);
Membro da Academia de História Militar Terrestre do
Brasil – RS (AHIMTB – RS);
Membro do Instituto de História e Tradições do Rio
Grande do Sul (IHTRGS – RS);
Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia
(ACLER – RO)
Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio
Grande do Sul (AMLERS)
Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da
Escola Superior de Guerra (ADESG).
Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
E-mail: hiramrsilva@gmail.com.
[1] Não foi possível identificar, na Biblioteca Nacional Digital, o
número e a data do referido jornal, posso, porém, garantir que deve se tratar
do n° 102 ou 103. (Hiram Reis)
[2] “Ex officio”: em razão
do cargo ocupado. (Hiram Reis)
[3] Respondente: a inquirida. (Hiram Reis)
[4] Heliotropo: vegetal que orienta sua haste, folhas e flores para a
luz solar. (Hiram Reis)
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – X
Bagé, 20.12.2024 Continuando engarupado na memória: Tribuna da Imprensa n° 3.184, Rio, RJSexta-feira, 25.10.1963 Sindicâncias do Sequestro dão e
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – VI
Silva, Bagé, 11.12.2024 Continuando engarupado na memória: Jornal do Brasil n° 224, Rio de Janeiro, RJ Quarta-feira, 25.09.1963 Lei das Selvas T
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – IV
Bagé, 06.12.2024 Continuando engarupado na memória: Jornal do Brasil n° 186, Rio de Janeiro, RJSábado, 10.08.1963 Lacerda diz na CPI que Pressõessã
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – III
Bagé, 02.12.2024 Continuando engarupado na memória: Jornal do Brasil n° 177, Rio de Janeiro, RJQuarta-feira, 31.07.1963 JB na Mira O jornalista H