Sexta-feira, 27 de outubro de 2023 - 06h10
Bagé, 27.10.2023
Às 02h30 de 25.11.2009, iniciei, na
Praia da Pedreira ‒ Parque Itapuã, a tão esperada “Travessia da Margem Oriental Laguna dos Patos”, com destino a Rio
Grande. Como a enseada se mostrasse tranquila e sem ondas, decidi rumar direto
para o Farol de Itapuã. Tão logo me afastei da praia, fui surpreendido pela
força dos ventos do quadrante Norte até então barrados pelo Morro da Fortaleza.
Alterei a rota de modo a contornar cada uma das enseadas. Sob o manto da
escuridão me espreitavam as pedras submersas e, por mais de uma vez, o casco
chocou-se contra os rochedos. Era difícil distinguir entre as areias das praias
e os calhaus. As ondas vinham de todos os lados e, com a visão dificultada pela
escuridão, resolvi aportar na Praia do Araçá que fica a uns seiscentos metros a
Este do Farol de Itapuã. Passei pela praia, oculta pela escuridão, sem
avistá-la, cheguei próximo ao Farol, retornei novamente e nada.
Praia do Araçá
Em 1845, com a chegada dos
Imperialistas à região, os Farrapos afundaram seus brigues “Bento Gonçalves” e “20 de setembro” entre a Praia do Sítio e o local onde se encontra
hoje o Farol de Itapuã. Aportei no Farol de Itapuã às 03h15. Aguardei quase
três horas o Sol sair e os ventos diminuírem para transpor os umbrais da Laguna
dos Patos.
Ponta da “Espia” ‒ Pedra da Argola
Parti ao raiar do dia, antes das
06h00. Logo depois de transpor o Farol, avistei a Pedra da Argola. A enorme
argola, de uns trinta centímetros de diâmetro, “fixada às rochas com chumbo derretido”
(chumbada), fazia parte de um sistema que dá nome à Ponta da Espia, que visava
facilitar a entrada das embarcações no Rio Guaíba quando soprava o vento Norte.
As embarcações faziam uso das
argolas para, tracionadas através de cabos, vencer a “Ponta da Espia” onde se localiza, hoje, o Farol de Itapuã. Aqueles
que contestam essa teoria talvez nunca tenham lido o relato de Henry Walter
Bates, em 1849, subindo o Rio Amazonas:
Quando
começava a soprar o vento Leste, o chamado “vento
geral” do Amazonas, os veleiros avançavam rapidamente Rio acima, mas,
quando não havia vento, eles eram obrigados a ficar ancorados perto da praia
durante vários dias, às vezes; havia, porém, a alternativa de subir
laboriosamente a corrente, com a ajuda da espia.
Essa forma de navegação processava-se da
seguinte maneira: uma montaria ([1]) era
mandada à frente, com dois ou mais homens, os quais iam puxando um cabo de
cerca de vinte ou trinta braças ([2]); uma
das extremidades do cabo ficava amarrada no mastro do veleiro e a outra era
passada à volta de um galho ou do tronco de uma árvore. Os homens puxavam então
o veleiro até o ponto onde se achava a árvore, depois embarcavam de novo na
canoa e levavam o cabo mais adiante, repetindo a operação. (BATES)
Praia do Tigre
e Praia de Fora
Contornei a
Ponta de Itapuã e, ao alterar o rumo pra Este, novamente o vento forte se fez
presente desta vez diretamente de proa. Passei pela bela enseada da Praia do
Tigre e logo, em seguida, naveguei pela longa Praia de Fora. Os dezesseis
quilômetros que me separavam até a Ponta das Desertas não me permitiam
visualizá-la. Não havia avistado viva alma desde que partira da Pedreira,
apenas um grande cargueiro entrando no Guaíba, próximo ao Farol, dava o sinal
da presença humana até ali. A solidão me encantava.
O grande número
de cágados, tomando banho de Sol, impressionava pela quantidade. O número,
certamente, era justificado pela ausência de seu maior predador natural o “Teiú”, que barbaramente violenta os
ninhos desses quelônios comendo seus ovos.
A ausência dos
Teiús é justificada pelo fato de a Praia de Fora não possuir rochas que,
aquecidas pela radiação solar, favoreçam o aquecimento dos corpos desses
animais pecilotérmicos (de sangue frio).
Os cágados
devem ter uma boa visão, pois, quando me aproximava dos bandos a uns trezentos
metros de distância, eles mergulhavam afoitamente nas águas da Laguna.
Os cardumes de tainhas davam um espetáculo à parte. A área protegida, do
Parque, lhes servia de abrigo e parece que elas tinham consciência disso. A
água, às vezes, parecia ferver, tal a quantidade destes mugilídeos. Uma ou
outra saltava na vertical, coisa que eu ainda não tinha observado, projetando
seu belo e esguio corpo prateado sobre a linha do horizonte.
Remei
três horas e meia até o último renque de árvores localizado na extremidade Este
da Ponta das Desertas. Descansei meia hora, me hidratei e alimentei, telefonei
para os familiares e a Equipe de Coordenação formada pelo Coronel PM Sérgio
Pastl (Diretor de Ensino da Brigada Militar e experiente velejador), o Coronel
Leonardo Roberto Carvalho de Araújo (Chefe da Seção de Comunicação Social do
Colégio Militar de Porto Alegre ‒ CMPA), a professora Silvana Schuller Pineda
(Clube de História do CMPA) e a minha parceira Rosângela Maria de Vargas
Schardosim.
“Cabo Horn”
e a Travessia das Desertas
Os ventos
continuavam muito fortes vindos do quadrante Este, meu destino. Resolvi tentar
a travessia e parti às 10h00. A margem Oriental, há mais de vinte quilômetros
de distância, não podia ser avistada e tive de me guiar pelo GPS. Havia marcado
um ponto diretamente a Leste para diminuir a rota. Em condições normais,
levaria em torno de três horas para percorrer tal percurso.
As ondas de três metros e meio e o
vento de proa de quase 60 km/h freavam meu deslocamento, mas, mais uma vez, o
meu caiaque modelo “Cabo Horn” da
Opium FiberGlass se portava galhardamente. Carregado ele se tornara ainda mais
estável e eu jogava o corpo para trás para evitar que enterrasse a proa nas
grandes ondas. Tinha de manter a concentração total na navegação, pois uma
enterrada de remo, um movimento inadequado poderia resultar em um lamentável
acidente. Como não avistava a margem oposta, vez por outra tinha de me guiar
pelo GPS e constatava que ia, inadvertidamente, ziguezagueando, aumentando
ainda mais o percurso.
Às 11h30,
depois de navegar por 90 min, confirmei, pelo GPS, que havia navegado apenas
4,5 km. Cheguei à conclusão de que não teria condições físicas de manter aquele
ritmo e a concentração por mais cinco horas e, se o conseguisse, estaria me
sujeitando a enfrentar uma possível e indesejada mudança do tempo no meio da
travessia e distante da segurança das margens. Resolvi abortar,
temporariamente, a missão e retornar à minha última parada nas Desertas.
Montando
Acampamento nas Desertas
Aproveitei, na
volta, o vento de popa e as ondas, surfando. Foi um deslocamento bem mais
rápido. Escolhi um lugar entre as árvores, resguardado por pequenos montes de
areia, protegido do vento e iniciei a limpeza da área e a montagem da barraca.
Lavei a roupa e
a estendi em um varal improvisado, reparei o casco do caiaque das avarias que
sofrera com Silvertape. Estava cansado, frustrado. Era a segunda vez que
enfrentara condições adversas extremas em meus deslocamentos, a primeira fora
no Rio Guaíba, e a única que tivera que abortar uma travessia.
Tinha decidido descansar e, no dia
seguinte, no momento em que o vento diminuísse, tentar novamente a travessia.
Saí para observar o local, inúmeros biguás e cágados infestavam as praias que o
vento continuava castigando impiedosamente. Tomei um bom banho nas águas da
Lagoa e retornei à barraca, montei o colchão de ar e, depois de me hidratar e
comer massa crua, descansei um pouco. Recebi informação da Equipe de
Coordenação de que a previsão para o dia seguinte era de trovoadas e ventos
mais fortes ainda e fui orientado a abortar a Missão.
O Coronel PM Sérgio Pastl
providenciou uma equipe de resgate formada pelo 1° Sgt QPM1 – João Batista
Prates Pedroso, do Departamento de Ensino da Brigada Militar, e do Sd QPM2 ‒
Evertom Haupenthal, da Escola de Bombeiros. Desmontei o acampamento e remei
mais de onze quilômetros até o local onde se encontrava a viatura da equipe de
resgate.
Fracasso Anunciado nas Desertas
A Travessia, no seu planejamento
original, contava com a presença e apoio, diretamente de bordo, de nosso caro
amigo o Coronel PM Sérgio Pastl e seu veleiro Ana Claci. Eu desfrutaria do
conforto de sua embarcação nos locais de parada sem a necessidade de montar
barraca. Em decorrência de problemas de saúde de sua esposa, ele não pôde me
acompanhar, mas continuou se preocupando em fazer contato com todos os elementos
que, de uma forma ou de outra, poderiam me apoiar ao longo da rota.
O sinal tinha sido claro. A missão
deveria ser executada em outra ocasião. O enfrentamento recente com vento de
cento e dez quilômetros por hora no Guaíba tinha sido outro sinal. A época era
de ventos fortes na Laguna. Por teimosia, talvez, e condicionantes escolares,
alheias à minha vontade, eu tinha de arriscar a qualquer custo. No ano que vem
vamos tentar novamente e continuar tentando até atingir nosso objetivo.
E-mail
do Velejador Coronel PM Sérgio Pastl
[...] desde 1992 tenho usufruído de vivências na Laguna
dos Patos, e muitas vezes ela me vence. Já fui náufrago nela, veranista, feliz
barqueiro a diesel, feliz velejador, passei a noite de 30 de dezembro de 2006
encalhado no Banco do Vitoriano, com a Aninha e os guris. Terrível. Sofri um
rebojo em 2006 [...].
Ainda noutra quebrou o mastro, sorte que a dois
quilômetros de São Lourenço do Sul. Noutra ocasião, quebrei o motor [...]
encalhei no Capão Comprido, e quase perdi um cunhado, o Valdir, afogado, que
desceu no banco de areia para empurrar. Noutra, quase encalhei no Banco do
Bojuru. Confesso que rezei, e cantei salmos, de tão medroso que fiquei. [...]
Ainda noutra, passei dois dias encalhado [...] no
Cristóvão Pereira. Noutra, 31 de dezembro de 2008, ficamos sem vento no Pontal
Santo Antônio, e sem o motor [...].
Depois veio um rebojo e entramos “voando”
Eu sonho com a Laguna, penso nela todos os dias, por
vezes tenho medo, mas é uma cachaça. Para hoje (25 de novembro), a Marinha
expedira “Aviso de Mau Tempo” na
Lagoa e área Alfa, vento Força 7 da
“Escala
Beaufort”. És um bravo. Enfrentaste a Laguna. Não vamos desistir. Vamos
nos fortalecer e voltar. [...]
Vamos planejar o combate. Vamos voltar e aproveitar a
Laguna em melhores momentos. Ela é linda. SELVA! (PASTL)
Escala Beaufort
O Almirante britânico Sir Francis
Beaufort (1774 - 1857) criou uma escala, de
Escala Beaufort
Força |
Denominação |
Velocidade |
Aspecto do Mar |
Influência em Terra |
6 |
VENTO |
36 a 44 |
Grandes vagas de até 3,6 m. muitas cristas
brancas. Probabilidade de borrifos. |
Assobios na fiação aérea. Movem-se os maiores
galhos das árvores. Guarda-chuva usado com dificuldade. |
7 |
VENTO |
|
Mar grosso. Vagas de até |
Movem-se as grandes árvores. É difícil andar
contra o vento. |
8 |
VENTO |
55 a 65 |
Vagalhões regulares de 6 a 7,5 m de altura, com
faixas de espuma branca e franca arrebentação. |
Quebram-se os galhos das árvores. É difícil andar
contra o vento. |
(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de
Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor
e Colunista;
Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do
Sul (1989)
Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre
(CMPA);
Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura
do Exército (DECEx);
Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério
Militar – RS (IDMM – RS);
Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando
Militar do Sul (CMS)
Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira
(SAMBRAS);
Membro da Academia de História Militar Terrestre do
Brasil – RS (AHIMTB – RS);
Membro do Instituto de História e Tradições do Rio
Grande do Sul (IHTRGS – RS);
Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia
(ACLER – RO)
Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio
Grande do Sul (AMLERS)
Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da
Escola Superior de Guerra (ADESG).
Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
E-mail: hiramrsilva@gmail.com.
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