Quarta-feira, 8 de novembro de 2023 - 06h05
Bagé, 08.11.2023
(Adair de Freitas)
Pampeano monta o flete da esperança
Pra percorrer os campos do porvir
Esquece das espadas e das lanças
Que a luz de um novo mundo vai surgir. [...]
Nas asas do condor quero voar
Nos rumos do minuano quero ir
Levando um canto novo pra cantar
Buscando um novo canto para ouvir
E nesta vastidão de campo e céu
Tornar reais meus sonhos de guri
Ao ver a pampa unida ser feliz
Na América do Sul onde nasci. [...]
O Farol e a Ponta Cristóvão Pereira, situados à margem Oriental da Laguna dos Patos, receberam este nome em homenagem ao mais importante tropeiro de todos os tempos ‒ o fidalgo Cristóvão Pereira de Abreu.
No dia 13.07.1678, Cristóvão Pereira de Abreu nasceu em Portugal, freguesia de Fontão, em Ponte de Lima. Aos 24 anos, Cristóvão Pereira veio para o Brasil e aos 42, arrematou o monopólio de couros do Sul do Brasil, assumindo o compromisso de pagar, anualmente, 70 mil cruzados à Fazenda Real.
Surgiu, então, um tipo regional fruto deste comércio e de um gênero de vida perfeitamente adaptado à geografia sulista – o gaúcho, que os historiadores platinos descreviam como “homens rústicos e descalços, envoltos no poncho, “hipocentauros”, aos quais não falta a viola, o cavalo, as bolas ([1]), o laço e a faca para apanhar uma rês e assar a carne de que se alimentam, trabalhando apenas para adquirir o tabaco que fumam ou o mate que bebem sem açúcar, durante todo o dia”.
Para entendermos melhor o contexto histórico em que viveu Cristóvão vamos reproduzir um capítulo da obra “Alexandre de Gusmão e o Tratado de Madrid”, da lavra do médico, escritor e historiador português Jaime Zuzarte Cortesão.
O Território da Colônia,
Berço do Uruguai e do Rio Grande do Sul
Para compreendermos o conflito armado do Prata, desencadeado entre 1735 e 1737, nas circunstâncias que o condicionaram e determinaram, devemos ainda ocupar-nos das origens da formação da atual República do Uruguai e do Estado do Rio Grande do Sul.
O fato que, segundo cremos, vamos pela primeira vez enunciar com a devida clareza é este: desde os fins do século XVII e, mais que tudo, depois da terceira fundação da Colônia do Santíssimo Sacramento, em 1716, os portugueses haviam criado no Território da Colônia, vaga expressão que abrangia as regiões que hoje se dividem entre o Uruguai e o Rio Grande do Sul, uma economia nova e um gênero de vida próprio, dos quais pela colaboração com os espanhóis de Buenos Aires, Santa Fé e Corrientes veio a sair um tipo social específico, ‒ o do gaúcho, que se tornou comum aos dois Estados uruguaio e rio-grandense.
Quando, em 1735, estalou ([2]) o conflito diplomático de Madri, mero pretexto para desencadear as hostilidades contra a Colônia, essa formação econômica havia chegado ao auge e urgia um esclarecimento decisivo sobre o problema da soberania naquelas vastas regiões. As bases de duas novas entidades políticas estavam lançadas, nas suas semelhanças e diversidades, pela colaboração e o conflito igualmente inevitáveis entre espanhóis e portugueses na banda Setentrional do Prata. Datam de então verdadeiramente as origens do Uruguai e os motivos por que a vaga expressão geográfica do Território da Colônia veio a objetivar-se em dois Estados.
Fundam-se as nossas afirmações num grande número de novos documentos. Embora historiadores uruguaios e brasileiros, à porfia ([3]), tenham devassado com benemérito zelo, os arquivos e publicado ou citado uma grande massa de textos dessa época cremos trazer para esses problemas uma contribuição inédita.
Como é sabido, a grande fonte de riqueza da região de que nos estamos ocupando era constituída pelas chamadas vacarias do Uruguai ou do Mar, que se estendiam desde o Rio Uruguai até à costa Atlântica, desde a margem Setentrional do estuário platino até às vacarias dos Pinhais, cerca dos limites entre os atuais Estados do Rio Grande do Sul e Santa Catarina. Terra de ninguém, foi disputada durante quase dois séculos pelos Padres da Província do Paraguai e, mais particularmente dos chamados Sete Povos, pelos portugueses da Colônia, da Laguna e do Rio Grande de São Pedro, e pelos espanhóis de Buenos Aires, Montevidéu, Santa Fé e Corrientes.
Não se entendem ainda hoje os historiadores sobre as verdadeiras origens dessas vacarias. Aurélio Porto aceita como boa e decisiva a afirmação dos jesuítas espanhóis de que haveriam sido eles, ao abandonar, em 1637, sob a pressão dos bandeirantes paulistas, as reduções dos Tape, que ali deixaram algumas centenas de vacas e que estas se tornaram a semente das grandes vacarias que se alastraram naquele território ([4]).
O historiador uruguaio Pablo Blanco Acevedo tem por certo que as primeiras vacas, que vieram a multiplicar-se por forma tão extraordinária, foram lançadas pelos primeiros colonizadores espanhóis nos terrenos próximos a Soriano e à Colônia, quando menos, em 1624 ([5]).
Não nos demoraremos a tratar da distribuição geográfica dessas vacarias, ligadas em grande parte, desde os fins do século XVII, às estâncias dos Sete Povos. Esse estudo foi feito entre outros historiadores por aqueles que citamos. Desejamos, sim, porque esse é o fato novo deste capítulo, documentar as origens da formação duma nova economia assente na riqueza em gado vacum daquelas terras.
As origens portuguesa da indústria da ganadaria ([6]) no Território da Colônia e do comércio de exporta-ção, em grande escala, dos produtos respectivos durante os fins do século de Seiscentos e princípios do seguinte, foram precisamente estudados, com fins de reivindicação de soberania política, por Alexandre de Gusmão, em 1736, no auge do conflito platino.
Valendo-se de uma grande massa de documentos originais, então existentes nos arquivos de Lisboa, e hoje, pelo menos em parte, desaparecidos, ele conseguiu provar que antes da celebração do Tratado de Utrecht, não só os portugueses percorriam as campanhas da Colônia até as paragens mais distantes, mas que essas atividades possessórias foram consentidas, durante certo período, pelo governo de Buenos Aires.
Dos documentos citados na “Dissertation” [[7]], e em especial dos textos oficiais de origem espanhola, se conclui que a indústria da ganadaria, na margem Setentrional do Prata, e o comércio dos seus produtos, ‒ carnes salgadas, couros, sebo e gordura, com exportação em grande escala para o Brasil e Europa, se deve aos portugueses; e, por outros documentos, que essas atividades se prolongaram e progrediram durante quase um século, com a colaboração dos espanhóis, malgrado as hostilidades, quer dos Governadores de Buenos Aires, quer, e principalmente, dos índios das Missões, ou, com mais objetividade, dos Padres jesuítas que dirigiam os Sete Povos Orientais do Uruguai.
O primeiro documento citado por Alexandre de Gusmão é uma carta do Governador de Buenos Aires, D. José de Herrera, escrita a 07.08.1690 ao Governador da Colônia, protestando contra o uso que os portugueses estavam fazendo das campanhas do Rio de Santa Luzia para vaquear ([8]) e trazer dali carnes e couros, que transportavam em barcos Rio abaixo. Nessa carta afirma o Governador de Buenos Aires que, não obstante o direito concedido aos espanhóis pelo Tratado Provisório de 1681 de usar das campanhas, gados, madeiras e pescas da margem Setentrional do Prata:
contudo, como da nossa parte se reconheceram os inconvenientes que podiam seguir-se do encontro de pessoas das duas nações, não se tem aproveitado das faculdades desse privilégio; mas, do vosso lado, ainda que nada disso vos fosse concedido, tendes aproveitado e quase destruído a Ilha de Martim Garcia, que está situada 10 léguas a Leste da vossa Colônia, ao que não tínheis o menor direito, e o vosso excesso foi tamanho que alargastes essa intrusão pelas campanhas e pelas margens do Rio de Santa Luzia.
Das mesmas palavras do Governador Herrera se conclui que os começos da indústria da ganadaria com base nas vacarias se deve aos portugueses. E é lícito pôr em dúvida que a abstenção dos moradores de Buenos Aires, tão louvada pelo seu Governador, se deva a motivos de moderação política. Já veremos que, poucos anos volvidos ([9]), eles manifestavam atitude da mais violenta hostilidade à Colônia do Sacramento.
Nos anos seguintes continuam os protestos dos Governadores de Buenos Aires, contra as progressivas incursões dos portugueses nas campanhas da Colônia. E Alexandre de Gusmão conclui:
Ao que nos parece, não se poderiam aduzir provas melhores que os protestos e cartas dos Governadores de Buenos Aires, para afirmar que os portugueses gozavam então da posse e uso daquelas campanhas.
Mas a seguir transcreve Alexandre de Gusmão documento dum interesse maior. Trata-se de uma carta do Governador de Buenos Aires, D. Agostinho de Robles, dirigida a 18.02.1695, ao Padre Lauro Nunes, Provincial da Companhia de Jesus, remetendo cópia duma carta do Governador da Colônia, denunciando o assalto dalguns índios das Missões, que no Rio do Rosário tiraram a vida a três portugueses e a dois índios Tupi. Pedia o Governador que os índios criminosos fossem remetidos a Buenos Aires para serem devidamente castigados, ou, nas próprias palavras:
para que se possa, em consequência, dar a satisfação que exige um tal excesso, não apenas pelo que diz respeito à queixa e protesto do dito Governador da Colônia, mas também pelo que requere ([10]) a vingança pública.
E o Governador terminava com esta advertência:
E no caso que se recuse este expediente, seremos obrigados a dar conta a Sua Majestade, para que ela prescreva o remédio conveniente a uma matéria, cujas consequências podem ser muito sérias, se acaso se pretende omitir e impedir uma demonstração tão conveniente ao serviço de Sua Majestade.
Com razão comenta Alexandre de Gusmão, fundando-se nesta carta:
o uso que os portugueses tinham a esse tempo da campanha e das suas produções era do próprio e confessado consentimento do Governador espanhol.
No ano seguinte, o mesmo Governador de Buenos Aires, sendo informado das correrias que os índios dos jesuítas faziam nas mesmas campanhas e vendo que era muito difícil evitar maiores conflitos e desordens com os portugueses que ali iam vaquear e buscar lenha, envia ao comandante da guarda espanhola do Rio de São João, a Oeste da Colônia, uma ordem, pela qual, depois de manifestar a sua inquietação pelas incursões dos índios até às proximidades da Colônia, o encarrega de entregar ao Padre que dirige esses índios uma carta, pedindo-lhe se retire imediatamente com eles. Ao próprio Tenente da guarda justifica essa ordem, dizendo que aos índios das Missões não faltam campanhas para se abastecer de gado, sem contender com os portugueses, que vão procurar fora da Praça aquilo de que necessitam para a sua subsistência. Manda-lhe, em consequência, que faça entregar a carta por um homem de confiança e trazer do Padre destinatário o competente recibo. No caso de que esta ordem não fosse convenientemente cumprida, ameaçava de castigo o mensageiro. Depois de aprovar o procedimento do Tenente da guarda, que mandara buscar os índios, implicados no primeiro insulto, ordenava-lhe ainda:
Todas as vezes que se ofereça ocasião e que o Sr. D. Francisco [Naper de Lancastre ‒ Governador da Colônia], vos der aviso, acorrei prontamente a satisfazer os seus desejos. Encarregai o homem que enviardes na presente ocasião de dizer aos índios que leva ordens para que se retirem, sob pena de os fazer castigar; e no caso que esteja com eles algum Padre, o exorte a não se aproximar a 20 léguas da Colônia, pelo risco de que os seus índios se encontrem com os portugueses.
Destas cartas se conclui: que os portugueses iniciaram a indústria da ganadaria nas campanhas do Uruguai; que durante algum tempo não só os espanhóis lhes não disputaram o uso dessas campanhas, mas um Governador de Buenos Aires reconheceu esse direito; e que, ao contrário, os índios das Missões, seguramente inspirados pelos Padres seus superiores, procuraram impedir, pelos meios mais violentos, a expansão e as fainas dos portugueses fora do âmbito da Praça. (CORTESÃO) (Continua...)
Bibliografia:
CORTESÃO, Jaime. Alexandre de Gusmão e o Tratado de Madrid ‒ Brasil ‒ Rio de Janeiro, RJ ‒ Ministério das Relações Exteriores ‒ Instituto Rio Branco ‒ Departamento de Imprensa Nacional, 1956.
(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;
Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);
Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
E-mail: hiramrsilva@gmail.com.
[1] Bolas: boleadeiras. (Hiram Reis)
[2] Estalou: eclodiu. (Hiram Reis)
[3] À porfia: persistentemente. (Hiram Reis)
[4] PORTO, Aurélio. Missões Orientais do Uruguai – Brasil – Rio de Janeiro – Imprensa Nacional, 1943, páginas 2 a 8. (CORTESÃO)
[5] ACEVEDO, Pedro Blanco. El Gobierno Colonial en el Uruguay y los Orígenes de la nacionalidad – Uruguay – Montevideo, 1936, páginas 60 e 61. (CORTESÃO)
[6] Indústria da ganadaria: pecuária. (Hiram Reis)
[7] Dissertation qui determine tant geografiquement que par les Traités faits entre la courone de Portugal et celle d'Espagne quels sont les limites de leurs dominations en Amerique c’est à dire du coté de la Rivière de la Plata ‒ Dissertação redigida em francês por Alexandre de Gusmão, em setembro de 1736, sobre o problema da soberania portuguesa na margem Setentrional do estuário platino. (CORTESÂO)
[8] Vaquear: vaquejar ‒ buscar bovinos. (Hiram Reis)
[9] Volvidos: passados. (Hiram Reis)
[10] Requere: exige. (Hiram Reis)
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