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Gente de Opinião

Hiram Reis e Silva

Terceira Margem – Parte DCLXXIX - A Magia do Camaquã


Ninho de João Grande - Gente de Opinião
Ninho de João Grande

Bagé, 22.12.2023

 

Poema da Água

(Raul Machado)

A água também nasce pequenina

‒ nasce gota de orvalho ou de neblina...

A água também tem a sua infância

‒ quando apenas Riacho cantarola

Brinca de roda nos redemoinhos

Salta os seixos que encontra

E faz apostas de corrida ‒ travessa ‒

Por entre as grotas e peraus ([1])

E arranca as flores que a marginam

Para engrinaldar a cabeleira solta

Sobre o leito revolto das areias... [...]

Granja do Valente

O Amigo Pedro Auso Cardoso da Rosa estava programando uma descida pelas águas do Rio Camaquã, com direito a acampamento e tudo mais, infelizmente contratempos de toda ordem forçaram-me a adiar o evento. Vim para Bagé com o propósito de dar continuidade ao meu treinamento na Granja do Valente, de propriedade da Família Schiefelbein, mas com a firme determinação de conhecer o Rio Camaquã. Na barragem, o ninhal de maguaris, cheio de vida em setembro, estava abandonado, apenas vestígios de cascas de ovos sinalizavam sua eclosão e a passagem das majestosas aves pela área.

Soneto

(Augusto dos Anjos)

Agregado infeliz de sangue e cal,

Fruto rubro de carne agonizante,

Filho da grande força fecundante

De minha brônzea trama neuronial.

Que poder embriológico fatal

Destruiu, com a sinergia de um gigante,

Em tua morfogênese de infante

A minha morfogênese ancestral?!

Porção de minha plásmica substância,

Em que lugar irás passar a infância,

Tragicamente anônimo, a feder?!...

Ah! Possas tu dormir, feto esquecido,

Panteísticamente dissolvido

Na noumenalidade do NÃO SER!

Agora em novembro (2011), apenas o grande ninho do João Grande continuava ocupado como se a plácida ave ainda estivesse chocando. Cuidadosamente consegui me aproximar e fotografar o único ovo que restara dos quatro que examinara em setembro (Imagem 01 – Ninho de João Grande – Granja do Valente – Bagé, RS). Peguei o ovo, curioso, pois o período de eclosão desde há muito se esgotara. Confirmando as expectativas, verifiquei que o mesmo estava gorado e o retirei do ninho.

Nos dias seguintes, verifiquei que a zelosa mamãe não estava mais aferrada ao ninho, liberada que fora do compromisso de chocar a calcária câmara mortuária. Se a pobre ave soubesse o que estava cho­cando, talvez fosse capaz de entender a desconsolada e trágica essência da sobredita poesia de Augusto dos Anjos dedicada ao seu primogênito natimorto com menos de 7 meses no dia 02.02.1911.

A barragem continuava me surpreendendo, um casal de marrecas pés-vermelhos apresentava um comportamento estranho como se estivessem com dificuldades para voar, aproximando-se bastante do caiaque sem qualquer receio.

Depois de algum tempo, verifiquei a razão do curioso comportamento, os pais tentavam desviar mi­nha atenção de três marrequinhas que, no sentido oposto, mergulhavam procurando esconder-se de mi­nhas vistas.

Uma delas, mais próxima da margem, mergu­lhava comicamente apenas a cabeça deixando a cauda de fora, aproximei-me mais um pouco para fotografá-la, e a pequenina mergulhou, desta vez, completa­mente, emaranhando-se nas finas algas.

Agarrei-a, desembaracei-a da fluída e verdolen­ga armadilha e, ao soltá-la, ela nadou rapidamente, chegando mesmo a correr sobre as águas, na direção dos pais que grasnavam freneticamente.

Rio Camaquã

A Rosângela me apresentou o Dr. Diogo Madru­ga Duarte, um vaqueano preservacionista e irmão das águas. O Dr. Madruga coordena periódicas descidas no Rio Camaquã e me repassou algumas importantes dicas a respeito do trajeto que eu planejara para o sábado, sugerindo que eu partisse do Passo dos Enforcados (30°52’54,4” S / 53°35’53,3” O) e não da Ponte sobre o Rio Camaquã cujo acesso ao Rio era impraticável. Eu pretendia ir até o Passo do Cação (30°57’30,4” S / 53°28’56,6” O) onde a Rosângela me aguardaria para pernoitarmos na Fazenda Remanso da amiga Rosi.

Um deslocamento de 39,5 quilômetros que, graças à velocidade da correnteza do Rio poderia ser vencido, folgadamente, em seis horas de navegação. Parti do Passo dos Enforcados às 08h30 de sábado (05.11.2011). O estreito canal fluía espremido por grandes paredões de arenito debruçados majestosa­mente sobre o Rio e que vez por outra se apresen­tavam somente em uma das margens.

O arenito é o resultado da petrificação de partículas de areia que, misturadas com minerais agregadores, como o quartzo e a calcita, foram submetidas a grande pressão, durante séculos. Imerso nas telúricas entranhas, eu podia admirar as belas estratificações formadas pela alternância de camadas sedimentares de granulação e cores distintas.

As belas camadas de seixos de tamanhos diver­sos permitiam que eu comparasse os aspectos geológicos do erodido terreno atual com os do longín­quo pretérito.

No leito, a ação das águas diluía a obra multimilenária dos tempos, separando novamente as antigas partículas cimentadas em longínquas eras, permitindo que minha imaginação vagasse pelo formoso túnel do tempo camaquense. As camadas sedimentares, qual páginas amareladas do livro da mãe Gea, descreviam uma história de transformações mescladas de cataclismos radicais e pachorrentas acomodações ancestrais.

As belas formações moldadas pelas forças da natureza através dos tempos me encantavam e eu me sentia imensamente feliz em poder contemplar estas verdadeiras esculturas moldadas pelas mãos do Grande Arquiteto do Universo.

A diversidade de imagens, as nítidas colorações das camadas sedimentares, os seixos incrustados no arenito, o canto das aves, produziam um efeito transcendental em todo o meu ser, eu empreendera, definitivamente, uma mágica cruzada.

Logo que iniciei minha jornada, dois biguás me serviram de precursores. Assustados com a proxi­midade do caiaque, voavam até a próxima curva do serpenteante manancial e esperavam que eu me aproximasse para repetir o gesto novamente.

Fui encontrando outros grupos pelo caminho e, quando cheguei a meu destino, eram nove as aves que me antecediam.

Cruzei, no trajeto, por cinco veados-campeiros (Ozotocerus bezoarticus bezoarticus) que bebiam placidamente as águas do Camaquã e se afastaram vagarosamente ao notar minha presença. Dois grupos de capivaras não foram tão discretos assim, atirando-se ruidosamente nas águas.

Em um dos grupos, pude perceber a presença de um grande macho; além do tamanho, sua identificação é facilitada pela enorme glândula que possui entre o focinho e a testa. O cheiro forte e característico que dela emana serve para identificar as fêmeas conquis­tadas, seus filhotes e demarcar território.

A curta jornada fluvial foi uma das mais belas que empreendi até hoje e agradeço a todos que a tornaram possível e, em especial, minha cara companheira Rosângela Schardosim.

O Novo Argonauta ‒ Progênie de Heróis

(José Agostinho de Macedo)

[...] Parabéns, Portugal, que entre teus filhos

Nunca a progênie dos Heróis se acaba:

Os mesmos ainda são, que outrora as Quinas ([2])

Foram erguer no Indo ([3]), erguer no Ganges.

Os mesmos ainda são, que o Mar e o vento,

As tempestades, os tufões venceram:

Que, não cabendo nos confins do Tejo,

Ilustres Cidadãos do Mundo, foram

Seu Reino dilatar até donde surge

Do berço apavonado a roxa Aurora.

Os mesmos ainda são, que as mais remotas

Nações, com laço estreito, unir souberam.

A quem não pode obstar do turvo Oceano

A medonha extensão e o cego abismo;

Que em Lenho nadador dobrar souberam

A insuperável meta, em que se opunha

À força dos mortais a Natureza.

Sagres, tu viste o vencedor primeiro

Do hórrido Bojador deixar teu porto,

Ir em frágil Batel ([4]) vencer-lhe a fúria.

Argonauta Gil Eanes, se teu berço

Fora a grande Albion ([5]), que Estátua e Busto

As mais soberbas praças lhe adornaram!

A Holanda a levantou ao que primeiro

Foi pescador do pequenino Arenque. [...]


 

(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;

 

Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)

Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);

Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);

Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);

Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)

Ex-Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);

Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);

Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);

Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)

Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);

Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)

Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).

Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).

E-mail: hiramrsilva@gmail.com.



[1]    Peraus: precipícios. (Hiram Reis)

[2]    Quinas: cada um dos cincos escudos do brasão português. (Hiram Reis)

[3]    Indo: Índia. (Hiram Reis)

[4]    Batel: barco. (Hiram Reis)

[5]    Albion: Grã-Bretanha. (Hiram Reis)

Galeria de Imagens

  • Rio Camaquã, Bagé, RS
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