Terça-feira, 26 de dezembro de 2023 - 06h05
Bagé, 22.12.2023
Poema da Água
(Raul Machado)
A água também nasce
pequenina
‒
nasce gota de orvalho ou de neblina...
A água também tem a sua
infância
‒ quando apenas Riacho cantarola
Brinca de roda nos
redemoinhos
Salta os seixos que encontra
E faz apostas de corrida ‒
travessa ‒
Por entre as grotas e peraus
([1])
E arranca as flores que a
marginam
Para engrinaldar a cabeleira
solta
Sobre
o leito revolto das areias... [...]
Granja do Valente
O Amigo Pedro Auso Cardoso
da Rosa estava programando uma descida pelas águas do Rio Camaquã, com direito
a acampamento e tudo mais, infelizmente contratempos de toda ordem forçaram-me
a adiar o evento. Vim para Bagé com o propósito de dar continuidade ao meu
treinamento na Granja do Valente, de propriedade da Família Schiefelbein, mas
com a firme determinação de conhecer o Rio Camaquã. Na barragem, o ninhal de
maguaris, cheio de vida em setembro, estava abandonado, apenas vestígios de cascas
de ovos sinalizavam sua eclosão e a passagem das majestosas aves pela área.
(Augusto dos Anjos)
Agregado infeliz de sangue e cal,
Fruto rubro de carne agonizante,
Filho da grande força fecundante
De
minha brônzea trama neuronial.
Que poder embriológico fatal
Destruiu, com a sinergia de um gigante,
Em tua morfogênese de infante
A
minha morfogênese ancestral?!
Porção de minha plásmica substância,
Em que lugar irás passar a infância,
Tragicamente
anônimo, a feder?!...
Ah! Possas tu dormir, feto esquecido,
Panteísticamente dissolvido
Na
noumenalidade do NÃO SER!
Agora em novembro (2011), apenas o
grande ninho do João Grande continuava ocupado como se a plácida ave ainda
estivesse chocando. Cuidadosamente consegui me aproximar e fotografar o único
ovo que restara dos quatro que examinara em setembro (Imagem 01 – Ninho de João
Grande – Granja do Valente – Bagé, RS). Peguei o ovo, curioso, pois o período
de eclosão desde há muito se esgotara. Confirmando as expectativas, verifiquei
que o mesmo estava gorado e o retirei do ninho.
Nos dias seguintes, verifiquei que a
zelosa mamãe não estava mais aferrada ao ninho, liberada que fora do
compromisso de chocar a calcária câmara
mortuária. Se a pobre ave soubesse o que estava chocando, talvez fosse
capaz de entender a desconsolada e trágica essência da sobredita poesia de
Augusto dos Anjos dedicada ao seu primogênito natimorto com menos de 7 meses no
dia 02.02.1911.
A barragem continuava me
surpreendendo, um casal de marrecas pés-vermelhos apresentava um comportamento
estranho como se estivessem com dificuldades para voar, aproximando-se bastante
do caiaque sem qualquer receio.
Depois de algum tempo, verifiquei a
razão do curioso comportamento, os pais tentavam desviar minha atenção de três
marrequinhas que, no sentido oposto, mergulhavam procurando esconder-se de minhas
vistas.
Uma delas, mais próxima da margem,
mergulhava comicamente apenas a cabeça deixando a cauda de fora, aproximei-me
mais um pouco para fotografá-la, e a pequenina mergulhou, desta vez, completamente,
emaranhando-se nas finas algas.
Agarrei-a, desembaracei-a da fluída
e verdolenga armadilha e, ao soltá-la, ela nadou rapidamente, chegando mesmo a
correr sobre as águas, na direção dos pais que grasnavam freneticamente.
Rio Camaquã
A Rosângela me apresentou o Dr.
Diogo Madruga Duarte, um vaqueano preservacionista e irmão das águas. O Dr.
Madruga coordena periódicas descidas no Rio Camaquã e me repassou algumas
importantes dicas a respeito do trajeto que eu planejara para o sábado,
sugerindo que eu partisse do Passo dos Enforcados (30°52’54,4” S / 53°35’53,3”
O) e não da Ponte sobre o Rio Camaquã cujo acesso ao Rio era impraticável. Eu
pretendia ir até o Passo do Cação (30°57’30,4” S / 53°28’56,6” O) onde a Rosângela
me aguardaria para pernoitarmos na Fazenda Remanso da amiga Rosi.
Um deslocamento
de 39,5 quilômetros que, graças à velocidade da correnteza do Rio poderia ser
vencido, folgadamente, em seis horas de navegação. Parti do Passo dos
Enforcados às 08h30 de sábado (05.11.2011). O estreito canal fluía espremido
por grandes paredões de arenito debruçados majestosamente sobre o Rio e que
vez por outra se apresentavam somente em uma das margens.
O arenito é o
resultado da petrificação de partículas de areia que, misturadas com minerais
agregadores, como o quartzo e a calcita, foram submetidas a grande pressão,
durante séculos. Imerso nas telúricas entranhas, eu podia admirar as belas
estratificações formadas pela alternância de camadas sedimentares de granulação
e cores distintas.
As belas
camadas de seixos de tamanhos diversos permitiam que eu comparasse os aspectos
geológicos do erodido terreno atual com os do longínquo pretérito.
No leito, a
ação das águas diluía a obra multimilenária dos tempos, separando novamente as
antigas partículas cimentadas em longínquas eras, permitindo que minha
imaginação vagasse pelo formoso túnel do tempo camaquense. As camadas
sedimentares, qual páginas amareladas do livro da mãe Gea, descreviam uma
história de transformações mescladas de cataclismos radicais e pachorrentas
acomodações ancestrais.
As belas formações moldadas pelas
forças da natureza através dos tempos me encantavam e eu me sentia imensamente
feliz em poder contemplar estas verdadeiras esculturas moldadas pelas mãos do
Grande Arquiteto do Universo.
A diversidade de imagens, as nítidas
colorações das camadas sedimentares, os seixos incrustados no arenito, o canto
das aves, produziam um efeito transcendental em todo o meu ser, eu empreendera,
definitivamente, uma mágica cruzada.
Logo que iniciei minha jornada, dois
biguás me serviram de precursores. Assustados com a proximidade do caiaque,
voavam até a próxima curva do serpenteante manancial e esperavam que eu me
aproximasse para repetir o gesto novamente.
Fui encontrando outros grupos pelo
caminho e, quando cheguei a meu destino, eram nove as aves que me antecediam.
Cruzei, no trajeto, por cinco
veados-campeiros (Ozotocerus bezoarticus bezoarticus) que bebiam placidamente
as águas do Camaquã e se afastaram vagarosamente ao notar minha presença. Dois
grupos de capivaras não foram tão discretos assim, atirando-se ruidosamente nas
águas.
Em um dos grupos, pude perceber a
presença de um grande macho; além do tamanho, sua identificação é facilitada
pela enorme glândula que possui entre o focinho e a testa. O cheiro forte e
característico que dela emana serve para identificar as fêmeas conquistadas,
seus filhotes e demarcar território.
A curta jornada
fluvial foi uma das mais belas que empreendi até hoje e agradeço a todos que a
tornaram possível e, em especial, minha cara companheira Rosângela Schardosim.
O Novo Argonauta ‒ Progênie de Heróis
(José Agostinho de Macedo)
[...] Parabéns, Portugal, que entre teus filhos
Nunca a progênie dos Heróis se acaba:
Os mesmos ainda são, que outrora as Quinas ([2])
Foram erguer no Indo ([3]),
erguer no Ganges.
Os mesmos ainda são, que o Mar e o vento,
As tempestades, os tufões venceram:
Que, não cabendo nos confins do Tejo,
Ilustres Cidadãos do Mundo, foram
Seu Reino dilatar até donde surge
Do berço apavonado a roxa Aurora.
Os mesmos ainda são, que as mais remotas
Nações, com laço estreito, unir souberam.
A quem não pode obstar do turvo Oceano
A medonha extensão e o cego abismo;
Que em Lenho nadador dobrar souberam
A insuperável meta, em que se opunha
À força dos mortais a Natureza.
Sagres, tu viste o vencedor primeiro
Do hórrido Bojador deixar teu porto,
Ir em frágil Batel ([4])
vencer-lhe a fúria.
Argonauta Gil Eanes, se teu berço
Fora a grande Albion ([5]),
que Estátua e Busto
As mais soberbas praças lhe adornaram!
A Holanda a levantou ao que primeiro
Foi pescador do pequenino Arenque. [...]
(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de
Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor
e Colunista;
Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do
Sul (1989)
Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre
(CMPA);
Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura
do Exército (DECEx);
Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério
Militar – RS (IDMM – RS);
Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando
Militar do Sul (CMS)
Ex-Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia
Brasileira (SAMBRAS);
Membro da Academia de História Militar Terrestre do
Brasil – RS (AHIMTB – RS);
Membro do Instituto de História e Tradições do Rio
Grande do Sul (IHTRGS – RS);
Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia
(ACLER – RO)
Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio
Grande do Sul (AMLERS)
Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da
Escola Superior de Guerra (ADESG).
Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
E-mail: hiramrsilva@gmail.com.
Galeria de Imagens
* O conteúdo opinativo acima é de inteira responsabilidade do colaborador e titular desta coluna. O Portal Gente de Opinião não tem responsabilidade legal pela "OPINIÃO", que é exclusiva do autor.Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – X
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