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Gente de Opinião

Hiram Reis e Silva

Terceira Margem – Parte DCLXXXVI - Helmo de Freitas – Parte I


Helmo de Freitas - Gente de Opinião
Helmo de Freitas

Bagé, 08.01.2024

 

Motivo

(Cecília Meireles)

Eu canto porque o instante existe

E a minha vida está completa.

Não sou alegre nem sou triste:

Sou poeta.

Irmão das coisas fugidias,

Não sinto gozo nem tormento.

Atravesso noites e dias

No vento.

Se desmorono ou se edifico,

Se permaneço ou me desfaço,

– Não sei, não sei. Não sei se fico

Ou passo

Sei que canto. E a canção é tudo.

Tem sangue eterno a asa ritmada.

E um dia sei que estarei mudo:

– Mais nada.

Na Semana Santa de 2019, fui acolhido, na en­cantadora Arambaré, capital das figueiras, margem Ocidental da Laguna dos Patos, pelos caros “Amigos de Outras Eras” Leandro Hugo Schmegel e o Prefeito Alaor Pastoriza Ribeiro.

Depois de quase oito meses, consegui retomar meus treinamentos náuticos, e, nessa ocasião, tive a feliz oportunidade de conhecer o compositor, cantor e historiador Helmo de Freitas, grande parceiro de palco do meu amigo Leandro Hugo.

Considero Helmo de Freitas e Adair de Freitas os dois mais lídimos representantes de nossas tradições nativistas. Infelizmente a mídia gaúcha e os juízes dos festivais regionais totalmente apartados do gosto popu­lar não lhes dão o devido reconhecimento. Minha visita ao Helmo foi carregada de muita emoção. Ele reportou-nos suas origens e experiências de vida, materializadas pelos inúmeros troféus, recortes de jornais e revistas. Disse a ele que queria reportar suas origens e ele solici­tamente me apresentou um rascunho que reproduzo a seguir:


Terceira Margem – Parte DCLXXXVI - Helmo de Freitas – Parte I - Gente de Opinião

Projeto Helmo de Freitas – “O Carijó” ‒ Resgatando a Cultura da Região Sul (UCPel)

Quero ser sincero para com as pessoas que acre­ditaram em mim e na arte que desenvolvo. Meu canto é simples e o meu verso também, mas confesso que não fiquei surpreso com o convite deste educandário para que fizesse parte de um projeto tão importante.

Sei que posso colaborar com a literatura regional, nacional ou talvez de muitas partes da Terra porque trago em minhas entranhas sentimentos, desejos e costumes de povos de grandes virtudes. E com essa riqueza junto ao dom é que o extinto Deus me tornou nobre. Não quero que pensem que o homem que sou foi outro algum dia, não mudei pensamentos diante da verdade, do amor, da paz e da felicidade.

Nasci e vivi por muitos anos no interior em uma pe­quena Chácara junto ao meu pai e minha mãe, irmãos e irmãs. Os quartos, a cozinha, a varanda, o galpão, cocheiras, chiqueiros de porcos e de ternei­ros, o galinheiro, patente ou latrina, mangueira, po­treiro, sanga e quarador foram os cantos e recantos mais belos do mundo para mim.

Hoje olho para o meu filho, já adulto, e para o seu retrato com toga sem precisar partir os lápis, borrachas e dividir cadernos, ler e escrever sob luzes de lampiões à querosene, “velas chico-roque”. Não perdeu no miringote para arregonhar gravetos e lenhas nos dias frios dos invernos. Não foi daqueles mandinhos ([1]) que se criou na campanha, mas anda no meu costado, vestido com as minhas roupas. E assim como ele, para outros jovens com acesso à tecnologia moderna, o mundo ficou pequeno, mas o saber faz os homens crescerem, e isso me deixa à vontade porque serei compreendido. Posso contar o que ainda não contaram.

Sentei por pouco tempo em carteiras escolares, mas aprendi com os práticos e vaqueanos a lidar com terra e gado. Meu pai era um desses buenos, homem de toda a ponta, pau pra toda a obra, peão campei­ro, tropeiro, colono, lavrador, carreteiro, arigó, chiri­pa, capataz, e patrão. Deixou muitos legados para a família e amigos.

Viveu revoluções, neto e bisneto de revolucionários de 23 e 35. Não gostava de falar sobre isso. Filho de mãe espanhola e italiana e de pai Charrua e portu­guês. Assinava-se com sobrenome da mãe, talvez por ser neto de mulato, não usava o sobrenome do pai.

Minha mãe, filha de uma Guarani e pai afrodescen­dente [negro]. E eu me rebusco destas etnias para mensagens dos meus versos. Toquei em baile de ne­gros, mestiços, carapinha, pixaim ou mascureba de cabelos engruvinhados. Negro aço, sarará, albino, oreba e cafuso, e não quero aqui puxar brasa para o meu assado, mas eram exímios bailarinos que se ex­pressavam através das danças com uma arte peculiar.

Nestes bailes de ramada e chão batido, animados com gaita, violão e pandeiro, intercalavam tambores, par de colheres, batiam na palma das mãos, canta­vam e se requebravam. Aprendiam a executar quais­quer instrumentos com facilidade.

Alguns eram chamados de vagabundos, preguiçosos, desocupados, talvez por virem de origem de pessoas simples. Eram alegres e divertidos e como também eram suas participações nos coretos de salões de bailes e festas. Até mesmo em recintos em que existiam diferenças raciais eram virtuosos por natureza.

Mulheres trabalhadoras, curandeiras, rezadeiras apesar dos ressentimentos e sentimentos conserva­vam o amor e a fé.

Para que os leitores possam apreciar um pouco destas riquezas busquei nas orações da Senhora Juliana Gonçalves Padilha, a Sinhá Juliana, a qual emprestou seu nome para um dos bairros mais bonitos da cidade de Camaquã:

Canto de um Terço: Virgem Senhora

Ó virgem senhora, mãe da piedade

Livrai-nos das penas e das enfermidades

Por aquele senhor, que vos traz nos braços

 

Ó Virgem Maria dirija meus passos

Dirija meus passos e pensamentos

Mas que não se transforme em sofrimento.

 

Abris a porta que vem Jesus

Morto, cansado com o peso da cruz

Meu “Deus” de minh’alma sem culpa nenhuma

 

Vai meu “Deus” com Jesus

E conosco também

Para a eterna glória para sempre. Amém.

 

E junto a essas relíquias que recolhemos dos meios populares encontramos os versos da preta velha, outra beleza da cultura negra.

Conheci a preta velha

Mãe velha era arrastada

No cepo à sombra do rancho

A preta velha sentada Estória de “três-ontonte”

Pra riso da gurizada.

 

A negra por vez chorava

Cantava, ria e dançava

Nem mesmo a própria idade

A preta velha lembrava

Foi escrava, ama de leite

Foi mucama, foi parteira

O sangue “igualzito” ao meu

Cor da flor da corticeira.

Estes cantos, chá de ervas, ritos e benzeduras com crença e fé ainda fazem curas, nos trazem alentos e reflexões. Os homens afrodescendentes não se dedi­cavam às religiões cristãs tanto quanto as mulheres. Muitos deles eram descrentes. Afetuosos sim às coi­sas da natureza: pedras, matas, águas, animais e nas crenças de suas origens. Talvez por isso se adaptavam e sobreviviam em qualquer lugar.

Passei lindos anos da minha infância vendo e ouvin­do algumas destas pessoas. Lembro-me de um alam­brador, tocador de violão com “craveja” e cantador, morador ao lado da taipa de um açude em dois ran­chos de leiva e capim. Um rancho bem grande e ou­tro de bom tamanho e aos fins de semana a sua voz montava nas maretas da águas do açude e rebanha­va famílias e pessoas de suas amizades para se di­vertirem no rancho grande com “embalizado” de chão batido. “Mucufa”, moço muito gaúcho e “nariz de folha” não entravam. Era uma diversão de respei­to, por ser ele respeitado e corajoso, não precisava mestre-sala.

Participou meio que obrigado destas “escaramuças” sobre sangues nas várzeas e coxilhas desta região, gostava de contar suas proezas e estórias, princi­palmente para a “mandinzada” ([2]).

Enquanto furava piques com arcos de pua e fazia amostras com facão e machado em moirões e paus-mestres, falava de mula sem cabeça, lobisomem, boitatá, bruxas e assombros em burras ([3]). Ensinava aos mais taludos espichar guias, torcer rabicho em mestre e grampear, e os mandins sentados nos garrões com as mãos nos joelhos ou na cara, obser­vavam e riam. Ele era o tio que todas as crianças queriam ter.

Passamos alguns anos sem nos ver, e eu tinha saudade do meu tio amigo, e para minha felicidade voltei a conviver com ele e sua família por mais um “eito” de anos. Eu moço maduro, ele alcançado na idade, mas o mesmo “buenachão” que conheci quando mandim.

E ali estava eu diante de uma das minhas fontes para beber mais um pouco de sabedoria e cultura. Uma das legendas vivas da região. Crioulo das bandas de Pelotas, que veio “frangote” para o Bonserá, 5° Distrito de Canguçu, hoje Município de Cristal.

Dali saiu perseguido pela farda depois de uma “rusna” feia em uma cancha de carreia, onde tombou seu irmão mais velho. Veio escondido entre bacarás e trouxas em um caminhão de “turmeiros” e amoitou-se nas ilhas do Camaquã, onde construiu sua riqueza que era a família, amigos e a paz.

Eis aqui versos que aprendi com ele recolhido em suas andanças.

Bonserá é terra boa

Foi aonde eu me criei

Não foi por falta de amor

Que de lá me retirei.

E muitas cantigas e versos, que retratavam momentos tristes e bons em sua vida, como a “Batalha de Bagé”, “Xote do Limoeiro” e outras letras e canções. Perguntei a ele se os negros e mestiços eram mesmo valentes como diziam e escreviam nos livros da nossa estória. Atirou o pescoço para trás e deu-lhe uma “gaitada”, não sei disse ele, mas nos botavam sempre na frente, e cantou os versos do Chico Pansa.

Avança Chico Pança... avança

E lá se foi o comandado num matungo velho cansado

Com uma lança de pau

E o General ria e dizia “Ôiga-lhe-te” negro mau

Quando chegou do outro lado, com os braços levantados

Se atirou no costado

De um filho ali entrincheirado.

E depois destes versos, umas lágrimas espalharam-se sobre as rugas e as barbas brancas do seu rosto.

 

(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;

 

Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)

Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);

Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);

Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);

Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)

Ex-Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);

Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);

Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);

Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)

Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);

Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)

Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).

Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).

E-mail: hiramrsilva@gmail.com.



[1]    Mandinhos meninotes, gurizotes. (Hiram Reis)

[2]    Mandinzada: gurizada, meninada. (Hiram Reis)

[3]    Burras: os antigos afirmam que os jesuítas enterraram as “burras de ouro” na região de Camaquã e Tapes, nas margens da Laguna dos Patos, quando abandonaram as Missões. (Hiram Reis)

Galeria de Imagens

  • Arambaré, Capital das Figueiras, RS
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