Sábado, 1 de julho de 2023 - 07h00
Bagé, 30.06.2023
Valquírias
Americanas
Antônia (Jovita) Alves Feitosa – Parte VI
Semanário Maranhense n° 23
São Luís, MA –
Domingo, 02.02.1868
Jovita
(Continuação do n° 21, Páginas 03 a 05)
III
Jovita, remetendo seu filho a Alfredo d’Almada, conduzira
tudo quanto possuía, e guiando sua mãe, no estado em que estava, fugiu do lugar
sem que se soubesse para onde! Andara toda noite e no dia seguinte quando ela e
sua mãe chegaram a um povoado aí descansaram alguns dias para seguirem só, no
caminho da vida berrante!
Nesse lugar a mãe de Jovita fora
atacada de febres que aumentaram de dia para dia em sua intensidade, levando-a
a sepultura. Jovita ficara isolada no mundo. No enterro de sua mãe ouviu falar
em voluntários que iam bater os inimigos da Pátria.
Os paraguaios invadiam o
território do Brazil e barbaramente assassinavam as famílias que encontravam,
provocando o povo à vingança justa, e a punição merecida.
O espírito de Jovita, abalado
pelas diversas desgraças, que na mocidade surgiram-lhe, inclinou-se para a
Pátria, e seu coração, como que despertando no meio de seu peito gelado,
erguia-se alteroso pulsando animado pela Pátria ultrajada, que invocava de seus
filhos à mais santa das vinganças.
Como se o dedo de Deus a
tivesse indigitado, a mulher fez-se heroína; despiu os hábitos do seu sexo, e
envergou as roupas de soldado, que deviam levá-la à glória ou à morte.
Foi assim que Jovita
apresentou-se ao governo, disfarçada, com arte, em “Voluntário da Pátria”.
Com os cabelos cortados, e não
tendo as orelhas furadas, comprimindo os seios e disfarçando as formas de
mulher, soube iludir os recrutadores, e marcharia como homem, se, no mercado,
as mulheres curiosas, não desconfiassem que, os contornos do voluntário eram
arredondados e cheios como não são os dos homens, e esta suspeita cresceu,
tomou vulto e chegou ao Palácio.
Ali a verdade foi patente, mas a mulher já era “Voluntária da Pátria”! Tendo sido Jovita
alistada no Corpo de Voluntários, o Presidente, que acabou por aceder aos rogos
da mulher-soldado, deixou-a seguir como ela ambicionava.
Jovita andava de calças brancas, botinas de couro preto,
saiote de lã escarlate com corpete de pano azul, finalizando com gravata de
polimento. Um talim sustentando uma espada e a patrona ([1]),
com destino aos cartuxos, era o correame que lhe apertava a cintura e
completava o uniforme.
Com este fardamento misto, marchou a nova Joanna d’Arc,
sendo no Maranhão muito festejada, em sua passagem para o Rio de Janeiro.
Jovita recebera aplausos e mimos, e à tudo ela mostrava-se indiferente, como
se maiores glórias a esperasse.
Em Pernambuco foi laureada, apresentada como heroína e assim
festejada chegou ao Rio de Janeiro, aonde a sua fama a havia precedido, para
preparar-lhe uma recepção condigna dela.
Jovita era disputada pelos fotógrafos, como um fruto de
perene riqueza, porque a sua celebridade garantia a pronta venda de retratos da
“Voluntaria da Pátria”, da heroína
brasileira. Por onde Jovita passava atraía a atenção pública. A tudo era ela
indiferente! De quando em vez, seus olhos lagrimavam de saudade do filho, que
enjeitara do seu coração de mãe!
A Junta Militar julgou Jovita
incapaz para o serviço da Guerra, mas no caso de prestar relevantes serviços
nos hospitais de sangue.
Jovita empenhou-se para marchar
e ir bater-se com os inimigos da Pátria, atestou robustez, agilidade no jogo
das armas e coragem no momento do perigo, porém não conseguia abrir exemplas de
mulheres tomarem parte nas lutas dos homens.
Desatendida
pelo Governo Imperial, a pobre mulher obteve a baixa, e reassumiram os vestidos
e as saias o lugar que as calças haviam usurpado por algum tempo.
O público de tudo informado mostrou-se pródigo com a
ex-Voluntária; benefícios nos teatros, grandes e valiosos mimos, enriqueceram a
pobre Jovita, que, reunindo algum pecúlio, regressou ao Piauí, para trazer ao
filho o fruto de sua gloriosa resolução.
A sorte de seu filho a incomodava, depois que vira Alfredo
d’Almada perdido para ela.
Jovita voltou ao Norte. No Piauí indagou pelo Sr. Roberto
d’Almada e foi ter com ele.
Sem ser conhecida pelo velho
foi ela recebida:
‒ O
Sr. Almada?
Disse Jovita.
‒ Sou
eu mesmo, senhora, o que determina de mim?
‒ Trago
notícias de seu filho.
‒ Veio
da corte?
‒ Vim
do Maranhão, mas cheguei ali a pouco tempo, de tornar viagem do Rio de Janeiro.
‒ Ah!
viu meu filho? Ele estava bom, não é verdade?
‒ Não
vi seu filho... Mas sou portadora de uma carta.
A carta era de um amigo de Roberto d’Almada, que trêmulo e
sôfrego leu o seguinte:
Amigo Almada. É com
pesar que lhe comunico um triste sucesso. Vítima de uma congestão pulmonar,
faleceu no hospital de Corrientes seu filho Alfredo que...
O velho deixou cair a carta e seus olhos eram duas torrentes
de lágrimas, enquanto Jovita, de pé, com os braços cruzados sobre o peito,
parecia a estátua do aniquilamento! O velho Almada caiu em sua poltrona e
Jovita o consolou com palavras misericordiosas e cheias de religião.
‒ Seu
filho morreu, mas legou-vos um filhinho não é assim?
‒ Sim,
ele já havia partido quando recebi uma criança, que, dizia-me sua mãe ser filho
de meu filho.
‒ E
aonde está essa criança?
O velho esgueirou-se e apontou
para o céu:
‒ Ali!
Jovita deu um grito agudo e doloroso e caiu de joelhos aos
pés do velho, que ela há pouco consolava.
‒ E
quem és tu que assim gemes, soluças e choras de joelhos a meus pés?
‒ Quem
sou eu? Já não vos disse esta dor que sofro? Sou...
‒ Acaba!
‒ Jovita?
‒ Jovita!
Repetiu o velho, caindo de novo
na poltrona, enquanto a desventurada mãe fugia como um raio, levando a dor e a
desesperação no coração.
IV
Já não era Jovita a “Voluntaria da Pátria”, a heroína
brasileira, que regressou do Piauí ao Maranhão e do Maranhão seguia com destino
à Corte do Império, não; era a mulher cansada de sofrer, já sem esperança, sem
alento, sem amor enfim!
Era a mulher entregue a vida
reprovada, descrendo de tudo e só tratando de disfarçar, por entre o rebuliço
do mundo, as mágoas que carpia no recanto de sua triste habitação!
Ela afagava nas delícias da
volúpia seus infortúnios do passado. Sem pai, mãe e filho e possuindo meios que
a beneficência da Corte lhe proporcionavam, facilmente encontrou amigas do que
era seu, que com ela gastavam largamente. O luxo fez, parte de sua vaidade
feminina, e os meios de o sustentar eram dispendiosos.
Jovita maquinalmente gastava o
que tinha! Seu coração não batia no peito, alterado pelo prazer de gozar
deliciosos momentos, invejados de suas companheiras de erro!
Fraca e tímida como mulher,
embora corajosa e audaz como “Voluntaria
da Pátria”, ela era como essas flores que vivem ao ardor do Sol, mas que no
fim da noite murcham e morrem.
Entrou Jovita na Corte mais
pobre do que havia saído, e abatida pela vida irregular que escolhera e
adotara. Na Corte, foi a Voluntária de outrora, morar em um prédio à rua das
Mangueiras, e sua casa enchia-se de admiradores e apaixonados.
Entre eles um inglês de nome
Guilherme Noot, engenheiro da Companhia “City
Improvements”, que morava com seus companheiros na casa da Praia do
Russell, maiores provas lhe dava de amor!
Os não equívocos sinais de amor britânico, que o filho de
Albion dava a ex-Voluntária, despertou no coração de Jovita esse sentimento
divino, que pela primeira vez ela experimentou no peito! Foi Noot quem soube
tocar na corda sensível daquela alma, incompreensível para as paixões amorosas,
que só para sofrer e chorar tinha sido formada!
O amor por Noot cresceu, no
coração de Jovita, e, como primeiro amor, ele era cheio de encantos, e de inexplicável
doçura!
A paixão acendida no peito da
mulher heroína, era ateada todos os dias com cartas amorosas, que Noot dirigia
à sua amada, ou com as expressões de ternura que em sua companhia
prodigalizava-lhe.
Guilherme Noot, se não amava a
Jovita, queria possuir a mulher célebre.
Os gozos de uma paixão não
sancionada pelas leis do himeneu, são a mais das vezes efêmeros, se não falsos.
Contudo, Jovita fruía as delícias do amor, que em seu coração germinara, e ela
erguera altares no peito para eterna devoção.
Sem importar-se do futuro,
esquecendo-se do passado, ela só curava do presente, risonho o feliz, que Deus
lhe estava concedendo...
Quem nasceu para a desgraça
debalde luta com o destino, para escapar ao rigor terrível de sua sorte! Jovita
nascera predestinada por Deus para o infortúnio!
Um belo dia, 06.10.1867, Jovita
recebeu de Noot, um bilhete em inglês, e não o sabendo traduzir, julgou ser
mais um, igual aos muitos, que dele sempre recebia, cheios de protestos de
amor, e dando-lhe esperanças de eterna felicidade.
‒ Ele
me há de traduzir o que escreveu.
Dizia Jovita a uma companheira,
que morava com ela, e esperou pelo amante sem que nesse dia ele aparecesse.
No dia seguinte Noot ainda faltara a ir à casa de Jovita, e
no dia 9, uma amiga da ex-Voluntária entrou-lhe em casa:
‒ Então, minha amiga, ele deixou-te?
‒ Ele!
Quem? disse Jovita espantada.
‒ O
Senhor Noot.
‒ Talvez.
Respondeu Jovita já incomodada.
‒ Mas
porque me dizes isto?
‒ Porque
ele seguiu para Inglaterra, no vapor que saiu anteontem.
‒ Não
é possível. Anteontem escreveu-me ele... aqui tens o seu bilhete. É verdade que
está escrito em inglês e eu não sei ler o inglês...
‒ Pois,
minha cara, o senhor Noot partiu no vapor “Oneida”, e este bilhete é o de sua
despedida.
Jovita estava alterada
bastante, e os sinais de sua dor estampavam-se-lhe nas faces.
‒ Talvez
não seja verdade.
Tornou a mensageira da má nova, vendo o estado aflitivo em
que Jovita se achava.
‒ Eu
saberei tudo, tudo...
Jovita mandou chamar um carro de aluguel, e vestida com todo
o esmero, meteu-se no carro e disse ao cocheiro:
‒ A
praia do Russell casa n° 43.
O carro
partiu, e parou à porta da casa indicada por Jovita.
V
Jovita entrou na casa que Noot habitara e encontrou a criada
dos companheiros de Guilherme:
‒ O
Sr. Noot?
Interrogou ela.
‒ O
Sr. Noot, respondeu a criada, partiu.
‒ Partiu!
Repetiu a infeliz Jovita.
‒ Findou
o seu contrato com a Companhia “City Improvements”, e ele seguiu no vapor “Oneida”
para Southampton.
‒ E
os seus amigos, aonde estão?
‒ Saíram.
‒ O
quarto de Noot está ocupado?
‒ Pode
entrar, deixou-o como estava.
Jovita entrou naquele quarto,
onde tantas vezes se julgou feliz. Tudo estava como no tempo de Noot, a cama
guarnecida com o mosquiteiro de cambraia cor de rosa, caído da cúpula que
estava suspensa no teto, a mesa de escrita no meio do quarto, e tudo ali deserto
e triste para ela! Jovita escreveu uma carta e tirou do bolso os bilhetes
amorosos de Noot, meteu tudo em um envelope, chamou a criada e disse:
‒ Esta
carta farás seguir a seu destino. É para o Sr. Guilherme Noot, como o subscrito
indica, e que tu deves remeter para Inglaterra.
‒ Sim,
pode coutar que ela será enviada pelo primeiro paquete.
A criada
saiu com a carta, e Jovita escreveu uma outra, guardou-a no bolso e depois
meteu-se na cama que foi do inglês... A criada quando voltou ao quarto reparou
nas cortinas do leito cerradas e foi a ele, abriu-as, vendo a amante de Noot
deitada tendo a mão direita sobre o peito esquerdo, ficou tremula.
‒ Grande
Deus!
Exclamou a criada indo buscar água de cheiro e aplicando-a
ao nariz da ex-Voluntária. Quis levantá-la e não podendo conseguir, correu a
pedir socorro que de pronto chegou.
A autoridade e o médico compareceram no lugar e encontraram
a infeliz heroína completamente morta. Jovita tinha enterrado no coração um
punhal da aço fino! Verificou-se que a lâmina, passando entre 4ª e 5ª costela,
ferira ligeiramente o pulmão, indo penetrar na cavidade esquerda do coração,
dando a morte desejada! No bolso de Jovita a autoridade achou a carta que ela
guardara e um retrato de Noot. A carta rezava assim:
Declaro
que ninguém me ofendeu, mato-me por motivos que só de mim e de Deus são
conhecidos. Jovita Feitosa.
A criada entregou a justiça a carta que Jovita lhe dera para
remeter a Guilherme Noot. Jovita restituía a Noot seus bilhetes amorosos, e em
sua carta desejava-lhe não interrompida série de venturas e felicidades,
enquanto que ela nada mais tinha a esperar na terra. A companheira da habitação
da infeliz Jovita depôs tudo quanto se passara em sua casa e declarou que a
suicida, antes do meter-se no carro, lhe dissera:
‒ Adeus
até mais nunca!
Por estas palavras irreligiosas
vê-se que Jovita descrera antes de matar-se até da Vida Eterna! Os sofrimentos
desvairaram aquela desgraçada, digna e merecedora de melhor sorte.
O que resta agora da Jovita infeliz? Da Voluntária admirada?
Da mulher amante? Nada!
Em modesta sepultura dorme
Jovita o sono dos justos; e quando, porventura eu visitar aquela moradia dos
mortos, e deparar com a fria lousa que encobre os gloriosos restos da heroína
brasileira, descoberto e respeitoso contemplarei o seu nome inscrito no mármore
mortuário, dirigindo a Deus uma fervida oração pela alma de Jovita.
Maranhão, 1868. Sanas da Costa. (SEMANÁRIO MARANHENSE N° 23)
Bibliografia
SEMANÁRIO
MARANHENSE N° 23. Jovita – III a V – Brasil – São Luís, MA – Semanário
Maranhense n° 23, 02.02.1868.
(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de
Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor
e Colunista;
Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do
Sul (1989)
Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre
(CMPA);
Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura
do Exército (DECEx);
Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério
Militar – RS (IDMM – RS);
Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando
Militar do Sul (CMS)
Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia
Brasileira (SAMBRAS);
Membro da Academia de História Militar Terrestre do
Brasil – RS (AHIMTB – RS);
Membro do Instituto de História e Tradições do Rio
Grande do Sul (IHTRGS – RS);
Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia
(ACLER – RO)
Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio
Grande do Sul (AMLERS)
Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da
Escola Superior de Guerra (ADESG).
Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
E-mail: hiramrsilva@gmail.com.
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – X
Bagé, 20.12.2024 Continuando engarupado na memória: Tribuna da Imprensa n° 3.184, Rio, RJSexta-feira, 25.10.1963 Sindicâncias do Sequestro dão e
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – VI
Silva, Bagé, 11.12.2024 Continuando engarupado na memória: Jornal do Brasil n° 224, Rio de Janeiro, RJ Quarta-feira, 25.09.1963 Lei das Selvas T
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – IV
Bagé, 06.12.2024 Continuando engarupado na memória: Jornal do Brasil n° 186, Rio de Janeiro, RJSábado, 10.08.1963 Lacerda diz na CPI que Pressõessã
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – III
Bagé, 02.12.2024 Continuando engarupado na memória: Jornal do Brasil n° 177, Rio de Janeiro, RJQuarta-feira, 31.07.1963 JB na Mira O jornalista H