Segunda-feira, 22 de janeiro de 2024 - 06h10
Bagé, 22.01.2024
Partida do Sangradouro (28.12.2014)
(Apolônio de Rodes)
A nau deslizou para dentro do Mar; eles, em seguida,
Puxando-a para trás, impediam-na de ir mais adiante.
Dispuseram os remos nas cavilhas pelos dois lados,
E colocaram o mastro, as velas bem trabalhadas e os víveres. [...]
Batiam com os remos na água do Mar impetuoso,
E ondas barulhentas se chocavam contra a nau.
A água negra do Mar corria espumante de um lado a outro,
Ribombando terrível sob o vigor destes homens muito fortes. [...]
Todos os deuses, naquele dia, olhavam do alto do céu
A nau e a raça de semideuses, os melhores que,
Naquele tempo, navegaram pelo Mar.
Nos cumes mais elevados, as Ninfas do Pélion contemplavam Estupefatas o
trabalho de Atena Itonida e os próprios heróis,
Que agitavam os remos com as mãos.
Veio do alto de uma montanha próxima ao Mar Quirão,
Filho de Filira; ele molhou os pés na arrebentação
Branca das ondas e, sacudindo muito sua mão poderosa,
Desejou um regresso feliz aos que partiam; [...]
Acordamos, eu e o Hélio, antes do alvorecer, desarmamos o
acampamento atormentados por um enxame frenético de carapanãs e fomos tomar o
café a bordo do Zilda III, onde encontramos o Brian pescando, e o Cel Pastl
ultimando os preparativos para o desjejum.
Depois da refeição matinal, embarcamos em nossos
inigualáveis caiaques oceânicos “Cabo
Horn”, da Opium FiberGlass, com a mesma inquebrantável determinação dos
Argonautas de outrora ‒ realizar a inédita Circunavegação da Lagoa Mirim de caiaque,
a maior Lagoa brasileira.
Inspirados pelos versos de Rodes, mas fiéis à nossa fé
monoteísta, tínhamos a certeza de estarmos sendo observados atentamente pelo
Grande Arquiteto do Universo e Senhor de Todos os Exércitos, o que nos
inspirava a prosseguir e a alcançar sucesso na nossa afanosa e arriscada
epopeia.
Afastamo-nos da costa com o intuito de deixar para trás os
incômodos e famintos insetos. O artifício funcionou e o Hélio, em tom de brincadeira,
afirmou que o nome de Sangradouro deve ter sido dado em virtude da voracidade
destes minúsculos e incômodos vampiros. Os ventos de proa, que nos fustigariam
durante toda a travessia, freavam nossa progressão, não permitindo que nossa
velocidade cruzeiro ultrapassasse os 6,5 km/h.
Depois de remar por mais de uma hora, aproximadamente uns
8 km, passamos pela Foz do Arroio das Palmas (ou Parapó ‒ 32°10’15,3” S /
52°43’32,1” O), que, mais à montante, a partir do Passo do Parapó, serve de
divisa entre os Municípios de Arroio Grande e Pedro Osório, avistamos o veleiro
saindo lentamente do Canal São Gonçalo.
Ultrapassamos a Ponta Luís dos Pobres, tangenciando os
sarandis (Sebastiana schottiana), que na fase adulta ultrapassam os 3 m de
altura, agora quase totalmente submersos. Sondando a profundidade no local,
verifiquei que ela ultrapassava os 2,5 m.
Nessa oportunidade avistamos, ao longe, um bom local de
parada 4,25 km ao Norte do Arroio Chasqueiro (32°16’05,3” S / 52°47’14,4” O)
onde aportamos, às 09h30, depois de remar por três horas e percorrer 20 km,
numa praia (32°13’47,6” S / 52°46’33,8” O), tomada pelas águas, frontal à uma
formidável mata nativa.
Repusemos as energias nos hidratando, comendo algumas
barras de cereais e aproveitamos a parada para fotografar a vegetação
eolicamente esculpida. Algumas figueiras tinham tombado sucumbindo à ação
solerte e contínua das águas e dos ventos, mas aferravam-se à vida moldando
seus troncos, galhos e raízes à nova realidade, emprestando à paisagem mais do
que um exemplo de determinação e vontade, mas de como se pode alterar o cenário
de um funesto cataclismo em um templo de determinação e esperança.
Além dos monumentos arbóreos, as enormes bromélias e
barbas de bode agitadas ao vento e outras tantas epífitas, empoleiradas nos
seus galhos, emprestavam-lhes um encanto especial. Descansados, navegamos 15
km, enfrentando ventos de proa de mais de 20 km/h, passamos pela Foz do Arroio
Canhada Grande (Foz 32°18’59,6” S / 52°48’29,7” O) e chegarmos à Foz do Arroio
Grande (32°20’43,3” S / 52°47’21,6” O), por volta das 12h00, onde nos
aguardavam os amigos velejadores para o almoço. Almoçamos e partimos depois de
combinarmos que eles pernoitariam na Foz do Arroio Bretanhas (32°29’21,6” S /
52°58’08,6” O), e nós no Farol da Ponta Alegre.
Fizemos a última parada do dia na Ponta Alegre, às 15h00,
onde encontramos vestígios de um acampamento de pescadores totalmente tomado
pelas águas.
Aportamos nas proximidades do Farol da Ponta Alegre às 16h15
depois de remar 48 km desde o Sangradouro. Como o Farol e as casas dos
faroleiros não permitiam que acantonássemos, resolvemos montar a barraca na
praia em um local protegido dos ventos por pequenas dunas.
Farol da P. Alegre (32°24’52,8”S/52°45’29,5”O)
O Farol, de torre quadrangular de alvenaria, antigamente
pintado de branco, com 16 metros de altura, e as duas casas dos faroleiros
ficavam localizados a aproximadamente um quilômetro a Sudoeste da Ponta Alegre
(32°24’53,6” S / 52°45’29,7” O).
O assoreamento provocado por uma centúria estendeu os
limites da Ponta Alegre e, em consequência, a distância do Farol quintuplicou;
diminuindo, também, a distância entre a Margem Oriental e a Ocidental da Lagoa.
O complexo foi inaugurado no dia 20.09.1908 e sua luz branca
era visível, com tempo claro, a 21 km de distância. Embora mal conservado e
apresentando alguns sinais visíveis de deterioração pela ação do tempo e do
vandalismo, sua robusta estrutura, com mais de cem anos, é um marco memorável ‒
um ciclope que assiste estático e impassível à marcha inexorável do deus
Chronos e de seus prosélitos. Sua magnífica escadaria helicoidal de ferro,
ainda que totalmente exposta à ação das intempéries, resiste estoicamente,
permitindo ao visitante chegar ao seu topo com toda a segurança.
Ângelo
Moniz da Silva Ferraz (Barão de Uruguaiana), Presidente da Província de São
Pedro do Rio Grande do Sul, encarregou, em 03.11.1857, Francisco José de Sousa
Soares de Andrea (Barão de Caçapava) de formalizar um parecer técnico a respeito
da localização dos faróis que deveriam ser edificados à margem da Lagoa Mirim
para tornar sua navegação segura.
O parecer
que recomendava a construção de dois faróis na Margem Ocidental ‒ um na Ponta
Alegre e outro na Ponta do Juncal e na Margem Oriental ‒ na Ponta de Santiago
foi aprovado.
O Governo Imperial, embora reconhecesse a necessidade dos mesmos, alegava problemas financeiros para a sua construção, que mais tarde foram agravados com a eclosão da Guerra do Paraguai.
F. Ponta Alegre ‒ Foz do Jaguarão (29.12.2014)
O Novo Argonauta ‒ Convulso Baixel
(José Agostinho de Macedo)
O convulso Baixel, de novo aos ares
As encruzadas ondas o vomitam:
Em hórrida peleja os Elementos
Em cada vaga a sepultura mostram. [...]
A terra não conhece, eis se lhe mostra
Boiando ao longe rápida canoa,
Que mal divisa o combalido Lenho,
Vem de voga arrancada ao frágil bordo. [...]
Tens descoberto a América buscada;
Demanda agora o suspirado porto,
Fim da fadiga tua, e teus desejos.
Eis nova Empresa e desusado arrojo,
Correr ao longo no pequeno Lenho
A vasta costa do Brasil inteiro! [...]
Seguimos nossa espartana rotina e fomos brindados, às 06h30, com uma fantástica aurora que uma persistente e densa névoa, que se estendia por todo o horizonte, teimava, sem sucesso, ocultar.
Avistamos ao longe o Zilda III, que pernoitara no Bretanhas, mais de 12 milhas além do Farol, pois os tripulantes iam subir o Rio Jaguarão até a cidade que lhe empresta o nome, onde o Coronel Pastl e seus netos tomariam um ônibus até Porto Alegre, de onde o Comandante retornaria, reembarcando no Zilda III em algum ponto da costa uruguaia.
Segundo a programação original, os velejadores, Comandantes Reynaldo di Benedetti e Norberto Weiberg, desceriam o Rio Jaguarão e nos encontrariam em um local a combinar para o pernoite de 29.12.2014. Fizemos uma breve parada em um dos canais de irrigação e, mais adiante, depois de remar 23 km, estacionamos, às 09h30, na Foz do Bretanhas atualmente rebaixado a um mero canal de irrigação. A ampla Foz do Bretanha contrasta com a paisagem ao redor sem qualquer atrativo especial.
Continuamos nossa viagem e, logo adiante, uma mata dos famigerados pinus (32°30’32,2” S / 52°59’13,9” O) se apresentou à SO do Bretanhas e, 6 km avante aportamos, às 11h10, para o almoço, na Foz do Arroio Arrombados (32°32’24,8” S / 52°59’57,9” O).
Consumi uma das rações doadas pelo Dr. Marc Meyers por ocasião de nossa jornada pelo Rio Roosevelt. As agitadas e exibidas gaivotas pareciam querer chamar a atenção sobre si mesmas e, além do alarido, das radicais piruetas aéreas, volta e meia brigavam por um pequeno lambari abocanhado por uma delas.
Um estático e imperturbável carcará (Caracara plancus) observava a movimentação das irrequietas aves, sob a sombra curiosa de um arbusto em forma guarda-sol, com uma serenidade de causar inveja ao mais fleumático lorde britânico.
Os troncos da pequena mata nativa arqueados na direção SO, à margem esquerda da Foz do Arroio Arrombados, denunciavam a predominância dos ventos NE que assolam a Lagoa Mirim. Infelizmente avistamos vestígios de pescadores irresponsáveis que deixaram para traz sacolas plásticas e garrafas PET (Polietileno Tereftalato).
Depois de deixarmos o Arroio Arrombados, paramos, às 13h40, novamente para descansar na Ponta Negra (32°36’15,4’’ S / 53°00’56,3’’ O), na altura de um canal de irrigação. As águas tinham uma curiosa coloração negra tingida pelas areias impregnadas por um material escuro semelhante ao betume.
Fizemos nova parada na Ponta do Juncal, à margem direita do Arroio Juncal (32°38’32,4’’ S / 53°05’16,8’’ O), às 15h30. O Arroio não tinha nenhum atrativo especial, ao contrário da Ponta, cujas dunas e mata nativa lhe conferem um charme peculiar.
A forte canícula forçou-nos a procurar as águas mais profundas do Juncal para nos refrescarmos. A Foz do Jaguarão ficava a apenas dez quilômetros do Juncal.
Foi um tiro muito cansativo, passava das 16h00 e já estávamos remando há sete horas. Visando diminuir a distância, aproamos diretamente para a Foz do Jaguarão, onde aportamos, às 17h30, depois de percorrer 55 km.
Imediatamente subi em uma das dunas mais altas da margem direita da Foz para tentar contatar os nautas, que já deviam estar em Jaguarão, a Rosângela e familiares. Depois de várias tentativas, consegui falar com o Cel Pastl que me informou que o Comandante Norberto, atendendo a motivos pessoais, precisara retornar à Canela. Nossa programação foi alterada abruptamente e, em vez de partirmos, no dia seguinte, para o Sul, precisávamos subir 26 km do Jaguarão até o Iate Clube local, o que representaria um dia adicional à nossa jornada que não estava absolutamente previsto.
Avistei, a uns 2,5 km da Foz, uma casa de bombeamento d’água onde poderíamos acantonar com certo conforto. Estava reconhecendo o local quando o Hélio apareceu e sugeriu que continuássemos remando Rio acima até achar outro local para acamparmos.
Tínhamos percorrido quase 58 km neste dia e remado durante nove horas. A experiência já tinha me mostrado, em diversas ocasiões, que um indivíduo extenuado fica mais propenso a tomar decisões equivocadas e a cometer erros e foi justamente o que aconteceu. Logo após este canal de irrigação, onde eu pretendia acampar, deve-se procurar o talvegue do Rio à bombordo, margem uruguaia, e nós enveredamos pelo canal de Boreste.
O resultado final deste imbróglio foi o de que remamos inutilmente por 4,5 km Rio acima até que a vegetação aquática nos impediu de continuar. Aportei, então, e consultei o Cel Pastl, que nos informou do engano cometido; retornamos, assim, à casa de bombas, onde deveríamos ter acampado desde o início. Percorremos, neste estafante e ensolarado dia, 67 km, uma jornada de onze horas, sendo nove de remo.
(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;
Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);
Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
Ex-Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
E-mail: hiramrsilva@gmail.com.
Vídeo: II Parte: Sangradouro – Jaguarão (28 a 31.12.2014)
https://www.youtube.com/watch?v=lZGalACE8kA&feature=youtu.be
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* O conteúdo opinativo acima é de inteira responsabilidade do colaborador e titular desta coluna. O Portal Gente de Opinião não tem responsabilidade legal pela "OPINIÃO", que é exclusiva do autor.Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – X
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Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – VI
Silva, Bagé, 11.12.2024 Continuando engarupado na memória: Jornal do Brasil n° 224, Rio de Janeiro, RJ Quarta-feira, 25.09.1963 Lei das Selvas T
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – IV
Bagé, 06.12.2024 Continuando engarupado na memória: Jornal do Brasil n° 186, Rio de Janeiro, RJSábado, 10.08.1963 Lacerda diz na CPI que Pressõessã
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – III
Bagé, 02.12.2024 Continuando engarupado na memória: Jornal do Brasil n° 177, Rio de Janeiro, RJQuarta-feira, 31.07.1963 JB na Mira O jornalista H