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Hiram Reis e Silva

Terceira Margem – Parte DCXCVII - Uma Página Memorável I


Terceira Margem – Parte DCXCVII - Uma Página Memorável I - Gente de Opinião

Bagé, 02.02.2024

Era o dia 30.06.1865. Os ânimos dos Brasileiros, e cumpre dizê-lo em abono da verdade, de todos os estrangeiros, que, como hóspedes amigos, muito se tem interessado por nós desde o princípio dessa guerra brutal que nos declarou o cacique do Paraguai; os ânimos de todos os habitantes desta muito leal e heroica cidade de S. Sebastião ([1]) esperavam ansiosos pelo vapor que nos devia trazer recentes notícias do Teatro da Guerra: cada minuto que passava parecia um ano, e cada hora que a pendula batia, um século! Uma eternidade! [...]

[...] da invasão de S. Borja por uma força do exército paraguaio, e a enumeração das tropelias, saques, violências e toda a sorte de infâmias praticadas por uma horda de escravos em obediência ao seu cruel ditador.

A Província do Rio Grande precisava então, mais do que nunca, de união e concórdia: infelizmente achava-se por esse tempo retalhada em partidos que mutu­amente se hostilizavam: nossos mais aguer­ridos e valentes Generais não se entendiam; e, por outro lado, a Presidência da Província segundo a notorie­dade pública, testificada pela declaração que na câmara temporária fizeram os Deputados Rio-grandenses, não oferecia bastantes e seguras garantias para desvanecer essas desinteligências, ou cortar essas dificuldades, o que, todavia, era urgente se fizesse sem demora, incontinenti...

No meio desses acontecimentos, o brasileiro por excelência, o Magnânimo Senhor D. Pedro Segundo, no seu estremecido amor pelo Brasil, repassava em seu espírito uma ideia grandiosa, ideia que ele tinha assentado realizar, fossem quais fossem os obstá­culos, os empecilhos que se lhe pudessem contrapor.

A Província de S. Pedro do Sul, dizia a sós consigo o Ínclito Monarca, a bela Província de S. Pedro do Sul está presa do inimigo: é preciso repeli-lo, e para isto, de antemão preparar todas as cousas.

Eu sou brasileiro, e maldito fosse eu, se, tendo jurado a Constituição do Império, Arca Santa dos direitos dos meus caros súditos e patrícios, me deixasse conservar entre as delícias e os gozos da Corte, esquecendo os deveres de Defensor Perpétuo do Brasil!!! Não, é preciso que eu parta e partirei. [...]

Como Monarca amigo da sua Pátria, pensava no futuro, dela, cujos destinos um dia (afaste-o a providência para bem longe) terão de ser confiados à senhora D. Isabel. Então se comprazia de ver que no esforçado e valente mancebo, seu genro, terá o Brasil senão um Imperador, certamente mais um Defensor Perpétuo!

Entretanto a alegria que Sua Majestade experimen­tava com o encontro do senhor Conde d’Eu não foi duradoura. Uma notícia cruel veio fazer sangrar o coração do Imperador, quando se deleitava ele com a presença do seu querido recém-chegado!

O Primeiro Voluntário da Pátria, aquele Imortal Brasi­leiro que tudo seria capaz de sacrificar em benefício do seu país, não podia conservar-se tranquilo, nem de ânimo sereno ao receber a desagradável nova de que uma força paraguaia havia invadido a importante e florescente Vila de Uruguaiana: seu coração magnâni­mo não podia deixar de profundamente contristar-se.

Não é que se arreceasse Ele que os bárbaros saíssem vitoriosos de sua ousadia, mas porque, primeiro que a bravura das armas brasileiras os expelissem do território pátrio, milhares de depredações, de roubos, e de assassinatos teriam eles praticado, e assim a florescente Vila ficaria reduzida a um montão de ruínas. Era isto o que previa Sua Majestade, e o que, magoava o seu paternal coração.

E, sem passarmos adiante, releva consignarmos aqui que foi em Caçapava que se deu nova organização ao Exército, terminando o Imperador, graças ao seu prestígio e às suas eficazes providências, com as dissidências entre os diversos Generais, chamando-os à concórdia para que todos se unissem em defesa da causa comum. Deste modo prestou Sua Majestade um importantíssimo serviço ao país. Continuava amargu­rado o coração do Ínclito Monarca pela notícia, como já vimos, da invasão da Vila de Uruguaiana por selvagens paraguaios; mas bem depressa aprouve à Providência que sua amargura encontrasse um lenitivo, no completo triunfo que obtiveram as armas brasileiras em Jataí ([2]).

O coração magnânimo do Imperador sentiu alívio, e sua fisionomia radiou de prazer. Foi, na verdade, assinalado o triunfo, pois que havia sido derrotada uma força de 4.000 paraguaios, que teve o arrojo de querer medir com as nossas as suas armas!

No dia 24.08.1865, dirigiu-se Sua Majestade com seus Augustos Genros e mais comitiva para S. Gabriel, e às 16h30 acampou na localidade conhecida por Tapera de Rodrigues Chaves. Foi um dia realmente aziago ([3]), e no qual o Imperador sofreu os maiores incômodos. À noite desabou um medonho temporal.

A pena não pode descrever esta noite infernal, em que os elementos da natureza estiveram em completa luta. Não era só a chuva que caía copiosamente, era também um tremendo furacão, que levara de vencida, arrasando tudo quanto estava de pé: ao furor do vento quase todas as barracas voaram, conservando-se muito pouca e insuficientes para darem guarida à comitiva imperial! Que horrível vendaval! Ao furacão destruidor, viera ajuntar-se a trovoada e os relâmpagos: os raios caiam perto, tudo era confusão! No meio disto notava-se, porém, a resignação e a serenidade de Sua Majestade: era Ele o primeiro a animar a todos, e sem que o perigo o pudesse amedrontar, não deixava um só instante de dar suas ordens e providências. Dir-se-ia que antes queria Ele sofrer todos os incômodos, do que os sofressem aqueles que o acompanhavam!

No dia posterior, 25.08.1865, viam-se os vestígios da tormenta: o campo estava todo alagado, vários soldados em estado inteiramente álgido ([4]) tiritavam, e estavam a ponto de morrer de frio, e um considerável número de cavalos do piquete imperial mortos no chão, vítimas da procela.

O Imperador não descontinuava nunca de consolar seus soldados, envidando todos os esforços para que os seus sofrimentos, se não desaparecessem, ao me­nos se atenuassem. A tormenta obstinada e teimosa, entretanto, não diminuía, antes, pelo contrário, cada vez mais crescia e se alongava... Neste estado de cousas era temeridade demais prosseguir na viagem, e ninguém, a não ser o Imperador que arrosta com a mais espantosa e surpreendente coragem todos os perigos, o teria feito. O Monarca resolveu, não obstante a borrasca, continuar o seu itinerário.

Vãmente ([5]) empregaram o Ministro da Guerra, Conselheiro Ângelo Muniz da Silva Ferraz, e os Ajudantes de Campo Marquês de Caxias e General Cabral todos os seus esforços para que o Imperador não prosseguisse enquanto o tempo não melhorasse!

O Ministro da Guerra zelando, como lhe cumpria, a Sagrada Pessoa do Monarca, ponderou-lhe todos os inconvenientes de uma viagem que naquelas circunstâncias era mais que temerária, punha em perigo a sua preciosa vida, mas a nada atendeu Sua Majestade. Dotado de uma resolução invencível, e de uma força de vontade que a tudo resiste, respondia às ponderações que lhe eram respeitosamente feitas:

  É preciso que não haja demora, convém partir antes que os Rios trasbordem, e não deem passagem. Portanto prossigamos.

Era assim que sempre procedia o Imperador, cada vez mais devotado e solícito pela causa do país. O cantor dos Lusíadas disse:

Depois de procelosa tempestade,

Noturna sombra e sibilante vento,

Traz a manhã serena claridade

Esperança de porto e salvamento.

Mas não se realizou, na viagem imperial, o pensamento do famoso épico português: depois da procelosa tempestade, e da noturna sombra e sibilante vento da noite do dia 24.08.1865 em que Sua Majestade com sua comitiva acamparam na Tapera de Rodrigues Chaves, a manhã seguinte, em vez de ser clara e serena, foi mais procelosa ainda. Tendo o Imperador deliberado a todo o transe continuar na viagem, partiu de feito no dia 25.08.1865; mas a impetuosidade do vendaval foi tão considerável que a certa distância não foi possível mais caminhar, vendo-se Sua Majestade obrigada a acampar com os seus junto a um ramal do Rio Santa Bárbara perto de um pardieiro de uma pobre mulher de nome Maria Joaquina de Toledo.

Foi esta talvez a ocasião em que maiores incômodos suportou o Imperador, sem recursos nenhuns, o que não é de admirar e até facilmente se explica em razão do temporal, e de ter em consequência dele muito sofrido a bagagem imperial. Referimos que Sua Majestade havia acampado próximo ao pardieiro de Maria Joaquina, mas como a chuva fosse extraor­dinariamente copiosa, e todos estivessem muito molhados, foi mister procurarem agasalho no dito pardieiro.

Entraram, pois. A pobre mulher, extremamente bisonha, ficou atônita e submersa no maior espanto e estupefação à vista de tão grande número de pessoas, como ela jamais presenciara em dia algum de sua existência neste mundo. Simples e lhana ([6]), como filha do campo, mas também hospitaleira, dirigiu-se à comitiva com a maior franqueza e disse-lhe:

  Nada tenho que vos possa dar e vos possa aquecer da chuva e do frio, além deste humilde e pequeno albergue, onde vós podereis hospedar, e daquele pote d’água, com o qual podereis matar a sede.

Mal sabia a pobre mulher que o seu humilde albergue tinha a insigne honra de hospedar o Monarca do Brasil!!! Indigente, porém prendada de alma grande, Maria Joaquina procurava por todas as formas desculpar-se de não ter nada com que pudesse alimentar seus hóspedes, que forçosamente, pela fadiga da viagem, dizia ela, deviam ter fome.

O Imperador prestava-lhe grande atenção, e excitando-a a falar, porque já previa que ela era mais uma infeliz a quem Ele devia socorrer, contou a desgraçada toda a história das suas atribulações, das suas privações e da sua mais que hedionda miséria!

Contou que naquele pardieiro haviam-se para ela ecoado outrora dias, senão felizes, ao menos serenos e calmos, porque vivia em companhia de seu marido que a prezava, e que, graças a insano trabalho, ganhava sempre alguns poucos vinténs com que provia à sua e à subsistência dela, mas que tendo ele ultimamente morrido, e gastado ela com o seu enterro os últimas vinténs que possuía, achava-se além disso devendo a quantia de 150$000 rs., e arriscada a perder o seu albergue, testemunha dos seus dias passados, porque um enteado pretendia tomá-lo, visto ser a ele que ela devia.

Posto que falasse em linguagem rústica, a desgraçada Toledo conseguia comover os ânimos dos seus hóspe­des; e especialmente de Sua Majestade que até o fim da sua narrativa prestou-lhe ouvidos atentos. Depois de ter Maria Joaquina falado, expondo todos os con­tratempos da sua vida, e debulhando-se em sentidas lágrimas, quando narrou a sorte que aguardava o seu pardieiro, e que ela ia ficar sem ter um teto que a ressalvasse ([7]) das tempestades, o Imperador, grandemente comovido, dirigiu-se à infeliz mulher, e com a sua habitual bondade declarou-lhe:

  Fique tranquila, que a sua dívida há de ser paga, e o seu albergue não há de ser tomado por seu enteado.

Maria Toledo, sabendo então que quem lhe falava e lhe fizera promessa tão generosa era o Imperador, o que até então ignorava, banhada em abundantíssimo pranto, lançou-se-lhe aos pés, e dirigiu mil súplicas aos céus em bem do Imperador, que efetivamente deu à sua hóspede quantia superior à que ela devia!

Boa maneira sem dúvida de agradecer a Deus de havê-lo livrado dos perigos da tempestade. (CRUZ) (Continua...)

Bibliografia:

 

CRUZ, Gervásio José da (Segundo Oficial da Secretaria de Estado dos Negócios da Marinha). Gratidão dos Brasileiros ao seu Excelso Imperador: Uma Página Memorável da História do Reinado do Senhor Dom Pedro II Defensor Perpétuo do Brasil ‒ Brasil ‒ Rio de Janeiro, RJ ‒ Tipografia Perseverança, 1865.

 

(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;

 

Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)

Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);

Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);

Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);

Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)

Ex-Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);

Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);

Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);

Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)

Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);

Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)

Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).

Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).

Membro do Instituto Histórico e Geográfico do Tapajós (IHGTAP)E-mail: hiramrsilva@gmail.com.



[1]   S. Sebastião: São Sebastião do Rio de Janeiro. (Hiram Reis)

[2]   Jataí: Batalha de Jataí (17.08.1865). (Hiram Reis)

[3]   Aziago: nefasto. (Hiram Reis)

[4]   Inteiramente álgido: de hipotermia. (Hiram Reis)

[5]   Vãmente: Inutilmente. (Hiram Reis)

[6]   Lhana: franca. (Hiram Reis)

[7]   Ressalvasse: pusesse a salvo. (Hiram Reis)

* O conteúdo opinativo acima é de inteira responsabilidade do colaborador e titular desta coluna. O Portal Gente de Opinião não tem responsabilidade legal pela "OPINIÃO", que é exclusiva do autor.

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