Sexta-feira, 2 de fevereiro de 2024 - 06h21
Bagé, 02.02.2024
Era o dia 30.06.1865. Os ânimos dos
Brasileiros, e cumpre dizê-lo em abono da verdade, de todos os estrangeiros,
que, como hóspedes amigos, muito se tem interessado por nós desde o princípio
dessa guerra brutal que nos declarou o cacique do Paraguai; os ânimos de todos
os habitantes desta muito leal e heroica cidade de S. Sebastião ([1])
esperavam ansiosos pelo vapor que nos devia trazer recentes notícias do Teatro
da Guerra: cada minuto que passava parecia um ano, e cada hora que a pendula
batia, um século! Uma eternidade! [...]
[...] da invasão de S. Borja por uma força do exército
paraguaio, e a enumeração das tropelias, saques, violências e toda a sorte de
infâmias praticadas por uma horda de escravos em obediência ao seu cruel
ditador.
A Província do Rio Grande precisava então,
mais do que nunca, de união e concórdia: infelizmente achava-se por esse tempo
retalhada em partidos que mutuamente se hostilizavam: nossos mais aguerridos
e valentes Generais não se entendiam; e, por outro lado, a Presidência da
Província segundo a notoriedade pública, testificada pela declaração que na
câmara temporária fizeram os Deputados Rio-grandenses, não oferecia bastantes e
seguras garantias para desvanecer essas desinteligências, ou cortar essas
dificuldades, o que, todavia, era urgente se fizesse sem demora,
incontinenti...
No meio desses acontecimentos, o brasileiro
por excelência, o Magnânimo Senhor D. Pedro Segundo, no seu estremecido amor
pelo Brasil, repassava em seu espírito uma ideia grandiosa, ideia que ele tinha
assentado realizar, fossem quais fossem os obstáculos, os empecilhos que se
lhe pudessem contrapor.
A Província de S. Pedro do Sul, dizia a sós
consigo o Ínclito Monarca, a bela Província de S. Pedro do Sul está presa do
inimigo: é preciso repeli-lo, e para isto, de antemão preparar todas as cousas.
Eu sou brasileiro, e maldito fosse eu, se,
tendo jurado a Constituição do Império, Arca Santa dos direitos dos meus caros
súditos e patrícios, me deixasse conservar entre as delícias e os gozos da
Corte, esquecendo os deveres de Defensor Perpétuo do Brasil!!! Não, é preciso
que eu parta e partirei. [...]
Como Monarca amigo da sua Pátria, pensava no futuro, dela,
cujos destinos um dia (afaste-o a providência para bem longe) terão de ser
confiados à senhora D. Isabel. Então se comprazia de ver que no esforçado e
valente mancebo, seu genro, terá o Brasil senão um Imperador, certamente mais
um Defensor Perpétuo!
Entretanto a alegria que Sua Majestade experimentava com o
encontro do senhor Conde d’Eu não foi duradoura. Uma notícia cruel veio fazer
sangrar o coração do Imperador, quando se deleitava ele com a presença do seu
querido recém-chegado!
O Primeiro Voluntário da Pátria, aquele Imortal Brasileiro
que tudo seria capaz de sacrificar em benefício do seu país, não podia
conservar-se tranquilo, nem de ânimo sereno ao receber a desagradável nova de
que uma força paraguaia havia invadido a importante e florescente Vila de
Uruguaiana: seu coração magnânimo não podia deixar de profundamente
contristar-se.
Não é que se arreceasse Ele que os bárbaros saíssem vitoriosos
de sua ousadia, mas porque, primeiro que a bravura das armas brasileiras os
expelissem do território pátrio, milhares de depredações, de roubos, e de
assassinatos teriam eles praticado, e assim a florescente Vila ficaria reduzida
a um montão de ruínas. Era isto o que previa Sua Majestade, e o que, magoava o
seu paternal coração.
E, sem passarmos adiante, releva
consignarmos aqui que foi em Caçapava que se deu nova organização ao Exército,
terminando o Imperador, graças ao seu prestígio e às suas eficazes
providências, com as dissidências entre os diversos Generais, chamando-os à
concórdia para que todos se unissem em defesa da causa comum. Deste modo
prestou Sua Majestade um importantíssimo serviço ao país. Continuava amargurado
o coração do Ínclito Monarca pela notícia, como já vimos, da invasão da Vila de
Uruguaiana por selvagens paraguaios; mas bem depressa aprouve à Providência que
sua amargura encontrasse um lenitivo, no completo triunfo que obtiveram as
armas brasileiras em Jataí ([2]).
O coração magnânimo do Imperador sentiu
alívio, e sua fisionomia radiou de prazer. Foi, na verdade, assinalado o triunfo,
pois que havia sido derrotada uma força de 4.000 paraguaios, que teve o arrojo
de querer medir com as nossas as suas armas!
No dia 24.08.1865, dirigiu-se Sua Majestade
com seus Augustos Genros e mais comitiva para S. Gabriel, e às 16h30 acampou na
localidade conhecida por Tapera de Rodrigues Chaves. Foi um dia realmente
aziago ([3]),
e no qual o Imperador sofreu os maiores incômodos. À noite desabou um medonho
temporal.
A pena não pode descrever esta noite
infernal, em que os elementos da natureza estiveram em completa luta. Não era
só a chuva que caía copiosamente, era também um tremendo furacão, que levara de
vencida, arrasando tudo quanto estava de pé: ao furor do vento quase todas as
barracas voaram, conservando-se muito pouca e insuficientes para darem guarida
à comitiva imperial! Que horrível vendaval! Ao furacão destruidor, viera
ajuntar-se a trovoada e os relâmpagos: os raios caiam perto, tudo era confusão!
No meio disto notava-se, porém, a resignação e a serenidade de Sua Majestade:
era Ele o primeiro a animar a todos, e sem que o perigo o pudesse amedrontar,
não deixava um só instante de dar suas ordens e providências. Dir-se-ia que
antes queria Ele sofrer todos os incômodos, do que os sofressem aqueles que o
acompanhavam!
No dia posterior, 25.08.1865, viam-se os vestígios da
tormenta: o campo estava todo alagado, vários soldados em estado inteiramente
álgido ([4])
tiritavam, e estavam a ponto de morrer de frio, e um considerável número de
cavalos do piquete imperial mortos no chão, vítimas da procela.
O Imperador não descontinuava nunca de consolar seus soldados,
envidando todos os esforços para que os seus sofrimentos, se não
desaparecessem, ao menos se atenuassem. A tormenta obstinada e teimosa,
entretanto, não diminuía, antes, pelo contrário, cada vez mais crescia e se
alongava... Neste estado de cousas era temeridade demais prosseguir na viagem,
e ninguém, a não ser o Imperador que arrosta com a mais espantosa e
surpreendente coragem todos os perigos, o teria feito. O Monarca resolveu, não
obstante a borrasca, continuar o seu itinerário.
Vãmente ([5])
empregaram o Ministro da Guerra, Conselheiro Ângelo Muniz da Silva Ferraz, e os
Ajudantes de Campo Marquês de Caxias e General Cabral todos os seus esforços
para que o Imperador não prosseguisse enquanto o tempo não melhorasse!
O Ministro da Guerra zelando, como lhe cumpria, a Sagrada
Pessoa do Monarca, ponderou-lhe todos os inconvenientes de uma viagem que
naquelas circunstâncias era mais que temerária, punha em perigo a sua preciosa
vida, mas a nada atendeu Sua Majestade. Dotado de uma resolução invencível, e
de uma força de vontade que a tudo resiste, respondia às ponderações que lhe
eram respeitosamente feitas:
‒ É preciso que não haja demora, convém partir
antes que os Rios trasbordem, e não deem passagem. Portanto prossigamos.
Era assim que sempre procedia o Imperador,
cada vez mais devotado e solícito pela causa do país. O cantor dos Lusíadas
disse:
Depois de procelosa tempestade,
Noturna sombra e sibilante vento,
Traz a manhã serena claridade
Esperança de porto
e salvamento.
Mas não se realizou, na viagem imperial, o pensamento do
famoso épico português: depois da procelosa tempestade, e da noturna sombra e
sibilante vento da noite do dia 24.08.1865 em que Sua Majestade com sua
comitiva acamparam na Tapera de Rodrigues Chaves, a manhã seguinte, em vez de
ser clara e serena, foi mais procelosa ainda. Tendo o Imperador deliberado a
todo o transe continuar na viagem, partiu de feito no dia 25.08.1865; mas a
impetuosidade do vendaval foi tão considerável que a certa distância não foi
possível mais caminhar, vendo-se Sua Majestade obrigada a acampar com os seus
junto a um ramal do Rio Santa Bárbara perto de um pardieiro de uma pobre mulher
de nome Maria Joaquina de Toledo.
Foi esta talvez a ocasião em que maiores incômodos suportou o
Imperador, sem recursos nenhuns, o que não é de admirar e até facilmente se
explica em razão do temporal, e de ter em consequência dele muito sofrido a
bagagem imperial. Referimos que Sua Majestade havia acampado próximo ao
pardieiro de Maria Joaquina, mas como a chuva fosse extraordinariamente
copiosa, e todos estivessem muito molhados, foi mister procurarem agasalho no
dito pardieiro.
Entraram, pois. A pobre mulher, extremamente bisonha, ficou
atônita e submersa no maior espanto e estupefação à vista de tão grande número
de pessoas, como ela jamais presenciara em dia algum de sua existência neste
mundo. Simples e lhana ([6]),
como filha do campo, mas também hospitaleira, dirigiu-se à comitiva com a maior
franqueza e disse-lhe:
‒ Nada tenho que vos possa dar e vos possa
aquecer da chuva e do frio, além deste humilde e pequeno albergue, onde vós
podereis hospedar, e daquele pote d’água, com o qual podereis matar a sede.
Mal sabia a pobre mulher que o seu humilde albergue tinha a
insigne honra de hospedar o Monarca do Brasil!!! Indigente, porém prendada de
alma grande, Maria Joaquina procurava por todas as formas desculpar-se de não
ter nada com que pudesse alimentar seus hóspedes, que forçosamente, pela fadiga
da viagem, dizia ela, deviam ter fome.
O Imperador prestava-lhe grande atenção, e excitando-a a
falar, porque já previa que ela era mais uma infeliz a quem Ele devia socorrer,
contou a desgraçada toda a história das suas atribulações, das suas privações e
da sua mais que hedionda miséria!
Contou que naquele pardieiro haviam-se para
ela ecoado outrora dias, senão felizes, ao menos serenos e calmos, porque vivia
em companhia de seu marido que a prezava, e que, graças a insano trabalho,
ganhava sempre alguns poucos vinténs com que provia à sua e à subsistência
dela, mas que tendo ele ultimamente morrido, e gastado ela com o seu enterro os
últimas vinténs que possuía, achava-se além disso devendo a quantia de 150$000
rs., e arriscada a perder o seu albergue, testemunha dos seus dias passados,
porque um enteado pretendia tomá-lo, visto ser a ele que ela devia.
Posto que falasse em linguagem rústica, a
desgraçada Toledo conseguia comover os ânimos dos seus hóspedes; e
especialmente de Sua Majestade que até o fim da sua narrativa prestou-lhe
ouvidos atentos. Depois de ter Maria Joaquina falado, expondo todos os contratempos
da sua vida, e debulhando-se em sentidas lágrimas, quando narrou a sorte que
aguardava o seu pardieiro, e que ela ia ficar sem ter um teto que a ressalvasse
([7]) das
tempestades, o Imperador, grandemente comovido, dirigiu-se à infeliz mulher, e
com a sua habitual bondade declarou-lhe:
‒ Fique tranquila,
que a sua dívida há de ser paga, e o seu albergue não há de ser tomado por seu
enteado.
Maria Toledo, sabendo então que quem lhe falava e lhe fizera
promessa tão generosa era o Imperador, o que até então ignorava, banhada em
abundantíssimo pranto, lançou-se-lhe aos pés, e dirigiu mil súplicas aos céus
em bem do Imperador, que efetivamente deu à sua hóspede quantia superior à que
ela devia!
Boa maneira sem dúvida de agradecer a Deus de havê-lo livrado
dos perigos da tempestade. (CRUZ) (Continua...)
Bibliografia:
CRUZ, Gervásio José da (Segundo Oficial da
Secretaria de Estado dos Negócios da Marinha). Gratidão dos Brasileiros ao seu Excelso Imperador: Uma Página Memorável
da História do Reinado do Senhor Dom Pedro II Defensor Perpétuo do Brasil ‒
Brasil ‒ Rio de Janeiro, RJ ‒ Tipografia Perseverança, 1865.
(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de
Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor
e Colunista;
Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do
Sul (1989)
Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre
(CMPA);
Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura
do Exército (DECEx);
Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério
Militar – RS (IDMM – RS);
Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando
Militar do Sul (CMS)
Ex-Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia
Brasileira (SAMBRAS);
Membro da Academia de História Militar Terrestre do
Brasil – RS (AHIMTB – RS);
Membro do Instituto de História e Tradições do Rio
Grande do Sul (IHTRGS – RS);
Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia
(ACLER – RO)
Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio
Grande do Sul (AMLERS)
Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da
Escola Superior de Guerra (ADESG).
Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
Membro do Instituto Histórico e
Geográfico do Tapajós (IHGTAP)E-mail: hiramrsilva@gmail.com.
[1] S. Sebastião: São
Sebastião do Rio de Janeiro. (Hiram Reis)
[2] Jataí: Batalha
de Jataí (17.08.1865). (Hiram Reis)
[3] Aziago:
nefasto. (Hiram Reis)
[4] Inteiramente
álgido: de hipotermia. (Hiram Reis)
[5] Vãmente:
Inutilmente. (Hiram Reis)
[6] Lhana: franca. (Hiram
Reis)
[7] Ressalvasse: pusesse
a salvo. (Hiram Reis)
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – X
Bagé, 20.12.2024 Continuando engarupado na memória: Tribuna da Imprensa n° 3.184, Rio, RJSexta-feira, 25.10.1963 Sindicâncias do Sequestro dão e
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – VI
Silva, Bagé, 11.12.2024 Continuando engarupado na memória: Jornal do Brasil n° 224, Rio de Janeiro, RJ Quarta-feira, 25.09.1963 Lei das Selvas T
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – IV
Bagé, 06.12.2024 Continuando engarupado na memória: Jornal do Brasil n° 186, Rio de Janeiro, RJSábado, 10.08.1963 Lacerda diz na CPI que Pressõessã
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – III
Bagé, 02.12.2024 Continuando engarupado na memória: Jornal do Brasil n° 177, Rio de Janeiro, RJQuarta-feira, 31.07.1963 JB na Mira O jornalista H