Segunda-feira, 5 de fevereiro de 2024 - 06h25
Bagé, 05.02.2024
[...] Vinte e quatro horas passou Sua Majestade e seus dois
genros, bem como todo o séquito imperial, a comer simplesmente pão e queijo
duro, e, entretanto comprazia-se com estas privações, e se acostumava com elas,
como se estivesse habituado a sofrê-las!
Por essa ocasião um soldado do piquete não podia resistir ao
frio, estava inteiramente álgido, e “estiriçado”
gemia; então o Imperador, condoendo-se da sorte do mesmo soldado, ordenou que
ele se recolhesse, e com uma caridade que excede todos os limites conceptíveis,
tirou de seus ombros sua capa e com ela cobriu o corpo do infeliz soldado! A
história tem registrado em suas páginas feitos de caridade praticados por
Príncipes filantropos, mas certamente como o que acabamos de registrar nunca
apontou algum!
É um fato virgem, e que sobremodo honra àquele que o
praticou!!! O Monarca Brasileiro compreende realmente a missão dos Reis na
terra, e sabe que esta missão não consiste unicamente na administração do país,
confiado ao seu governo: compreende e sabe que a missão dos Reis na terra
abrange, além do governo e regime dos povos, uma esfera mais larga e ao mesmo
tempo mais nobre e generosa a de melhorar, quanto neles couber, a sorte dos
seus governados ou súditos.
O pobre e infeliz soldado morreria de frio, se o Imperador lhe
não cobrisse os membros com a sua capa. Ele previu-o e atirou-lhe a capa!
Privou-se do único recurso que tinha só para não deixar morrer o seu soldado!
ste fato é a mais eloquente e a mais sublime apoteose do
Imperador do Brasil! O frio não decrescia de intensidade: o Imperador privado
de sua capa, e tendo unicamente sobre si um capote de borracha, começou de
experimentar a seu turno os rigores da estação; nada dizia, porém; visivelmente
incomodado, manteve todavia uma calma que à sua comitiva não pôde deixar de
causar profunda admiração, não sabendo explicar, como o Imperador, criado com
todos os cômodos e no meio de todos os gozos, podia suportar tantos tormentos!
Aumentaram os incômodos de Sua Majestade que já principiava a
tiritar de frio. E de que modo abrigar-se, se, como já os leitores viram,
apenas tinha ele por toda a cobertura um capote de borracha?
O General Francisco Xavier Calmon da Silva
Cabral, velho servidor do Monarca, achava-se felizmente a seu lado, e com
aquele devotamento que tributa a seu Augusto Amo, tirou dos seus ombros, com um
movimento que traiou ([1]) a
maior espontaneidade, a capa que o cobria, e ofereceu-a ao Imperador. Este a
princípio recusou, porque não queria, por amor dos seus cômodos, expor a vida
do seu Ajudante de Campo.
O General, porém, suplicou-lhe que aceitasse e se servisse da
capa: Sua Majestade aceitou-a, mas uma lágrima de gratidão que se lhe deslizou
pelas faces, foi a sublime expressão com que agradeceu ao General a sua
dedicação! O procedimento magnífico do General Cabral, expondo-se em idade
sexagenária às duras consequências de um enregelamento cruel para que o
Imperador não continuasse a experimentar a ação maléfica do frio, é digno de
todos os encômios ([2]), e revela a nobre
qualidade que adorna o distinto Ajudante de Campo ‒ reconhecimento indelével
aos favores e às graças que Sua Majestade Imperial lhe tem liberalizado! O
procedimento do Imperador, agradecendo com a eloquência de uma lágrima que lhe
correu pelas faces a fineza do seu leal servidor, deu testemunho de um
sentimentalismo próprio para demonstrar a grandeza do coração Imperial!
Pouco adiante da choupana de Maria Joaquina de Toledo, parou
Sua Majestade na casa da residência do Tenente José Marinheiro. Neste lugar
recebeu uma carta do General D. Venâncio Flores, na qual lhe participava haver
nomeado uma comissão composta do Coronel Bernabé Magarinos, Chefe do
Estado-maior do Exército da Vanguarda, e de seu Secretário Herrera, com honroso
fim de felicitar em seu nome a Sua Majestade pela heroica resolução de
atirar-se aos sofrimentos de uma viagem penosa no intuito de ser ([3])
presente ao Teatro da Guerra; resolução que, além de heroica, havia
necessariamente de incutir demasiada coragem e valor nos ânimos dos soldados
que compõem o exército aliado, e irremissivelmente ([4])
trazer a vitória do mesmo exército na civilizadora cruzada contra o bárbaro
ditador do Paraguai.
Os recursos do lugar eram muitíssimo apoucados; contudo foram
dadas sem demora as providências possíveis para que a recepção dos dignos
comissários orientais fosse revestida de todas as formalidades. O Imperador
que, além do mais; é extremamente cavalheiro e sabe corresponder com a devida
cortesia e urbanidade os atos de delicadeza praticados com sua Augusta Pessoa,
ordenou que o seu Ajudante de Campo General Cabral, o Conselheiro Henrique de
Beaurepaire Rohan e o Chefe de Esquadra Conselheiro Joaquim Raimundo de Lamare
se adiantassem a receber em comissão os emissários do General Flores. Partiu a
comissão, que de volta, apresentou a Sua Majestade somente o Coronel Magarinos
visto que Herrera, por incomodado, ficara em meio do caminho. Magarinos
declarou em seu discurso ao Imperador o que dissemos acima, manifestando-lhe as
expressões de verdadeira e afetuosíssima amizade que lhe tributa o General
Flores. O Imperador agradeceu com frases do mais fino trato a grande prova de
consideração que lhe era transmitida por seu leal amigo, com o qual em breve
teria o prazer de encontrar-se.
No dia 30.08.1865 continuou Sua Majestade e
seu séquito a jornada, acampando num Arroio, pouco além do Rio Salso, que já
haviam passado. Aí teve o Imperador a benevolência de oferecer um almoço ao
Coronel Magarinos, sendo para semelhante efeito aproveitados os escassos
recursos, dos quais era possível dispor no lugar. Nesse mesmo dia, chegando o
Monarca a S. Gabriel, soube que o General João Propício Mena Barreto, por ele
ultimamente agraciado com o título de Barão daquele nome ([5])
se achava gravemente enfermo de moléstia agravada no campo da batalha. Sua
Majestade foi imediatamente visitar o ilustre General, dispensando-lhe palavras
de animação, e acoroçoando-o ([6]) a
que tivesse esperanças na indefectível ([7])
bondade da Providência Divina, que se havia de condoer dos seus sofrimentos, e
breve restituí-lo completamente restabelecido à pátria, que havia mister ([8])
ainda dos seus bons serviços militares.
O General Mena Barreto, sabem-no os leitores, foi um dos
heróis do Paissandu: aí obrou ele prodígios de valor; mas desde então, para
infelicidade sua e do país, que o conta no número dos seus mais distintos
filhos, uma enfermidade, que o minava havia longos anos, exacerbou-se, privando
o exército da presença de tão denodado e intrépido Cabo de Guerra.
O General debilitado, sofrendo
horríveis dores no leito da doença, ou antes, no sarcófago da agonia, mal pôde
em princípio reconhecer a Visita Augusta que o honrava; mas, pouco a pouco, e
como que se a presença do Imperador tivesse o poder de restituir-lhe a vida,
que já se lhe ia sumindo, seus membros começaram a adquirir algum vigor, seus
olhos, até aquela ocasião cerrados, se abriram, e acenderam-se de uma chama
benéfica, que fez com que ele reconhecesse o grande hóspede que o magnificava ([9]).
Seus lábios se entreabriram e deixaram escapar um como
sorriso, que ao passo que exprimia a sua satisfação, manifestava as dores que a
moléstia lhe dava a experimentar... Depois com um movimento, que se não
descreve, levou aos lábios à destra ([10])
Imperial, que uma e mil vezes beijou com a maior ternura, e a maior efusão de
sua alma! Sua Majestade Imperial retirou-se, deixando o General na contemplação
da subida mercê ([11])
que lhe outorgara...
A 03.09.1865, seguiu o Imperador para Alegrete, onde chegou no
dia 08.09.1865 às 15h00, e acampou com a sua comitiva no lugar denominado
Ambrósio à margem esquerda do Rio Santa Maria, que vai desaguar no Uruguai.
À noite quis Sua Majestade causar uma agradável surpresa ao
seu fiel Ajudante de Campo, o General Cabral, dirigindo-se à barraca deste, na
qual se achavam o Chefe de Esquadra Conselheiro de Lamare, o Mordomo da viagem
Comendador Francisco Pinto de Melo, o General Gama e o velho Ambrósio que dá
nome ao lugar do acampamento. Demorou-se o Imperador nesta visita até às 22h00,
entretendo-se a conversar com o General Gama e o velho Ambrósio em língua
Guarani. Coisa notável!
No dia 07.09.1865, que traz à lembrança dos
brasileiros o mágico grito de “Independência
ou Morte” soltado nas campinas do Ipiranga pelo herói dos dois mundos, o
Senhor D. Pedro I, de sempre saudosa memória, o Senhor D. Pedro Segundo, digno
filho e herdeiro do valor daquele Príncipe imortal, peregrinava pelas campinas
da vastíssima Província de S. Pedro do Rio Grande do Sul, não para soltar o
famoso brado que libertou um povo inteiro da denominação de uma orgulhosa
metrópole, mas para defender a essa mesma pátria que seu Augusto Pai havia
libertado, e expelir dela a ousada invasão de um tirano brutal!
No dia 07.09.1822, o Rei Generoso e
Magnânimo que abdicou duas coroas, soltava, para emancipar um povo grande e digno
do mais brilhante futuro, o grito da liberdade; no dia 07.09.1865, 43 anos
depois, o Ínclito sucessor das suas glórias, arrostava todos os perigos para
com sua presença animar os seus soldados, e aos soldados aliados a fim de
levarem eles a civilização à terra da barbárie, e a liberdade à terra da
escravidão! E quão doces reminiscências não vieram à mente do Imperador naquele
dia tão grato a todos os Brasileiros? É fácil adivinhá-lo. (CRUZ) (Continua...)
Bibliografia:
CRUZ, Gervásio José da (Segundo Oficial da
Secretaria de Estado dos Negócios da Marinha). Gratidão dos Brasileiros ao seu Excelso Imperador: Uma Página Memorável
da História do Reinado do Senhor Dom Pedro II Defensor Perpétuo do Brasil ‒
Brasil ‒ Rio de Janeiro, RJ ‒ Tipografia Perseverança, 1865.
(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de
Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor
e Colunista;
Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do
Sul (1989)
Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre
(CMPA);
Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura
do Exército (DECEx);
Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério
Militar – RS (IDMM – RS);
Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando
Militar do Sul (CMS)
Ex-Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia
Brasileira (SAMBRAS);
Membro da Academia de História Militar Terrestre do
Brasil – RS (AHIMTB – RS);
Membro do Instituto de História e Tradições do Rio
Grande do Sul (IHTRGS – RS);
Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia
(ACLER – RO)
Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio
Grande do Sul (AMLERS)
Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da
Escola Superior de Guerra (ADESG).
Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
Membro do Instituto Histórico e Geográfico do Tapajós
(IHGTAP)E-mail: hiramrsilva@gmail.com..
[1] Traiou:
revelou. (Hiram Reis)
[2] Encômios:
aplausos. (Hiram Reis)
[3] Ser: estar. (Hiram
Reis)
[4] Irremissivelmente:
definitivamente. (Hiram Reis)
[5] Barão daquele
nome: 2° Barão de São Gabriel.
[6] Acoroçoando-o:
animando-o. (Hiram Reis)
[7] Indefectível:
infalível. (Hiram Reis)
[8] Havia mister:
precisava. (Hiram Reis)
[9] Magnificava:
exaltava. (Hiram Reis)
[10] Destra: mão
direita. (Hiram Reis)
[11] Mercê: graça. (Hiram
Reis)
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – X
Bagé, 20.12.2024 Continuando engarupado na memória: Tribuna da Imprensa n° 3.184, Rio, RJSexta-feira, 25.10.1963 Sindicâncias do Sequestro dão e
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – VI
Silva, Bagé, 11.12.2024 Continuando engarupado na memória: Jornal do Brasil n° 224, Rio de Janeiro, RJ Quarta-feira, 25.09.1963 Lei das Selvas T
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – IV
Bagé, 06.12.2024 Continuando engarupado na memória: Jornal do Brasil n° 186, Rio de Janeiro, RJSábado, 10.08.1963 Lacerda diz na CPI que Pressõessã
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – III
Bagé, 02.12.2024 Continuando engarupado na memória: Jornal do Brasil n° 177, Rio de Janeiro, RJQuarta-feira, 31.07.1963 JB na Mira O jornalista H