Quarta-feira, 2 de agosto de 2023 - 06h05
Bagé, 31.07.2023
A têmpera dos heróis anônimos da Retirada da Laguna forjada na caserna e
aperfeiçoada nos desafios impostos pela carreira das armas aproxima estes seres
dos deuses das guerras e povoa o imaginário dos pueris mortais. Os heróis são
homens de coragem, homens capazes de se imolar por uma causa; não são homens
comuns. Vamos reproduzir, a seguir, a biografia de um deles publicada na Revista
Trimestral do Instituto Histórico e Geográfico do Brasil – Tomo LVI – Parte
Segunda, editada em 1893, de autoria do Visconde de Taunay.
Apontamentos Biográficos
II
Declarada a Guerra do Paraguai, não podia o
brioso militar conservar-se retraído e em Comissão civil, quando tudo o impelia
a ir servir a pátria nos pontos de mais perigo e assim pagar-lhe com juros
todos os benefícios que dela havia recebido em proteção, auxílios e
principalmente instrução, desde a primária até à superior.
Quebrando, pois, sem vacilação a doçura da
vida de família, já com dois filhinhos a lhe alegrarem o lar doméstico, foi ao
encontro de qualquer chamado e, apresentando-se ao Quartel General, teve a
09.03.1865, ordem de se pôr à disposição do Presidente Comandante das Armas da
Província de Mato Grosso, então nomeado, Cel Manoel Pedro Drago, a fim de
seguir para aquela parte do Brasil invadida e ocupada em sua Zona Meridional
pelos inimigos.
Já no caráter de Ajudante da Comissão de Engenheiros,
dirigida e cuidadosamente organizada pelo seu antigo Chefe no Rio de Janeiro e
amigo, então Tenente-Coronel José de Miranda da Silva Reis. Anteriormente fora
já, por decreto de 28.11.1863, promovido a Capitão, dois anos depois de
concluído, com aprovações plenas, o Curso de Engenharia Civil, em 1861. A
01.04.1865 partiu Pereira do Lago para a Expedição de Mato Grosso, que tantas
inclemências teve que suportar, mal se afasta do litoral, internando-se no
sertão.
Após penosas e dilatadas marchas em que muito padeceu a
coluna, já pela carência de víveres apurada até à fome, já por várias e
mortíferas epidemias, viu todos os seus sofrimentos coroados pela terrível
Retirada da Laguna hoje bem conhecida na história e citada com honra e como
prova frisante do quanto podem, nas mais tremendas conjunturas, a constância,
a coragem e o pundonor militar.
Durante interminável viagem pelo interior
do Brasil baldo de recursos [dois anos para se chegar à Zona de Operações!] na
economia interna das forças expedicionárias, no serviço diário dos
acampamentos, nas explorações e, sobretudo, passagens de Rios vadeáveis ou
não, nos reconhecimentos e combates e, acima de tudo, nos mais horrorosos
trechos da Retirada, foi o Capitão Pereira do Lago inexcedível em resolução,
sangue frio e serenidade, exemplo contínuo, sem o menor desfalecimento, a
quantos quisessem dar cumprimento inteiro a deveres tornados então sacrifícios
quase sobre-humanos.
Assistente do Ajudante-General, cargo de
importância capital naquelas circunstâncias, pronto, além disso, para todos
os serviços e para as mais arriscadas comissões, superior às maiores
intempéries, a representarem legítima subversão da natureza mato-grossense, já
de si áspera e selvática, sempre na frente de todos, nos postos mais perigosos,
não houve elogios que dos Chefes e camaradas não alcançasse e não merecesse.
Por vezes foi a verdadeira alma, o “Braço Forte” da infeliz coluna em seu
Movimento Retrógrado da linha do Apa a Nioaque, principalmente quando, em fins
de junho de 1867, depois dos medonhos estragos do “cholera morbus”, o acúmulo e a agravação das misérias e desastres
a quase todos haviam alquebrado o ânimo e a vontade de lutar e resistir.
Simples Capitão patenteou, nesses
crudelíssimos e inesquecíveis dias, qualidades e temperamento de legítimo e
prestigioso General, dependendo, em não poucas ocasiões, a salvação geral da
sua pertinácia e inquebrantável calma.
Se é preciso morrer ‒ costumava
bradar aos tímidos e desconsolados ‒, pois bem morramos todos! Neste mundo
ninguém fica para semente; disto podem ter certeza.
Verdade é, que a responsabilidade da marcha
até à fronteira paraguaia e da invasão do território inimigo sobre ele cabia
quase inteira, pois fora o seu voto preponderante no Conselho de Guerra em que
se decidira a temerária aventura, era temerária, de fato; pois de 1.600 homens
de guerra que transpuseram o Apa, só voltaram, trinta e cinco dias depois, 720!
Dessas angustiosíssimas semanas, em que a
coluna brasileira se arrastava por impenetráveis e imensos campos, tangida pelo
desespero, cercada de incêndios diariamente renovados por ferozes perseguidores,
buscando só e só salvar as suas bandeiras e os seus canhões ‒ isto é, a sua
honra ‒ entregue a todas as contingências imagináveis da morte pela fome, pela
peste e pelas balas, daquele período tão extraordinário diz concisamente a Fé
de Ofício de Pereira do Lago o seguinte:
Na parte que o Comandante do 17°
de Voluntários da Pátria deu ao Comando das forças a 6 de maio, foi declarado
que, tendo pedido para acompanhar aquele Batalhão, muito o coadjuvou, dando
provas da maior coragem e marchando sempre na frente.
Tomou parte na retirada das Forças para o Forte paraguaio de
Bela Vista a 8 e daí para Nioaque, onde chegou a 11 de junho. Assistiu aos
combates de 6, 8, 9, saindo as forças do acampamento da Invernada e ao geral de
11, tudo do mês de maio, à margem direita do Rio Apa, e bem assim aos tiroteios
contínuos de 14, 16, 18, 19, 23, 25 e 26 do dito mês de maio. Em virtude da
nova organização dada, em Ordem do Dia do comando a 1° de Junho, à Comissão de
Engenheiros, reduzindo-a a três membros e estes pertencentes à arma especial,
deixou por isso o exercício da mesma Comissão. Na Ordem do dia do Comando em
Chefe, n° 3, de 8 do mesmo mês, relatando as ocorrências nas marchas,
contramarchas e combates foi seu nome contemplado várias vezes por ter-se
portado sempre com bizarria e sangue frio, dignos de muito particular menção.
Com mais especificação e naturalmente menos frieza
oficial, diz a história da Retirada da Laguna em suas páginas 86 e 87,
resumindo em breves traços o caráter do notável militar e mostrando a
participação que tivera nas imprudências da coluna expedicionária e no resgate
de todos os heroicos confrontos:
À testa dos mais entusiastas se via o Capitão Pereira do
Lago, oficial tão atilado, quanto positivo e pertinaz, com uma coragem que
facilmente se exalta e nunca desce do nível a que uma vez sobe. Cabe-lhe
certamente o maior quinhão nas nossas temeridades; mas também, mais tarde,
soube sempre nas jornadas mais difíceis da nossa retirada fazer frente a todas
as necessidades do momento com a sua atividade, com a sua poderosa iniciativa e
com a perspicácia do seu lance de vista, grandes dotes, ainda de mais a mais
realçados pela sua lisura, amenidade e simplicidade de caráter.
E, aludindo a fatos anteriores, acrescenta aquela
narrativa:
Há muito conhecíamos quanto dele se podia esperar. Mais de um
ano antes, quando o desventurado General Galvão se viu em risco de morrer à
fome com toda a sua gente no Coxim, coube à Comissão de Engenheiros ir
reconhecer a possibilidade de passagem para o Sul, e os perigos dessa
exploração, a caminhar-se para frente sem guia através das planícies inundadas
que nos cercavam, eram tais e tão evidentes, que os Engenheiros, com
autorização do seu Chefe, confiaram à sorte de apontar entre eles os dois
oficiais que assim deviam arriscar-se. O primeiro nome que saiu da urna foi o
de Taunay: a única probabilidade de salvação para ele em semelhante
incumbência era ter por companheiro um homem como o Lago, e felizmente o
segundo bilhete continha essa indicação. A satisfação foi geral; homenagem
prestada ao mérito em uma dessas ocasiões em que só a verdade se manifesta.
Acampadas afinal as forças expedicionárias no Porto
Canuto, junto ao Rio Aquidauana, objetivo de todos os seus esforços durante a
Retirada da Laguna pelo apoio que lhe davam os contrafortes da serra de Amambaí,
também chamada Maracaju, e terminadas assim as operações de guerra, gloriosas
de certo, mas totalmente infrutíferas, teve a coluna ordem de seguir, depois de
conveniente descanso e reparação, para a capital Cuiabá. Com muita ordem e
rapidez fez-se essa longa marcha de concentração, desenvolvendo nela o Capitão
Lago, segundo reza a Ordem do dia de 19.10.1867:
Constantes e nunca suficientemente louvados zelo e
inteligência e concorrendo para que tudo caminhasse sempre com a máxima
regularidade e disciplina.
Concluídas todas essas afanosas obrigações, pediu então
para se reunir ao seu Corpo do Estado-Maior de 1ª Classe e partir para o Rio de
Janeiro e na Ordem do dia de 21 de Novembro, ao deixar as funções de Assistente
do Ajudante General, em que tanto se distinguira e tão alto se levantara no
conceito de todos, colheu ainda os mais estrondosos elogios. Fez-se de viagem
e, no dia 20.02.1868, apresentou-se na Corte ao seu Corpo.
Já então, pelos extraordinários feitos de
Mato Grosso lhe brilhava no largo e leal peito o oficialato da Ordem da Rosa,
além do hábito de Aviz conquistado por 20 anos de irrepreensíveis serviços e
companheiro da medalha da campanha do Uruguai, que ganhara como simples Praça
de Pret. (Taunay, 1893) (Continua...)
Bibliografia
TAUNAY, Alfredo de
Escragnolle. Coronel Antônio Florêncio
Pereira do Lago – Brasil – Rio de Janeiro, RJ – Revista Trimestral do
Instituto Histórico e Geográfico do Brasil – Tomo LVI – Parte Segunda –
Companhia Tipografia do Brasil, 1893.
(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de
Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor
e Colunista;
Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do
Sul (1989)
Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);
Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura
do Exército (DECEx);
Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério
Militar – RS (IDMM – RS);
Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando
Militar do Sul (CMS)
Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia
Brasileira (SAMBRAS);
Membro da Academia de História Militar Terrestre do
Brasil – RS (AHIMTB – RS);
Membro do Instituto de História e Tradições do Rio
Grande do Sul (IHTRGS – RS);
Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER
– RO)
Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio
Grande do Sul (AMLERS)
Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da
Escola Superior de Guerra (ADESG).
Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
E-mail: hiramrsilva@gmail.com.
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