Sexta-feira, 22 de setembro de 2023 - 06h05
Bagé, 22.09.2023
A MEDICINA NA
GUERRA DO PARAGUAI
(Mato Grosso)
LUIZ DE CASTRO SOUZA
Sócio efetivo do Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro e Membro titular do Instituto Brasileiro de História da
Medicina.
XII
AO MÁRTIRES DA MEDICINA MILITAR
Após a passagem da Esquadra brasileira pelas baterias
de Humaitá, a 19.02.1868, o Marechal Solano López mandava que suas Forças
Terrestres e Navais que se encontravam em Mato Grosso, se recolhessem ao
território da República, o que se efetuou a 03.04.1868. Mais tarde, com a
ocupação da capital do Paraguai, a 05.01.1869, pelo Marechal Marquês de Caxias,
este reconheceu a necessidade de ser imediatamente restabelecida a comunicação
fluvial com a Província de Mato Grosso. Assim, a 14 de janeiro, partia de Assunção
uma esquadrilha de seis canhoneiras, sob o comando do Capitão-de-Mar-e-Guerra
Aurélio Garcindo Fernandes de Sá, levando a bordo 250 praças do Batalhão de
Sapadores, comandados pelo Major de Engenheiros Júlio Anacleto Falcão da Frota,
com o fim de ocupar e fortalecer o Fecho dos Morros, ponto estratégico do Alto
Paraguai. Aí chegando, o comandante Garcindo de Sá determina que os navios “Fernandes
Vieira” e “Felipe Camarão”, subissem até Cuiabá, levando as notícias
das vitórias brasileiras.
Estas duas canhoneiras ao tocarem em Forte
de Coimbra, encontram-no abandonado, porém, em Corumbá, estavam a postos uns
200 homens comandados pelo Tenente-Coronel Antônio Maria Coelho [Barão de
Amambai em 28.08.1889]. Continuam a subir o Paraguai e chegam à capital da
Província de Mato Grosso, aos 03.02.1869, quando são festivamente recebidos.
Uma multidão de cerca de duas mil pessoas aguardava os avisos, com bandas de
música e salvas de artilharia, tendo à frente o Presidente da Província e o
Bispo diocesano, quando foi cantado o “Te-Deum” em ação de graças, na
Igreja de São Gonçalo. O povo cuiabano transbordava de contentamento, após
longos anos de martírios e apreensões, sendo as notícias, trazidas pelas
canhoneiras, das mais auspiciosas para os mato-grossenses.
Na ação guerreira que teve como cenário a
Província de Mato Grosso, a população pagou um alto tributo de sofrimento, de
miséria e de dor. Os nossos soldados, a maioria improvisados, demonstraram uma
resignação jamais igualada, quando, sem armas e munições, enfrentaram o invasor
da Pátria, com heroísmo e abnegação.
Cabe aos médicos militares, igualmente, uma parcela
ponderável no êxito daquela resistência gloriosa, pois encontravam-se sempre
firmes em seus postos, nos combates, nas longas marchas, nas retiradas, nas
epidemias, nos pantanais, nos pontos de resistência, nos vapores e em toda a
parte que se fazia necessária a sua presença. Preveniam as infecções, saneavam
os acampamentos e combatiam as enfermidades, curavam os males e praticavam
intervenções cirúrgicas, sedavam as dores e confortavam os enfermos quando nada
mais seria possível fazer. Os médicos transfixavam calor humano, onde tudo era
sofrimento e desespero, como autênticos sacerdotes do corpo.
Nesse momento, quando recordamos com
sincera homenagem os heróis da Medicina Militar Brasileira, lembramos, por
igual, um médico francês que foi convocado para Primeira Guerra Mundial: Dr.
René Dumesnil. Serviu no posto de Major e atuou como Médico de Batalhão,
Médico-chefe de um Regimento de Infantaria e depois de um Regimento de
Cavalaria. Anos após, dedicou páginas de um dos seus trabalhos (DUMESNIL), às
reminiscências do período de Campanha que nos revelou toda a realidade tétrica.
Teve oportunidade de evocar suas revoltas
contra a destruição e a improvisação; a preocupação de ter medo e faltar
coragem na ocasião necessária; registra episódios de uma retirada vendo
camponeses fugindo, moribundos à beira da estrada, velhos cujo sofrimento se
agravava pelo fato de a morte surpreendê-los longe de casa, onde
resignadamente a teriam esperado; crianças chorando de fome e mães cujos seios
secaram e não podiam mais alimentar seus filhos.
Diante daquele quadro
dantesco, ele compreendera que o seu tormento soara; a hora exata em aceitar
com realidade sua parte de sofrimento e de angústia. Relembra certas
circunstâncias que deram às palavras a sua plena concepção: Morrer no seu
posto. Então, viveu dias iguais ao do trapista ([1]) que
medita sobre a morte, não no silêncio do claustro mas no reboliço da tropa e no
troar dos canhões. Cada minuto que passava representava apenas uma pausa, um
momento de graça. E, escreveu, textualmente:
Morre ou mata. Para quem combate, morrer é um dos termos do
dilema, mas é o termo que se esquece. O médico deve conservar as mãos vazias e
a mente calma entre os que retesam os braços sobre uma arma e o pensamento
sobre um único ato: matar. Ele é a testemunha sóbria de uma orgia sangrenta.
Arrisca a sua sorte e tem parte no perigo, mas sem o reverso. Seu dever sem
embriaguez é mais austero que do soldado. Começa onde o outro cessa, no momento
em que o ferido se entrega às mãos caridosas que o arrancam do inferno. Entre a
batalha e o ferido, é o médico que se interpõe.
Em outro trecho ele fala do dever do militar de
empedernir-se, dominar os nervos, entretanto, acrescenta:
não ao ponto do endurecimento que, banindo toda
sensibilidade, faz do homem uma máquina de cortar todas as coisas, agir,
raciocinar, segundo princípios rígidos e leis imutáveis, impõe uma disciplina
na qual o coração não tem lugar. Empedernir-se, mas não até a frieza. O dever
ordena. Obedece-se. Não se discute, não se transgrede.
Sabia que cada um representava a ínfima peça de uma
engrenagem que dependia de todos para funcionar bem. E conclui o Dr. Dumesnil:
Os feridos, os doentes esperam de nós não só os cuidados
materiais que farão desaparecer na medida do possível seus sofrimentos e seus
males corpóreos, como ainda outra coisa que os regulamentos não podem definir
e que se encerra em uma palavra: humanidade.
Esses conceitos são atualíssimos para a evolução da
medicina, ou melhor, para a crise que a medicina atravessa, quando a arte e
ciências médicas perdem o seu caráter humanitário, forçada pela tecnologia
exagerada, distanciando-se do alto sentido que vem atravessando os séculos.
Mas o grande drama vivido por esse médico
francês, em sua experiência de guerra, foram, sem dúvida, aqueles três dias e
três noites passados em Sézanne, local estabelecido para ser instalado um hospital
de evacuação. Os feridos chegavam constantemente e eram colocados no pátio
perto de uma estação férrea. Não havia meios de transportes, apenas os trens de
munições e de gado, que depois de desocupados eram aproveitados na remoção dos
doentes.
O Dr. René Dumesnil fora designado para
fazer a seleção dos que estavam em condições físicas de viajar e os que eram
irrecuperáveis, isto é, ficar para ali morrer; outros que a imediata
intervenção cirúrgica lhes assegurassem alguma probabilidade de sobrevida,
enviava para o hospital improvisado ali em Sézanne, pois, o hospital já se
encontrava repleto de feridos. Fora-lhe uma tarefa das mais cruéis, cujas
páginas comovidas revelam o seu tormento, pois, os doentes compreendiam a
situação e erguiam para ele um olhar de expressão jamais esquecida,
olhar de infinito desânimo e
súplica desesperada.
Utilizava a “piedosa mentira” de que
nos ensinou o nosso imortal Miguel Couto e muitas vezes falava o linguajar das
crianças para ser também entendido. Para Dumesnil era uma vigília mais
angustiosa que um pesadelo, e diz:
Quantas vezes, nessa noite, ali
o desânimo e o pavor no olhar dos que não podiam partir, dos que meu gesto
privava do que tinha sido toda a sua esperança durante horas de agonia, mais
demoradas do que anos? Quantas vezes olhos condenados a se fechar para sempre à
luz, dirigiram-me uma súplica que me torturava?
Lá estava, escreve Dumesnil,
investido da função que maldizia porque ela me tornava mais
do que um homem e, no entanto, um homem acabrunhado pelo cumprimento de seu
inexorável dever.
E qual o dever desse médico militar? Não permitir o
embarque daqueles que não podiam suportar uma longa viagem e enviar para o
hospital de Sézanne somente os doentes estritamente recuperáveis; os demais
tinham que permanecer ali esperando o desenlace, apenas assistidos e sedados
pelos médicos. E surgia o dilema anterior e a dúvida em ter acertado os
diagnósticos, na seleção realizada, e indagava o médico francês:
Mas a minha opinião é infalível? Meus conhecimentos tão seguros
que eu possa escolher sem duvidar um instante, sem refletir?
E após injetar uma dose de morfina em um ferido
desenganado, que antes lhe suplicara para deixá-lo partir, o Dr. Dumesnil
vendo-o adormecido, faz-lhe uma confissão, cuja bela página de súplica e de
perdão, não podemos deixar de transcrever, na íntegra, pois, representa todo o
sentimento e ternura do seu coração:
Meu irmão, se me vês, se sabes que estou junto de ti,
perdoa-me a recusa que inda há pouco tive de fazer ao teu desejo mudo, teu último
desejo. Perdoa-me. Não sou um monstro; sou um homem como tu e que sofre porque
compartilha o teu sofrimento. É verdade que não suportaria martírio igual ao
teu. Comparado a ti sou um felizardo.
Meu corpo está são e salvo e se move na plenitude da vida,
enquanto os teus olhos se anuviam, a tua razão se escurece. Mas é minha razão
que esta noite me faz sofrer, é este triste poder, do qual te julgaste vítima
inocente, que me acabrunha. Ele não partiu de mim.
Outrora, quando me iniciava na arte de aliviar a dor, não
imaginava que chegasse o dia em que este saber penosamente adquirido causasse o
meu suplício pelos seus limites e pela sua impotência. Desejaria ter a certeza
de que fui para ti, esta noite, um pouco mais do que o médico do corpo e que eu
soube abrandar tua aflição moral como acalmei tua carne dilacerada. Desejaria
que tivesse sentido perto de ti, na falta da ternura materna que imploravas, a
ternura fraternal que eu te oferecia.
Compreendeste, não é assim? E levas, ao fechar os olhos para
sempre, a imagem de um amigo debruçado sobre ti, de um amigo que não conhecias,
mas que, no momento solene em que a Morte absolve de toda mentira, te deu
sinceramente o que ele tinha de melhor em si.
Dumesnil recorda que no pátio em que se aglomeravam os
feridos, duvidou poder desempenhar sozinho a tarefa de seleção, diante de tanta
súplica, desespero, dor, gemido. E naquele exato momento havia entre os
enfermeiros militares, o vigário de uma paróquia de Etampes, cujo desempenho de
seu serviço de guerra não fazia esquecer a sua missão sacerdotal. Encontrava-se
perto do médico militar e sentiu a sua angústia, seu sofrimento, suas dúvidas
em face da limitação de sua ciência de curar. Chegou-se mais perto dele e
disse-lhe:
Tu quoque sacerdos, medite... Deus docet manus tuas.
Era o que faltava na “alma do médico” René
Dumesnil, fortalecendo-o numa hora mais terrível do que o cenário de miséria e
de dor da própria guerra...
* * *
* *
*
A Província de Mato Grosso, na Guerra da
Tríplice Aliança contra o Paraguai, oferece em holocausto à Pátria, preciosas
dádivas do Serviço de Saúde das Forças Armadas do Brasil, profissionais
autênticos e heróis consagrados, cujos nomes deverão ficar eternamente em
nossos corações e, principalmente, daqueles que tombaram no cumprimento do
dever. Os heróis e mártires de Mato Grosso, se completam em nossa admiração e
reconhecimento aos demais companheiros que na frente principal da guerra no
Paraguai também foram sacrificados quando prestavam seus serviços profissionais
aos nossos soldados e marinheiros (CASTRO SOUZA, 1937).
O Chefe do Corpo de Saúde da Esquadra em
Operações no Paraguai, Cirurgião-Mor da Armada, Dr. Carlos Frederico Dos Santos
Xavier Azevedo, diz em seu precioso livro (AZEVEDO, 1870), com a autoridade do
cargo e o conhecimento ocular de quem esteve presente a todas as solicitudes da
guerra:
Foi o cirurgião militar, a par do
soldado, um dos principais protagonistas desta memorável Campanha, porque foi
este em quem o soldado e marinheiro encontravam lenitivo a seus sofrimentos,
quando, tendo por leito a relva do campo e por abrigo a fraca barraca ou o
convés do navio, era visto, dia e noite, depois de renhidos combates, ou
curando-os dos seus honrosos ferimentos, ou expondo-se, quase sempre, aos
resultados fatais de devastadoras epidemias.
Eis, a seguir, os nomes dos que merecem o
tributo da eterna gratidão da Pátria, pelo dever cumprido em defesa da
província de Mato Grosso:
W 2° Cirurgião
2° Tenente, Dr. José Cândido de Freitas e Albuquerque – valente e bravo, cuja
gloriosa morte, na Anhambhay, a 06.01.1865, representa o primeiro médico,
mártir e herói da Guerra do Paraguai;
W Capitão 1°
Cirurgião, Dr. Antônio Antunes da Luz – a primeira vítima do Serviço de Saúde
do Exército Brasileiro, aprisionado pelos paraguaios, no vapor “Marquês de
Olinda”, vindo a falecer de inanição, a 06.12.1867, depois de um cativeiro
cruel;
W Capitão 1°
Cirurgião, Dr. Teófilo Clemente Jobim – extraviado na Retirada de Corumbá e
capturado pelo inimigo e levado para o Paraguai, onde padece os horrores do
cativeiro e falece vitimado pela cólera, em fevereiro de 1868;
W Capitão 1°
Cirurgião, Dr. Benvenuto Pereira do Lago – um dos heróis da epopeia do Forte de
Coimbra e extraviado a caminho de Cuiabá, quando foi feito prisioneiro dos
paraguaios, tendo sucumbido em terras estrangeiras como autêntico mártir;
W Tenente 2°
Cirurgião, Dr. José Antônio Dourado – atuou desde o início da guerra, em Mato
Grosso, vindo a falecer por doença contraída em campanha, a 03.02.1868;
W Tenente 2°
Cirurgião, Dr. Manoel João Dos Reis – aprisionado e levado para o Paraguai,
quando enfrenta o pelotão de fuzilamento, no mês de janeiro de 1868, morrendo
como mártir e seu pensamento voltado para a Pátria, para honra do Brasil e
símbolo da medicina militar brasileira;
W Alferes
Farmacêutico Tobias Alvim Do Amaral – falecido de beribéri ao sair da Vila de
Miranda, quando viajava com licença a fim de recuperar-se na Corte [Rio de
Janeiro];
W Alferes Farmacêutico
Reginaldo José De Miranda – tombado no posto de honra na epidemia de varíola,
em Cuiabá, depois de ter atuado em várias unidades sanitárias da guarnição de
Mato Grosso, durante a guerra;
W Soldado João
Pacheco Da Costa – da Companhia de Enfermeiros na Retirada da Laguna, vitimado
no cumprimento sagrado do dever.
Estes heróis e
mártires são pela vez primeira, relacionados e proclamados, enriquecendo e
enchendo de orgulho a historiologia médica nacional, para ufania da Medicina
Militar e glória da Pátria Brasileira. [...] (SOUZA)
Bibliografia
SOUZA, Luiz de Castro. A
Medicina na Guerra do Paraguai (I a V) – Brasil – São Paulo, SP – USP,
Revista de História, 1968, 1969 e 1970.
(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de
Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor
e Colunista;
Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do
Sul (1989)
Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre
(CMPA);
Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura
do Exército (DECEx);
Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério
Militar – RS (IDMM – RS);
Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando
Militar do Sul (CMS)
Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira
(SAMBRAS);
Membro da Academia de História Militar Terrestre do
Brasil – RS (AHIMTB – RS);
Membro do Instituto de História e Tradições do Rio
Grande do Sul (IHTRGS – RS);
Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia
(ACLER – RO)
Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio
Grande do Sul (AMLERS)
Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da
Escola Superior de Guerra (ADESG).
Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
E-mail: hiramrsilva@gmail.com.
[1] Trapista:
pertencente ou relativo à ordem religiosa da Trapa. A ordem da Trapa, na
França, é uma ramificação beneditina fundada em 1140, cujos membros observam o
silêncio, praticam a contemplação e rigorosa penitência. (Francisco da Silva
Borba. Dicionário UNESP do Português Contemporâneo)
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – X
Bagé, 20.12.2024 Continuando engarupado na memória: Tribuna da Imprensa n° 3.184, Rio, RJSexta-feira, 25.10.1963 Sindicâncias do Sequestro dão e
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – VI
Silva, Bagé, 11.12.2024 Continuando engarupado na memória: Jornal do Brasil n° 224, Rio de Janeiro, RJ Quarta-feira, 25.09.1963 Lei das Selvas T
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – IV
Bagé, 06.12.2024 Continuando engarupado na memória: Jornal do Brasil n° 186, Rio de Janeiro, RJSábado, 10.08.1963 Lacerda diz na CPI que Pressõessã
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – III
Bagé, 02.12.2024 Continuando engarupado na memória: Jornal do Brasil n° 177, Rio de Janeiro, RJQuarta-feira, 31.07.1963 JB na Mira O jornalista H