Segunda-feira, 24 de julho de 2023 - 06h01
21.07.2023
Vejamos, agora, alguns quadros desta crudelíssima Campanha pela
lavra de um historiador que participou ativamente de toda Guerra do Paraguai o
General Joaquim Silveira de Azevedo Pimentel. Pimentel foi General honorário do
Exército Brasileiro, voluntário da Pátria, Cavaleiro das Ordens Militares de
Cristo e da Rosa, condecorado com as Medalhas de Bronze e Passador de Prata n°
5 do Mérito e Bravura Militares, de Prata da República Argentina, de Ferro com
Sol de Ouro do Estado Oriental do Uruguai ‒ por relevantes serviços militares
prestados na Campanha da Tríplice aliança. O Gen Pimentel como costumava dizer
o General Manuel Deodoro da Fonseca,
"fizera a guerra do Paraguai de fio a pavio". Natural de Rio
Formoso, Estado de Pernambuco, personificava as qualidades mais nobres e
audazes do Soldado Brasileiro. Diferente de outros autores que escreveram suas
obras sobre a Guerra do Paraguai no conforto e tranquilidade de seus gabinetes
ou consultando livros nas bibliotecas ele a vivenciou, percorrendo o campo de
batalha e combatendo o inimigo.
Guerra do Paraguai – Episódios Militares
General Joaquim Silveira de Azevedo Pimentel
Tipografia à Vapor A. dos Santos, 1887
XIX
A Nudez
A 31 de maio de 1869, partiu no Piraiú, com uma Força de
Cavalaria e quatro bocas de fogo, o Brigadeiro João Manoel Menna Barreto [de
saudosa e gloriosa memória], para o Sudoeste da República, por Ibitimi até Vila
Rica, a fim de ir libertar naquela direção militares de famílias paraguaias,
que pediam com instância o socorro dos brasileiros que as livrasse das garras
do ditador, cuja perversidade se tornara crescentemente assombrosa.
Seguiu essa coluna, destruindo em sua passagem toda a
resistência que o inimigo tentou opor-lhe, incendiou a fábrica de pólvora do
Ibicuri e, chegando à Vila Rica, daí voltou conduzindo e protegendo as famílias
que não imploraram debalde nosso auxílio e apoio. Deixemos falar o Diário do
Exército [página 26], do Comando-Chefe do Sr. Conde d’Eu:
Dia 10 [junho de 1869].
[...] o General João Manoel
anunciava a sua chegada a Paraguarí às seis horas da tarde daquele dia, depois
de ter-se visto obrigado a lutar com os paraguaios, cujo esforço principal
fora isolar a coluna da frente da de sua retaguarda, que trazia marcha muito
demorada em consequência de grande acompanhamento de mulheres e crianças [...]
Dia 11.
Sua Alteza foi pela manhã até
Paraguarí, a três e meia léguas de distância, e encontrou a Força do General
João Manoel, que saía daquele povoado precedida de uma coluna de velhos,
mulheres e crianças, em número de mais de 4.000 pessoas, cujo aspecto indicava
os últimos limites da desgraça e dos padecimentos. Às 3 horas da tarde, essa
gente magra, nua, raquítica, curvada ao peso de longa tirania, acabrunhada pela
fome de muitos meses, entrava no acampamento de Piraiú. Todos mostravam intensa
alegria por ver enfim terminado um tempo de sofrimentos inaturáveis, que já
haviam feito sucumbir muitos milhares dentre eles, tempo marcado pela nudez que
os fazia cobrir-se de tiras de couro e pela fome que os impelia a comer frutas
azedas, porque o despotismo do Chefe da Nação proibia-lhes a matança do gado e
até a colheita de laranjas doces.
O que sobremodo compungiu o
caráter brasileiro foi a nudez total, absoluta, das desgraçadas mulheres.
Dentre elas destacavam-se donzelas, senhoras da melhor e mais aristocrática
sociedade do Paraguai, formas de uma pureza e correção ideais, que, ao cruzarem
o olhar com os nossos oficiais e soldados, subia-lhes ao rosto o rubor do pejo
de tal modo, que prontamente acudiram-nos aos olhos lágrimas de sincera
comiseração. Ao desfilar o cortejo da nudez feminina, acendeu-se no coração de
todos uma ideia idêntica e gerou-se em todos os Pensamentos uma palavra só:
‒ Camisas!
Rápidos nas boas obras, como na compreensão de seus deveres
militares, soldados e oficiais mergulharam prontamente em suas barracas.
Aqueles, das mochilas, e estes das macas, arrancavam, pressurosos, camisas e
lençóis. Nesse instante o espetáculo da nudez desapareceu da vista dos
libertadores. Atiravam-se camisas por cima das senhoras e donzelas, e
transformou-se a procissão numa espécie de irmandade de capas brancas,
respeitável pelo número de confrades. Coisa admirável! Ninguém riu daquele
grotesco cortejo! As senhoras, que agora viam-se protegidas pelo natural pudor,
até aquele momento expostos às vistas gerais, ergueram gentilmente suas cabeças
agradecidas e murmuraram reconhecidas:
‒ Deus lhes pague, generosos “inimigos”!
Nesse dia a alegria no acampamento foi completa. As
mochilas, porém, dos soldados e as macas dos oficiais só ficaram possuindo
meias e lenços; tudo o mais fora distribuído.
‒ Eis o que se chama, dizia um
Cadete muito feio a um colega ‒ despir um santo para cobrir outro.
‒ Enganas-te, amigo.
‒ Devias dizer: despir um diabo
para cobrir um anjo!
Referia-se o Cadete ao fato de ter tido aquele a ventura de
pôr sobre os ombros de uma beleza paraguaia sua alva camisa de algodão.
(PIMENTEL)
XXII
O Requinte da Audácia
(Audaces fortuna juvat [1])
Um dos episódios mais belos e talvez mais românticos que
antes parece lenda medieval, acha-se ao abrir o Diário do Exército do tempo do
comando do Sr. Conde d’Eu.
É para lamentar que esse magnífico repositório de
esplendorosos feitos tivesse uma edição resumida, e que bem pouca gente possua
o conhecimento de tão útil publicação. A maneira singela com que ali se referem
os fatos é sua melhor recomendação. Portanto, limitemo-nos a copiar “ipsis verbis” ([2])
tudo quanto nos vai dar um dos mais belos fatos da grande Campanha que nos tem
fornecido matéria para estes artigos, e que no futuro há de fazer pasmar a quem
dela tiver conhecimento. Aí vai a transcrição:
22 de dezembro de 1869.
O Tenente-Coronel Antonio José de
Moura partiu com destino ao passo Espadim no rio Iguatemi, à frente de 50
praças de cavalaria bem montadas. O ardente desejo de salvar sua família o leva
a essa arriscada empresa, para a qual conseguiu finalmente licença do Sr. Conde
d’Eu.
Interrompamos, por um pouco, a transcrição. O
Tenente-Coronel Moura tinha no Espadim, lugar destinado aos desterrados de
López que haviam de ser trucidados depois, uma irmã com duas filhas. Essa
senhora, natural do Rio Grande do Sul, casara-se com um português morador em
Vila Rica, no tempo de López pai; e depois da morte do marido continuou a
permanecer naquela vila, até que por ordem do ditador foi arrancada de sua
habitação e, depois de longas marchas, atirada no degredo de Ilhu, e ainda
posteriormente no de Iguatemi.
Ao saber o distinto oficial que
sua irmã e sobrinhas estavam ameaçadas de morte certa, pediu licença, implorou
ao General-Chefe que o deixasse ir em socorro da família.
O Conde d’Eu negou-a diante do
perigo da empresa, mas Moura insistiu com tenacidade. Aquela energia, e força
de vontade, aquele desejo veemente de salvar a família, acabou por vencer. O
General-Chefe tinha coração e também gozava da ventura de ser chefe de família
Cedeu. Moura escolheu 50 amigos e partiu. Continuemos a transcrição:
Janeiro de 1870 – Dia 1.
O Tenente-Coronel Antonio José de Moura deu uma
circunstanciada e curiosa parte, datada de 29 do mês próximo passado, de sua
memorável expedição ao rio Iguatemi a fim de ir salvar as famílias destinadas
a perecer de fome no acampamento do passo Espadim.
No dia 22 de dezembro último,
saíra ele, às 10 horas da manhã, do passo do rio Curuguati, junto ao qual
estava acampado. Levava 50 homens de cavalaria bem montados e melhor dispostos
ainda. Na madrugada de 23, chegou ao rio Jejuí-Guaçu, cuja transposição lhe
tomou bastante tempo por ser a corrente profunda e de grande força d’água,
entretanto, nesse mesmo dia alcançou a Vila de Iguatemi, onde deixou dez homens
de observarão com um inferior e pôde seguir além.
Depois de
pequeno alto de descanso, caminhou toda a noite e, às 8½ horas do dia 24,
chegou à base da grande serra de Maracaju, cuja subida era preciso vencer para
ganhar o chapadão em que correm o Escopil e o Iguatemi, confluentes do Paraná. Essa
subida era abrupta e além disso pejada com grandes pedras e grossos madeiros
atravessados. Com seis homens atirou-se Moura à obra e, ora cortando mata
entrançada, ora esgueirando-se por entre galhos caídos, atingiu, com uma légua
de penosa ascensão, o planalto.
Aí existira uma guarda.
Contudo, o rancho achava-se abandonado, ou melhor, ocupado, não mais por soldados,
mas sim por mulheres que fugidas de Espadim, haviam parado, baldas de forças,
uma delas já moribunda. Duas eram espanholas, as outras paraguaias. Estavam de
viagem havia 6 dias, tendo 4 dias antes sido encontradas por espiões partidos
de Panadero, os quais aceitaram a desculpa de que vinham buscar laranjas azedas
([3])
e a promessa de que voltariam logo para o acampamento. O Tenente-Coronel
procurou então desentulhar o caminho para fazer subir a sua gente, mas a
princípio nada conseguiu.
Por isso despachou duas
paraguaias para que fossem ao Espadim e de lá viessem guiando as suas companheiras
de infortúnio até aquele ponto. Partiram elas; decorreram algumas horas e a
impaciência deu forças novas aos que esperavam.
Tentando ainda uma vez
descobrir a subida, conseguiram abrir sinuosa trilha por onde passaram 20
homens a cavalo. Vinte outros ficaram de proteção na base; sentinelas
destacadas no deserto, tão valentes como os valentes que buscavam o desconhecido.
Ficou comandando o Alferes Francisco Carvalho de Moura.
O Tenente-Coronel Moura caminhou três léguas em terreno
plano até chegar a um cruzamento de estradas, das quais a mais batida era a da
esquerda e foi por ele seguida na distância de duas léguas. Parou então. Essa
estrada levava a Panadero, e como sinais incontestáveis jaziam cadáveres de
mulheres, homens, crianças e velhos que dias antes tinham sido degolados.
O Tenente-Coronel retrocedeu e, depois de deixar quinze
homens na encruzilhada, seguiu com cinco praças pela outra estrada, se bem que
a noite já estivesse bastante adiantada. Depois de certo tempo de marcha, dois
cavalos afrouxaram, e os soldados que os montavam tiveram que apear-se e os ir
tocando por diante.
Afinal, às 11 horas e meia, encontrou Moura três ranchos
atopetados de famílias, mulheres e crianças, acocoradas ao redor de grandes
fogueiras. O abalo que essa desgraçada gente recebeu foi imenso; umas desatavam
em pranto ruidoso, outras fugiam espavoridas e corriam sem direção; a maior
parte, agrupada ao redor dos brasileiros, os abraçava e os aclamava!
Informaram que o acampamento distava ainda uma légua e duas
delas serviram logo de vaqueanas ([4]).
A uma hora da madrugada chegou Moura à barraca do arroio Espadim, do outro lado
do qual estava o acampamento das exiladas, sete léguas distante do cume da
serra. Foram despachadas as duas mulheres e, com suas três praças, ([5])
atravessou o intrépido rio-grandense o arroio sobre o grosso madeiro que fazia
de pinguela. Entrava enfim nesse local, em que já haviam perecido centenas de
infelizes, depois de cruel martírio.
Aí
tinham-se passado cenas curiosas. As mulheres, enviadas do alto da serra,
cumprindo com pontualidade a sua comissão, haviam procurado as duas sobrinhas
do Tenente-Coronel Moura e anunciado a sua próxima chegada, dando a ele o nome
de Antônio Guimarães nome que, por coincidência singular, era também o de um
parente delas.
A notícia
da vinda dos brasileiros circulou logo, confirmando o dito de um índio Caiuá,
que de manhã viera espontaneamente trazê-las ao acampamento. Entretanto, as
desgraçadas mulheres acreditaram mais num embuste para melhor perdê-las, como
costumava ordenar o tirano Solano López, do que na possibilidade da verdade, e
convenceram-se disso vendo chegar, às 8 horas da noite, dois espiões
paraguaios.
Esses homens, demorando-se até uma hora da madrugada,
presenciaram a chegada das outras duas mulheres que precediam o Tenente-Coronel
Moura e que imediatamente produziram grande agitação no arranchamento, gritando
que aí vinham os brasileiros.
Presas, interrogadas, iam ser elas degoladas, quando
penetraram na palhoça os salvadores que incontinenti mataram os dois espiões.
A alegria que demonstraram as destinadas ([6])
foi indescritível. Mulheres, com fachos acesos, corriam de um lado para outro
dando gritos descompassados; muitas caíram em delíquio ([7]);
outras expiraram de emoção e por todos aqueles pontos erguiam-se preces e
cânticos de grupos que, ajoelhados, agradeciam a Deus a sua providencial
salvação. O resto da noite passou-se assim.
As 4 horas da madrugada de 25, Moura reuniu 1.200 dessas
mulheres e as dividiu em terços que deviam caminhar a certa distância um dos
outros. A precipitação, porém, em sair daquele horrível lugar foi tal, que
pinguela cedeu ao peso de muitas que queriam passar e entregou às águas velozes
do Espadim, as mais apressadas.
Consertada a passagem, saíram todas e encetaram marchas
forçadas que as trouxeram até Iguatemi, ficando, porém, de fraqueza e desânimo
estendidas pelo caminho mais de metade. Entraram, pois, em Curuguati
quatrocentas e tantas. É de crer, contudo, que muitas ainda possam vir se
arrastando.
A irmã do Tenente-Coronel Moura havia falecido quatro dias
antes da chegada deste ao Espadim, deixando duas filhas já núbeis ([8])
que puderam ser salvas. Tal foi a expedição do impertérrito ([9])
Tenente-Coronel Antonio José de Moura. (PIMENTEL) (Continua...)
Bibliografia
PIMENTEL,
Joaquim Silvério de Azevedo. Episódios
Militares – Brasil – Rio de Janeiro, RJ – Editor Tipografia a Vapor A. dos
Santos, 1887.
(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de
Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor
e Colunista;
Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do
Sul (1989)
Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre
(CMPA);
Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura
do Exército (DECEx);
Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério
Militar – RS (IDMM – RS);
Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando
Militar do Sul (CMS)
Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia
Brasileira (SAMBRAS);
Membro da Academia de História Militar Terrestre do
Brasil – RS (AHIMTB – RS);
Membro do Instituto de História e Tradições do Rio
Grande do Sul (IHTRGS – RS);
Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia
(ACLER – RO)
Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio
Grande do Sul (AMLERS)
Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da
Escola Superior de Guerra (ADESG).
Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
E-mail: hiramrsilva@gmail.com.
[1] Adaptado de um verso da Eneida de Virgílio – significa
literalmente “a sorte sorri para os
audaciosos”. (Hiram Reis)
[2] “Ipsis verbis”: com as
mesmas palavras. (Hiram Reis)
[3] Laranjas azedas: as doces eram proibidas, porque estavam
reservadas somente para o exército! (PIMENTEL)
[4] Vaqueanas: guias. (PIMENTEL)
[5] Com suas três praças: parece fabuloso! (PIMENTEL)
[6] Destinadas: na linguagem oficial de Solano López, queria dizer –
condenadas a morrer de fome ou degoladas. (PIMENTEL)
[7] Delíquio: chiliques. (Hiram Reis)
[8] Núbeis: em idade de casar. (Hiram Reis)
[9] Impertérrito: destemido, impávido. (Hiram Reis)
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – X
Bagé, 20.12.2024 Continuando engarupado na memória: Tribuna da Imprensa n° 3.184, Rio, RJSexta-feira, 25.10.1963 Sindicâncias do Sequestro dão e
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – VI
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Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – IV
Bagé, 06.12.2024 Continuando engarupado na memória: Jornal do Brasil n° 186, Rio de Janeiro, RJSábado, 10.08.1963 Lacerda diz na CPI que Pressõessã
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – III
Bagé, 02.12.2024 Continuando engarupado na memória: Jornal do Brasil n° 177, Rio de Janeiro, RJQuarta-feira, 31.07.1963 JB na Mira O jornalista H