Quarta-feira, 26 de julho de 2023 - 11h41
Bagé, 26.07.2023
Dionísio Evangelista de Castro
Cerqueira
O Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do
Brasil, da Fundação Getúlio Vargas apresenta-nos o próximo historiador, que foi
como soldado para a Guerra do Paraguai e de lá retornou como Tenente.
Dionísio Evangelista de Castro
Cerqueira nasceu na vila de Curralinho, atual município de Castro Alves (BA),
no dia 02.04.1847, filho de Antônio Cerqueira Pinto e de Ana Fausta dos Santos
Castro. [...] Após as primeiras letras, fez o curso de humanidades no antigo
Colégio 2 de Julho em Salvador. Seguiu depois para o Rio de Janeiro, então
capital do Império, a fim de ingressar na Escola Central e cursar engenharia.
Estava já no segundo ano do curso quando teve início a Guerra do Paraguai
[1864-1870].
Seguindo o exemplo de antepassados, alistou-se como
voluntário em 1865, aos 17 anos, e a 5 de fevereiro seguiu para juntar-se às
forças que combatiam em Montevidéu. Teve parte destacada em todas as grandes
batalhas então travadas. Por sua participação na Jornada do Estabelecimento,
foi feito cavaleiro da Ordem da Rosa. Na batalha do Chaco, “por denodo e bravura”, foi citado pelo
imperador. Em Angustura, foi louvado por “excessiva
coragem”. Na Batalha de Lomas Valentinas, onde foi ferido gravemente,
conquistou a medalha do Mérito Militar.
Pela parte que tomou nos
combates de maio de 1868 e nos das Cordilheiras, foi elevado a oficial da Ordem
da Rosa. Por conta de atos de heroísmo e bravura nos combates de Sapucaí e
Peribebuí, em 1869, e Campo Grande, em 1870, foi elogiado pelo chefe do
Exército, o conde D’Eu, por:
Haver concorrido com os triunfos
alcançados em prol da honra e da segurança do Brasil.
Foi então
promovido a primeiro-tenente por atos de bravura.
De volta ao
Rio de Janeiro desde o fim da guerra, matriculou-se na Escola Militar. Foi
promovido a capitão em 1872 e conquistou, em 1874, os títulos de engenheiro
militar e civil e bacharel em ciências e matemáticas. [...]
Em agosto de
1890, após ser promovido a coronel, foi nomeado comandante da Escola Militar de
Porto Alegre, com a missão de serenar os ânimos dos alunos que se encontravam
exaltados com os acontecimentos políticos, tarefa na qual já haviam falhado
outros oficiais de patente superior.
Apelando
para o espírito patriótico e a disciplina militar dos alunos, conseguiu obter
sua confiança. [...]
Quando, em 3
de novembro seguinte, o marechal Deodoro da Fonseca deu o golpe de Estado em
que dissolveu o Congresso Nacional, protestou contra tal ato e, embora
estivesse prestes a ser promovido a general, pediu sua passagem para a reserva.
O Marechal Deodoro, ignorando
seu protesto, nomeou-o quartel-mestre general do Exército, cargo de alta
confiança, ao que respondeu com o pedido de reforma. Tendo seu pedido atendido
por decerto de 12 do mesmo mês, deixou o serviço ativo do Exército no posto de General
de Brigada.
Reminiscências da Campanha do Paraguai
Dionísio
Evangelista de Castro Cerqueira
Biblioteca
do Exército, 1980
XI
A Imprensa de López
[...] Era curioso ler o Boletim
do Exército, de López, noticiando a vitória dos seus soldados, que tomaram as
nossas posições e aniquilaram completamente os covardes e escravos brasileiro,
que, ajoelhados e de mãos postas lhes pediam misericórdia, dizendo que também
eram paraguaios. Os canhões de grosso calibre da nossa esquadra já haviam
desmantelado o pequeno Forte de Itapiru e as nossas granadas explodiam
frequentemente no meio dos quartéis das Forças do Ditador, no Passo da Pátria,
onde ele se sentia pouco seguro e já não tinha desejo de nos esperar.
Para exaltar o espírito dos
seus soldados, cuja valentia, obediência e abnegação dispensavam aliás
estímulos, López, nos mandava injuriar pela sua imprensa. O “Boletim del Ejercito”, “O Semanario” e o “Cabichuí” ficaram, de sobejo, nossos conhecidos.
Às vezes, sem sabermos como, apareciam exemplares, cobertos de injúrias aos
aliados, nos nossos acampamentos. De alguns sabíamos as origens: eram os
encontrados nos bolsos dos mortos e feridos. Os outros haviam sido deixados,
provavelmente, pelos espiões, que não eram raros e passavam facilmente por
orientais no acampamento argentino, por argentinos no oriental, e por orientais
ou argentinos no brasileiro.
Nas suas insultuosas publicações todos nós das três
potências aliadas, éramos tratados de covardes e tudo o que há pior. Muitos
anos depois, durante a revolta de 1893, vi com desgosto que alguns dos nossos
chefes pareciam ter aprendido as más lições de López, lançando as mesmas
injúrias aos adversários, em suas partes de combate. Não sei que glória há em
triunfar de um inimigo covarde. Os japoneses exaltaram-se, exaltando a coragem
dos russos na última guerra.
O pequeno periódico ilustrado “Cabichuí” [maribondo caboclo] tinha às vezes, pilhérias muito
insulsas; outras, bastante picantes como as suas ferretoadas. Os nossos
generais eram representados por lentas tartarugas, arrastando a custo, pesadas
espadas; um macaco, de barbas grandes com uma coroa na cabeça, figurava o
Imperador.
Dava-nos nome de “cambaí” o que significava macaco. Até o
nosso balão cativo, destinado a reconhecimentos, não escapou à veia humorística
do Gavarni ([1])
guarani, que o pintava agarrado nas costas de um cágado. Definiu, uma vez, os
aliados na seguinte sentença, cuja injustiça dispensa comentários:
Orientales... general sin ejercito:
Brasileros... ejercito sin general:
Argentinos... ni general-ni ejercito!!! […]
(CERQUEIRA)
XXIV
Rendição da Guarnição de Humaitá
Pobre Dona Juliana
[...] Nesse dia, 5 de agosto,
que foi o último da luta encarniçada, o Cel Martinez rendeu-se com todos os
valentes companheiros. Recebemo-los como mereciam. Tratamo-los o melhor
possível. Conversávamos com eles, como camaradas. Não se via nas fissionomias
da nossa gente, um vislumbre de ódio. Comovia-nos a desgraça daqueles
centenares de bravos. Para que negá-lo? Olhava-os com simpatia, porque lhes
conhecia a bravura. Cumpriam o mais sagrado dos deveres, defendendo a sua
Pátria invadida; mereciam, portanto, o respeito dos que sabiam também amar a
terra em que nasceram. O tratamento, que demos durante a guerra aos nossos
prisioneiros, devia ter feito nascer em seus corações sentimentos de afeto e
de gratidão para nós, os seus vencedores. Por isso, quando contavam, no
Paraguai, as atrocidades praticadas por legalistas e rebeldes na última guerra
civil que ensanguentou o solo brasileiro, ninguém lá acreditava. Todos
protestavam, dizendo:
Não é possível. Os
brasileiros não são cruéis ‒ não podem degolar os seus irmãos. Nós conhecemos
sobejamente a bondade da sua alma; tudo isso que dizem é falso.
É que as guerras civis são mais cheias de ódio. Depois da
visita ao campo dos prisioneiros, que foram logo mandados para Humaitá, fomos
ver as suas fortificações no longo albardão. A memória estremece ao recordar
aquele quadro, horrorosamente pungente. Nas proximidades das trincheiras,
tropeçávamos nos cadáveres inchados e disformes dos nossos camaradas, que
caíram no assalto inútil de 28 de junho. No fosso, havia alguns em decomposição
adiantada, cobertos por nuvens de moscas, que esvoaçavam em roda macabra, num
zumbido atordoador. Com os braços pendidos para dentro, a cabeça na crista,
rachada de meio a meio e o corpo agarrado ao parapeito, por um prodígio de
equilíbrio, vimos um soldado do 5°.
Foi um valente que ali tombou para sempre, e cujo nome
nenhum de nós conhecia. Descobrimo-nos diante daquele montão de carne
putrefata, que ia, em poucas horas, adubar ainda mais aquela terra
prodigiosamente fértil. O nosso olhar de admiração foi a única homenagem que
tiveram aqueles heróis, tão humildes e, por isso mesmo, grandes. No recinto,
que cenário! Homens e mulheres, velhos e crianças em pedaços, com olhos
vazados, lábios arrancados, pernas e braços dilacerados, crânios furados com os
miolos de fora, os ferimentos mais horríveis e a gangrena enegrecendo os bordos
estiomenados e purulentos.
Uns, deitados no chão úmido sem uma rama sequer; outros, os menos
mutilados, encostados a troncos de árvores. O valente Cel Martinez, que,
resistira duas semanas e capitulara com honra, estava exausto.
Era um belo homem, o porte
varonil, alto e louro e se parecia com o outro Martinez, que perdemos no dia 18
e que, morrendo, sofreu menos, certamente do que ele. Diziam que sua esposa,
dona Juliana, era um tipo de graça e de beleza; e muito amada.
Contaram-nos que o Ditador ao
receber a notícia da rendição mandou buscá-la presa, e expô-la em plena nudez à
soldadesca brutal, e lhe infligiu com ferocidade os mais cruéis vilipêndios.
Não saciada sua sanha, o imaníssimo tirano mandou que verdugos armados de azorragues
flagelassem a mesquinha.
As brancas carnes avergoadas a
princípio, tingiram-se de vermelho e saltaram laceradas em pedaços sangrentos
aos golpes bravios, até findar-se a agonia da desgraçada num estertor do mais
acerbo sofrimento. “El supremo”
vingara-se, na dedicada esposa inocente, das páginas de glória escritas pelo
marido na história da sua Pátria.
Nada mais nos detinha no
segundo Chaco. Deixamo-lo na primeira década de agosto e reunimo-nos ao grande
exército que estava prestes a marchar para o Norte, onde López nos esperava na
margem direita da Tebiquari.
Durante os três meses que vivemos em Andaí, pouco dormi ‒
fui sobrerronda do Batalhão. O Tibúrcio ordenou-me que rondasse as sentinelas,
as prontidões; as patrulhas, as rondas e responsabilizou-me pelo que pudesse
acontecer. Passei as noites todas de espada à cinta, ora em palestra com
camaradas de serviço, ora correndo as trincheiras e o abarracamento ou indo às
avançadas, quando se ouvia um tiro. Raras vezes recostei-me na rede da remada e
sentia-me orgulhoso e feliz com a confiança do meu comandante. (CERQUEIRA)
XXV
Traidores da Pátria – San Fernando
[...] Quando o 16°, depois de ganhar a margem direita,
seguia em busca de um lugar onde abarracar, sentimos um cheiro nauseabundo de
matadouro, que a cada passo se tornava mais intenso.
Urubus negros e camirangas com as pontas das asas
esbranquiçadas, revoavam em círculo, disputando a posse de pedaços de carniça.
A medida que acercávamos, eram mais numerosos; já não se levantavam em bandos;
pareciam mais mansos ou fazer pouco caso de nós; olhavam-nos curiosos,
ensaiavam curtas carreiras abrindo as asas largas, e davam pulos, crocitando.
Mais adiante... que quadro! Ainda hoje enche-se de assombro a
minha memória ao relembrá-lo.
O trágico pincel do próprio Ribera tremeria ao copiá-lo.
Tínhamos perto uma vala imensa, atopetada de cadáveres denegridos pela
podridão, moços e velhos, todos nus com ferimentos medonhos de lança, de bala,
de faca. As gargantas cortadas, cobertas de varejeiras, os peitos largamente
fendidos e restos dos intestinos, que os urubus já tinham arrancado.
Todos imensamente inchados. Um ou outro com os olhos
esbugalhados, quase todos só com as órbitas, que os abutres cavaram. Como
aquela, havia outras valas, perto de um laranjal; e descobertas todas. Cada uma
tinha na ponta de uma vara fincada numa garganta ou numa boca o letreiro: “Traidores à la Pátria”. Não era possível
contar os cadáveres. Estavam empilhados em desordem.
Havia centenares. Parecia terem sido trucidados ali mesmo, à
beira das enormes sepulturas.
O chão, em derredor, tinha ainda os sinais do sangue
derramado. Paraguaios que estavam conosco, disseram-nos os nomes de alguns
supliciados, que formavam o escol da alta sociedade do seu país.
Ali estavam o Ministro das Relações Exteriores José Berges,
o General Bruguez, homens de Estado, jurisconsultos, políticos, sacerdotes de
alta hierarquia, generais e o que o Paraguai tinha de mais conspícuo.
Parentes e amigos dedicados “del Supremo” jaziam naquelas covas, de propósito descobertas, para
que nós os víssemos bem. O pretexto para aquela matança espantosa foi uma
conspiração, que o cérebro do Nero fantasiou para se libertar dos que ainda
podiam julgar os seus grandes crimes naquela terra flagelada pela desgraça. Foi
curta a nossa demora em San Fernando. [...] (CERQUEIRA)
XXXII
Marcha para Arecutaguá
Segui com o Batalhão para o rio
Manduvirá, pelo qual haviam entrado alguns meses antes navios de pequeno calado
da nossa esquadra, sob as ordens do bravo Jerônimo Gonçalves. O Ditador, depois
dos últimos combates, mandou incendiar os seus seis últimos navios fatalmente
condenados a cair em nosso poder e que estavam refugiados nesse rio.
Em nossa marcha, que foi longa, atravessamos pequenos
campestres, grandes banhados e bosques. Os tempos estavam mudados: o inimigo
batia em retirada precipitada por outros caminhos, perseguido por outras forças
e já não receávamos vê-lo surgir na nossa frente.
A cada passo, nessas marchas tétricas dos últimos tempos da
guerra terrível, encontrávamos nas voltas do caminho, na lama das estradas, na
margem dos riachos ou nas alpondras cobertas de musgo dos seus leitos
marulhosos, refrescando os pés doridos nas águas frias, na ourela sombria da
mata ou no meio do areal que abrasava, mulheres magras e macilentas, com os
traços da beleza quase apagados, cobertas de andrajos, às vezes de seda, com
arrecadas de ouro cinzelado incrustados de crisólitas nas orelhas pálidas,
estendendo-nos suplicantes as mãos descarnadas cheias, não raro, de anéis com
muitas voltas, implorando esmola de um punhado de farinha ou de um pedaço de
carne para lhes matar a fome.
Mais além, criancinhas esqueléticas sugando sem força os
seios murchos e secos das mães agonizantes. Adiante meninos nus, amarelos,
barrigudos, com as costelinhas à mostra, olhando-nos espantados.
Transidos de terror ou sorrindo-nos medrosos a nós, que perseguíamos nessas marchas de tormentos, seus pais, seus avós, e seus irmãos. Oh! a guerra! Quanta dor naquela terra! Quanta lágrima na nossa pátria. Quantos soluços abafados pelos hinos da vitória! (CERQUEIRA)
Bibliografia
CERQUEIRA,
Dionísio. Reminiscências da Campanha do
Paraguai – Brasil – Rio de Janeiro, RJ – Biblioteca do Exército Editora,
1980.
(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de
Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor
e Colunista;
Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do
Sul (1989)
Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre
(CMPA);
Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura
do Exército (DECEx);
Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério
Militar – RS (IDMM – RS);
Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando
Militar do Sul (CMS)
Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira
(SAMBRAS);
Membro da Academia de História Militar Terrestre do
Brasil – RS (AHIMTB – RS);
Membro do Instituto de História e Tradições do Rio
Grande do Sul (IHTRGS – RS);
Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia
(ACLER – RO)
Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio
Grande do Sul (AMLERS)
Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da
Escola Superior de Guerra (ADESG).
Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
E-mail: hiramrsilva@gmail.com.
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – X
Bagé, 20.12.2024 Continuando engarupado na memória: Tribuna da Imprensa n° 3.184, Rio, RJSexta-feira, 25.10.1963 Sindicâncias do Sequestro dão e
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – VI
Silva, Bagé, 11.12.2024 Continuando engarupado na memória: Jornal do Brasil n° 224, Rio de Janeiro, RJ Quarta-feira, 25.09.1963 Lei das Selvas T
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – IV
Bagé, 06.12.2024 Continuando engarupado na memória: Jornal do Brasil n° 186, Rio de Janeiro, RJSábado, 10.08.1963 Lacerda diz na CPI que Pressõessã
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – III
Bagé, 02.12.2024 Continuando engarupado na memória: Jornal do Brasil n° 177, Rio de Janeiro, RJQuarta-feira, 31.07.1963 JB na Mira O jornalista H