Sexta-feira, 28 de julho de 2023 - 06h05
Bagé, 28.07.2023
A têmpera dos heróis anônimos da Retirada da Laguna forjada na caserna e
aperfeiçoada nos desafios impostos pela carreira das armas aproxima estes seres
dos deuses das guerras e povoa o imaginário dos pueris mortais. Os heróis são
homens de coragem, homens capazes de se imolar por uma causa; não são homens
comuns. Vamos reproduzir, a seguir, a biografia de um deles publicada na Revista
Trimestral do Instituto Histórico e Geográfico do Brasil – Tomo LVI – Parte
Segunda, editada em 1893, de autoria do Visconde de Taunay.
Apontamentos Biográficos
I
Filho legítimo de Gonçalo Garcia dos Reis nasceu
Antônio Florêncio Pereira do Lago no dia 10.05.1825. Dá a sua fé de ofício o
ano de 1827, sem indicar o mês; mas a outra data é a autêntica, por testemunho
próprio muitas vezes confirmado.
Foi-lhe berço a então Província do Rio
Grande do Norte, em lugarejo ou sítio próximo, salvo engano, à cidade de
Mossoró. Após grandes dificuldades de vida na sua meninice e adolescência,
chegado à idade de 18 anos, tomou por si a resolução de jurar bandeiras no
exército e assentar praça de Soldado, o que realizou a 21.08.1843 e, incluído
no depósito de recrutas, foi logo promovido a Cabo de Esquadra, sem dúvida por
saber ler e escrever, mais ou menos corretamente.
Transferido para o Rio de Janeiro e
classificado no 1° Batalhão de Fuzileiros, mereceu sucessivos acessos, na
classe dos oficiais inferiores, aos postos de Furriel a 22.06.1846 e, menos de
dois meses depois, a 08.08.1846, de 2° Sargento pelo comportamento exemplar,
pelos hábitos de cuidadosa disciplina e ótimo desempenho de todas as suas
obrigações. Sempre igual e digno, mas sem arrogância, retraído, fugindo por
instinto das más rodas, com tendências à melancolia despida de agruras e
displicência, amigo do silêncio, trazendo os seus papéis e mapas diários em
muita ordem, correto e justiceiro na sua esfera de mando, não tardou a granjear
a estima e o respeito dos Soldados e a confiança dos Superiores, em cujo
contato mais imediatamente se achava. Conta-se, que nesse tempo de penosa
iniciação militar, consigo mesmo estudava rudimentos de francês e aritmética,
quando fazia o serviço de ordenança, levando constantemente na cartucheira um
livro, em que concentrava todos os esforços, mal tinha qualquer momento de
lazer e folga. Que admirável exemplo e que proveitosa força de vontade!
Habilitando-se assim, a pouco e pouco, nos preparatórios [e quanta energia para
isso não se fazia precisa!] após quase seis anos de trabalho à formiga,
assíduo, sem descanso e cada vez mais duro e complicado, conseguiu afinal o seu
ardente objetivo, tendo, por Aviso do Ministério da Guerra de 08.01.1849,
licença para estudar na Escola Militar o curso da arma a que pertencia e
matriculando-se no primeiro ano, a 13.03.1849. Estava vencida a parte mais
árdua e dolorosamente severa da sua existência, a tentar afanosamente
libertar-se das sombras da ignorância e sair do círculo de inferioridade
social, em que tanto se debatera e contra o qual desde o princípio se rebelara
o seu espírito nobremente ambicioso. Não lhe foram, contudo, imediatamente
proveitosos esse grande favor e primeiro sorriso da sorte.
Dispensado do serviço militar a fim de
cursar as aulas, mas não podendo manter-se sobre si com os mais que escassos
recursos pecuniários de que dispunha, teve que engajar-se por mais seis anos,
muito embora a posição de simples Soldado Raso lhe trouxesse como aluno não
poucos atritos desagradáveis e até pungentes com os companheiros de estudos, no
geral Cadetes e Praças de posse de privilégios e regalias, que não lhe era dado
gozar.
Voltou, pois, à vida dos quartéis e,
transferido para o 13° de Infantaria, embarcou com destino ao Rio Grande do Sul,
de onde seguiu a tomar parte na rápida e gloriosa campanha do Uruguai terminada
a 04.06.1852, uma vez derrubado do poder na Batalha de Monte Caseros, a 03 de
fevereiro desse ano, o ditador D. Juan Manuel de Rosas.
Apesar dos hábitos de absoluta e susceptível reserva
que sempre mantinha acerca dos primeiros e dificílimos períodos da sua
carreira, de vez em quando se referia ainda com angústia aos muitos sofrimentos
suportados naquela campanha, obrigado como fora a marchar dia e noite, de pés
no chão, por sóis ardentes com pesada arma ao ombro e enorme mochila às costas.
Entrou no combate, ou antes, na escaramuça
de Canelones e mereceu elogios pela firmeza com que levou a sua Companhia ao
fogo. Em 1853, vemo-lo de novo na Escola Militar, pedindo fossem averbadas as
notas de habilitação em Aritmética, Geografia, Gramática e Francês e
apresentando, afinal, a 24 de dezembro, atestado de haver sido aprovado
plenamente no 1° ano do curso. Matriculado no 2°, seguiu, em janeiro de 1855,
para a capital do Império e, tendo ali prestado com êxito os respectivos
exames, foi, por decreto de 14 de abril, promovido ao posto de Alferes de
infantaria.
Pequena e bem modesta era sem dúvida a
posição alcançada aos 30 anos de idade, quando muitos outros mais felizes vão
palmilhando brilhante estrada no mundo ou até já atingiram as culminações
sociais, coroados dos louros de fácil triunfo; mas, assim mesmo, quanto caminho
vencido, quanto obstáculo superado por aquele pobre filho de pequena e
longínqua Província, desprotegido de todos e que só podia e devia contar
consigo mesmo!
Em contraposição, porém àqueles afortunados
do destino, quantos, nas condições de Pereira do Lago não teriam e não terão
desanimado de vez nos primeiros degraus da desanimadora escada a galgar, afundando-se
irremediavelmente nas trevas, de que haviam querido um dia emergir?
E a sua promoção a deveu ele ao ilustre Duque de Caxias
então Ministro da Guerra, a cujos olhares, atenção e sagacidade de ilustre
Chefe e perspicaz Capitão não escaparam a pertinácia e o nobilitante e
esforçado empenho da simples praça de pret. ([1])
Tenho toda a certeza, disse o glorioso
militar ao novo Alferes no dia da apresentação, que essas suas divisas serão
sempre honradas! O seu passado, de que me informei com o maior interesse e que
conheço todo, por isto me responde.
No ano seguinte teve ainda mais pronunciada recompensa
da já menos obscura, mas sempre valente luta, vendo-se transferido, a
28.05.1856, para o Corpo do Estado Maior de 1ª Classe, livre afinal e para todo
o futuro das canseiras e do ônus das armas arregimentadas. Enorme fora o passo
para o recruta de 1843!
Rematriculando-se, em 1857, na Escola Militar do Rio de
Janeiro, localizada já então na Praia Vermelha, ali concluiu o curso da sua
especialidade, sendo promovido, a 14.03.1858, Tenente com antiguidade de 2 de
dezembro do ano anterior, e ainda mais, dispensado do serviço para poder
continuar em seus estudos e seguir as aulas de Engenharia Militar.
Aprovado a 14.12.1858 plenamente no 4° ano e em
geologia, pediu e com facilidade obteve licença para completar, na Escola
Central, a sua educação de Engenheiro Civil e, a 10.12.1859, recebeu o grau de
Bacharel em Matemáticas e Ciências Físicas.
Uma vez formado e de posse de tão honroso diploma,
casou, a 12.05.1860, com D. Matilde Medina Coelho de Almeida, ano também em que
foi nomeado engenheiro das obras públicas na Província do Rio de Janeiro.
Nesse cargo se manteve até começos de 1866 e nele
prestou os melhores serviços, deixando bem assinaladas a sua atividade e
competência no traçado e execução de importantes vias de comunicação, nos
planos e construção de próprios provinciais e, sobretudo, nos trabalhos de
canalização das águas do Rio Vicência para abastecer de água a cidade de
Niterói.
Em muitos pontos do Rio de Janeiro ainda
hoje se conserva bem viva a lembrança da laboriosidade e proficiência técnica
do Engenheiro Lago, a par da escrupulosíssima honestidade, franqueza de gênio e
lealdade de caráter, que por toda a parte lhe angariavam simpatias e amizades.
(Taunay, 1893) (Continua...)
Bibliografia
TAUNAY, Alfredo de
Escragnolle. Coronel Antônio Florêncio
Pereira do Lago – Brasil – Rio de Janeiro, RJ – Revista Trimestral do
Instituto Histórico e Geográfico do Brasil – Tomo LVI – Parte Segunda –
Companhia Tipografia do Brasil, 1893.
(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de
Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor
e Colunista;
Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do
Sul (1989)
Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre
(CMPA);
Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura
do Exército (DECEx);
Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério
Militar – RS (IDMM – RS);
Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando
Militar do Sul (CMS)
Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia
Brasileira (SAMBRAS);
Membro da Academia de História Militar Terrestre do
Brasil – RS (AHIMTB – RS);
Membro do Instituto de História e Tradições do Rio
Grande do Sul (IHTRGS – RS);
Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia
(ACLER – RO)
Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio
Grande do Sul (AMLERS)
Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da
Escola Superior de Guerra (ADESG).
Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
E-mail: hiramrsilva@gmail.com.
[1] Praça de Pret (ou de Praça de Pré): os Praças eram contratados e
pagos, às vezes antecipadamente, pelos dias trabalhados (o adiantamento de
soldos era chamado, na época, de “pret”
ou “pré”) e os Oficiais, por sua vez,
eram contratados por três anos. (Hiram Reis)
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – X
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