Quarta-feira, 9 de agosto de 2023 - 06h05
Bagé, 09.08.2023
IV
Adido ao Arquivo Militar, mal desfrutara um ano de mais
sossego, viu-se, por ordem do Ministério da Guerra, a 24.05.1879, compelido a
voltar à vida dos sertões e aturar-lhe as duras peripécias, encarregado de ir
fundar a Colônia do Alto Uruguai, nas Missões brasileiras, empenho particular,
longos anos bafejado, do Marquês do Herval, o lendário Osório, então na pasta
da Guerra.
Sem alegar o cansaço que já sentia em si, partiu a
27.06.1879 daquele ano; nem lhe era possível objetar coisa alguma, pois levava,
como sinal da pleníssima confiança do governo instruções que davam margem para
em tudo agir como melhor lhe parecesse e decidir conforme entendesse útil e
conveniente.
Passaram-se os anos de 1880 e 1881 nessa
Comissão que teve o mais cabal desempenho depois de zeloso e particular estudo
de larga região, para escolha definitiva do local que reunisse, pelas suas
condições topográficas, proximidade do grande Rio, fecundidade das terras, e
mais circunstâncias favoráveis, todos os elementos de natural prosperidade e
rápido incremento, uma vez fecundados e estimulados pela presença do homem. E,
com efeito, esse centro Colonial, em boa hora criado, mostrou logo grande
progresso, que se vai mantendo cada vez mais acentuado.
Tantas canseiras, porém, haviam, por força
de ter repercussão no organismo valentíssimo é certo, do Major Pereira do
Lago, mas já pesado não tanto pelos anos, como pelo abuso de forças a que se
vira sempre sujeito e por esse desenrolar incessante de trabalhos pesados e em
plena natureza bruta.
Na Colônia do Alto Uruguai caiu
perigosamente doente, agravando-se a bronquite asmática, de que sofria desde a
campanha do Uruguai, com violenta inflamação do fígado. Esteve muitos e muitos
dias entre a vida e a morte, e assim mesmo em tão precária situação, do seu
leito de quase agonia dava ordens e dirigia os serviços da nascente povoação.
Momentos houve ‒ dizia depois ‒, em que me
supus chegado aos últimos momentos; mas a ninguém dei sinal da crença firme em
que estava. A todos respondia que me sentia muito melhor quase bom!
Se a moléstia foi grave, tornou-se a convalescença
melindrosíssima, durando mais de três meses. E para ajudá-la, era obrigado a
mandar vir de S. Gabriel, e ainda além, garrafas de água de Vichy, que lhe custavam
10$000, cada uma! Dando, afinal, por finda a sua incumbência, a 04.10.1882,
apresentou-se de volta do Rio Grande do Sul, ao Quartel-General, indo novamente
servir no Arquivo Militar.
Teve, porém, que regressar aquela Província, nomeado, a
24.12.1883, para inspecionar a invernada de Saicã e outras, propondo as
reformas de que careciam e oferecendo à consideração do governo o plano de um
estabelecimento modelo.
Quase um ano depois, a 10.12.1884, entregou
circunstanciado relatório das inspeções a que procedera, apontando todas as
providências que deviam ser tomadas a bem da regular organização de uma
Coudelaria ([1])
de Estado e indicando com a maior franqueza e decisão todas as causas, culposas
ou não, que concorriam para que o estabelecimento do Saicã fosse fonte de mero
e escandaloso desperdício dos dinheiros do Tesouro e do descrédito da
administração pública. Meses depois de ultimada aquela Comissão, outra lhe
coube bem mais séria e difícil, encarregado como foi, a 31.10.1885, do Comando
Geral do Corpo Militar de Polícia da Corte, cargo em cujo exercício entrou a
05.11.1885, data da sua promoção a Tenente-Coronel por merecimento.
As circunstâncias delicadas da política, quando a
questão abolicionista havia atingido o ponto crítico, com toda a sua exaltação
e as irregularidades inerentes a mais ardente propaganda, a identificação
absoluta, por efeito de intangível lealdade e espírito de intransigente
disciplina, com o Chefe de Polícia de então, acentuadamente reacionário, o
choque de longos hábitos militares com inúmeras condescendências da época e ao
sabor dos que buscavam tirar daquela vasta e perigosa agitação todos os proventos
possíveis e outras contingências da ocasião fizeram com que o Tenente-Coronel
Pereira do Lago não pudesse, como das mais vezes, desempenhar-se das suas
funções rodeado do aplauso e das simpatias a que estava, desde tanto tempo e
com tanta justiça, acostumado.
Hábil e acremente
hostilizado por uma parte da imprensa do Rio de Janeiro, cujos intuitos iam
além da abolição, não teve a exigida maleabilidade e continuou a cumprir à
risca as ordens recebidas e a fazer frente a todos os temporais, crescendo as
dificuldades com que tinha de arcar nos fins de 1886 e começos de 1887. O
triste incidente Leite Lobo ([2]),
tão explorado pelo jornalismo interessado em avivar ódios e que trouxe graves
conflitos entre a marinhagem dos navios de guerra e agentes da polícia,
provocou, em breve, a queda do Ministério Cotegipe e sua substituição, a
11.03.1888, pelo gabinete João Alfredo.
Embora do mesmo credo político, sempre seguido desde os
primeiros tempos da Academia, julgou o Tenente-Coronel Lago de restrito dever
retirar-se logo e logo da Comissão que exercia, o que fez a 19.03.1888,
apresentando-se ao Quartel-General, onde ficou adido. Era tempo de descansar,
já pela idade, já pelo muito que trabalhara, já pelos males mais e mais
acentuados; disso, porém não curava o infatigável servidor do Estado.
Enquanto
tiver um bocadinho de forças, dizia com firmeza, declaro-me pronto para todo o
serviço.
E, com efeito, consultado se aceitaria o
lugar de Diretor do Arsenal de Guerra de Pernambuco, nem pensou em recusar a
incumbência que o obrigava a novas viagens e deslocamentos sempre duros a um
Chefe de família, cujas economias, a custo ajuntadas, eram bem modestas, bem
reduzidas, ainda que tivessem sido com certa largueza, retribuídas às Comissões
alheias à pasta da Guerra e, pelas suas mãos de Chefe, houvessem passado
centenas e centenas de contos de réis.
Nomeado a 11.07.1888, partiu para o Norte a
10.08.1888 e tomou posse do cargo a 17 do mesmo mês.
A 16.03.1889, após tranquilos meses de direção
do estabelecimento confiado aos seus cuidados passou em virtude de telegrama do
Ministério da Guerra, a exercer o elevado posto de Comandante das Armas interino
da Província de Pernambuco, cargo que ocupou até 20.06.1889, quando foi no
mesmo caráter, mas aí com efetividade, transferido para o longínquo Amazonas.
Havia se dado, a 6 de junho, no Rio de
Janeiro a inversão da política geral, caindo o Partido Conservador e sendo
chamado ao poder o Liberal, na pessoa do Visconde de Ouro Preto, Presidente do
Conselho de Ministros.Pereira do Lago vacilou em aceitar a nomeação que tão
espontaneamente fora feita pelo governo, quando eram bem conhecidas as suas opiniões
políticas, professadas sem exagero, mas com a firmeza que punha em todos os
seus atos. Além disto, não tinha mais confiança na sua saúde que considerava
perdida e fundamente atacada. Salteado pelo terrível beribéri, mal chegara ao
Norte, sentia as pernas trôpegas, frouxas, exacerbando se as sufocações
produzidas pela bronquite asmática, ou talvez já pela asma cardíaca.
Muito embora todas as dúvidas, a
21.07.1889, um mês depois de nomeado, assumia o cargo que devia preencher, em
Manaus, onde contra a grande expectativa de todos melhorou singularmente dos
seus incômodos. Foi aí que o encontrou o inesperado e inacreditável sucesso de
15.11.1889, que derribou as belas instituições monárquicas do Brasil, transformando-o
em República de Estados Confederados.
Na agitação política que se produziu na
Capital do Amazonas, organizando-se uma junta governamental de três membros,
foi o Tenente-Coronel Pereira do Lago aclamado Presidente e em boa hora, pois
todos os seus esforços tenderam em garantir a ordem, reprimir vinganças e ódios
pequenos e salvar os cofres provinciais de vertiginosa dilapidação. Aliás, por
bem pouco tempo, durou a sua benéfica ação; pois, a contragosto na posição que
o ocupava, com prazer obedeceu ao chamado do Governo Central e, em começos de
1890, se achava já no Rio de Janeiro.
A 03.02.1890 viu-se compulsoriamente reformado no posto
de Coronel. Estava finda a sua carreira, em que nunca poupara sacrifícios, por
maiores que fossem, para bem servir à pátria.
Passou o ano de 1891 sempre doente e buscando
impedir os progressos do beribéri, complicado com assustadoras perturbações
cardíacas, ano, portanto, triste e melancólico, no qual, contudo teve a suprema
alegria de casar a muito amada filha com um homem digno e que lhe merecia toda
a confiança. Caiu, afinal, no leito de morte e, na segunda hora do dia
01.01.1892, cerrou os olhos à luz terrena e exalou o último suspiro. Tinha 66
anos, 7 meses e 21 dias.
Era o Coronel Antônio Florêncio Pereira do
Lago de estatura elevada, bem proporcionado de membros, ainda que com
disposição à gordura, sobretudo no período dos 40 aos 50 anos. Cabeça pequena e
redonda com cabelos cortados à escovinha, tinha o rosto cheio, tez morena
olhos pequenos e vivos, nariz regular, barba rente em forma de coleira,
feições que denunciavam energia e força de vontade e maneiras francas e
despretensiosas que provocavam imediatas simpatias. Legitimamente ufano da sua
competência e prática nos trabalhos de engenharia, não ocultava as dificuldades
que, no seguimento da sua carreira, haviam provindo da falta de sólida educação
secundária e da posse imperfeita das matérias que constituem o curso de
humanidades.
Nas belíssimas qualidades morais que o
distinguiram não há que insistir, porquanto bem se salientaram em todas as
fases da vida que acaba de ser narrada; mas não deixaremos, por dever de
gratidão pessoal em esquecimento o culto que dedicava à amizade.
Impossíveis mais afetuosidade, maiores extremos,
delicadeza e constância nas doces e comovedoras relações com aqueles poucos a quem
considerava amigos.
A sua força capital, no penoso afã de abrir um lugar
para si na sociedade, a sua alavanca, foi a pertinácia.
Acostumando-se a nunca fazer grandes e fascinadores
cálculos e planos e visar longe demais, uma vez alcançado o objetivo que a
princípio visara, olhava sempre para diante, além, mais além, não parando nunca
em suas aspirações de nobilitante conquista, em que punha todo o esforço de que
era capaz, sempre a seguir linha reta, inflexível, sem atalhos, nem
tergiversações.
Era da raça desses valentes caráteres, de que tão
belamente disse o poeta Lucano:
“Nil actum reputans si
quid superesset agendum” ([3]).
Também, no seu tumulo de belíssimo e destemido Soldado,
na sua lápide funerária de intemerato e incansável servidor do Brasil, bem
condiz, como epitáfio, estas singelas palavras, resumo de toda a sua agitada
existência:
Por si só conseguiu o que foi, sem jamais se desviar da honra
e do dever.
Petrópolis, 20 de Outubro de 1892.
Visconde de Taunay
Bibliografia
TAUNAY, Alfredo de
Escragnolle. Coronel Antônio Florêncio
Pereira do Lago – Brasil – Rio de Janeiro, RJ – Revista Trimestral do
Instituto Histórico e Geográfico do Brasil – Tomo LVI – Parte Segunda –
Companhia Tipografia do Brasil, 1893.
(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de
Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor
e Colunista;
Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do
Sul (1989)
Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);
Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura
do Exército (DECEx);
Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério
Militar – RS (IDMM – RS);
Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando
Militar do Sul (CMS)
Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia
Brasileira (SAMBRAS);
Membro da Academia de História Militar Terrestre do
Brasil – RS (AHIMTB – RS);
Membro do Instituto de História e Tradições do Rio
Grande do Sul (IHTRGS – RS);
Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia
(ACLER – RO)
Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio
Grande do Sul (AMLERS)
Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da
Escola Superior de Guerra (ADESG).
Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
E-mail: hiramrsilva@gmail.com.
[1] Coudelaria: estabelecimento que visa o
melhoramento genético dos equinos. (Hiram Reis)
[2] A figura central desse incidente foi um oficial de Marinha, o
Capitão-Tenente Leite Lobo, que começara a apresentar sintomas de alienação
mental e cuja conduta, por isso mesmo, se tornara um tanto ou quanto
inconveniente. Preso por um Alferes do Corpo Militar da Polícia, foi Leite Lobo
levado para a delegacia do 1° Distrito, onde cruelmente o espancaram, em razão
dos protestos que opunha à prisão. Tal a barbaridade do espancamento que o caso
suscitou protestos veementes da imprensa e o Clube Naval se reuniu, para
examinar o assunto. O resultado dessa reunião não podia deixar de ser uma
severa condenação das autoridades policiais e dos seus criminosos métodos de
ação. O Clube Militar não deixou passar a oportunidade de manifestar-se,
hipotecando sua solidariedade à Marinha de Guerra e fazendo carga contra o
governo. O príncipe D. Augusto, sobrinho da Regente, não pôde, como oficial de
Marinha, que era, manter-se alheio à questão. Ficou também solidário com os
colegas de farda e se incumbiu, ele próprio, de expor à Princesa Isabel a
gravidade da situação. O Barão de Cotegipe foi chamado ao Paço e asseverou que
o incidente não tinha a expressão que lhe queriam emprestar seus adversários,
pois abusos de tal natureza podiam ser praticados por autoridades arbitrárias
mesmo sob o mais tolerante dos governos. A Princesa Isabel não concorda com
suas explicações. Acha que as autoridades têm abusado e que o Chefe de Polícia
Coelho Bastos, o “Rapa-Côco” deve ser
demitido. Cotegipe não concorda. Seria um desprestígio para o Gabinete, ceder à
pressão dos militares e da imprensa, demitindo um homem de sua inteira
confiança.
‒ A polícia só merece censura pela sua conduta violenta e
arbitrária, - responde a princesa. - A presença desse homem na administração só
pode representar uma perda de força moral, por parte do Gabinete. Insisto em
sua demissão, senhor Barão...
‒ Nesse caso, - responde Cotegipe, ‒ Vossa Alteza tem as mãos livres
para agir como melhor lhe pareça. Dê Vossa Alteza desde logo a demissão do
Ministério. Estou velho e cansado. Servi até o extremo limite de minhas forças.
Até onde tem sido possível transigir, transigi. Mas, de agora em diante, não
transigirei mais...
‒ Não me resta outra alternativa senão a de
agradecer os seus serviços e constituir outro Ministério... (JÚNIOR)
[3] Marco Aneu Lucano (Marcus Annaeus Lucanus): poeta romano autor do
poema “Bellum Civile”, conhecido como
Farsália, um épico da guerra civil entre os Generais romanos Caio Júlio César e
Pompeu o Grande. Lucano atribuiu a Júlio César, no livro 2, verso 658, de sua
obra, o lema:
“Nil actum
reputans si quid superesset agendum” ‒ Considerar que nada foi feito se
algo resta a fazer. (Hiram Reis)
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – X
Bagé, 20.12.2024 Continuando engarupado na memória: Tribuna da Imprensa n° 3.184, Rio, RJSexta-feira, 25.10.1963 Sindicâncias do Sequestro dão e
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – VI
Silva, Bagé, 11.12.2024 Continuando engarupado na memória: Jornal do Brasil n° 224, Rio de Janeiro, RJ Quarta-feira, 25.09.1963 Lei das Selvas T
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – IV
Bagé, 06.12.2024 Continuando engarupado na memória: Jornal do Brasil n° 186, Rio de Janeiro, RJSábado, 10.08.1963 Lacerda diz na CPI que Pressõessã
Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência – III
Bagé, 02.12.2024 Continuando engarupado na memória: Jornal do Brasil n° 177, Rio de Janeiro, RJQuarta-feira, 31.07.1963 JB na Mira O jornalista H